1) “Estava no lugar errado, na hora errada”
“Ele nunca teve nada a ver com crime. Era pacato, de família.Estava no lugar errado na hora errada. O nome Deivison foi porque meu pai gostava das motos Harley-Davidson.”
(Jorge Henrique Lopes Ferreira, 31, técnico de celulares, sobre o irmão, Deivison Lopes Ferreira, 26, assassinado em 13 de agosto. O pai de ambos foi assassinado há 18 anos, no mesmo bairro, da mesma maneira, num crime jamais esclarecido.)
“O Thiago estava desempregado havia um mês, mas era uma pessoa excelente e infelizmente estava na hora errada, no lugar errado.”
(Alessandra de Lima, 37, dona de casa, sobre o irmão Thiago Marcos Damas, 32, assassinado.)
“Eu vou ter de voltar à normalidade, seguir a minha vida. Perdi um companheiro e um amigo. Por mais que eu queira, infelizmente não posso mudar de casa. Foi o caso de estar no lugar errado e na hora errada.”
(Jean Fábio Lopes, 34, ajudante em lanchonete, sobre o companheiro, Eduardo Oliveira dos Santos, 41, artesão, assassinado)
“Foi muito rápido e muito trágico. Estava no lugar errado e na hora errada.”“Estava no lugar errado e na hora errada” foi o comentário mais frequente dos familiares dos 18 mortos, seis feridos, na periferia de Osasco e Barueri, na Grande São Paulo, na maior chacina de 2015. A expressão dá conta de uma máxima: “na periferia há preto ladrão, branco ladrão e aquele que está no lugar errado e na hora errada”. A frase também culpa, ainda que indiretamente, aquele que morre.
(Alberto Martins, sobre o irmão, Fernando Luiz de Paula, 34, pintor, assassinado)
Por que, afinal, ele estava aonde não deveria de estar, do lado de fora, na rua? Não tinha nada de estar ali. Para não estar na hora errada, no lugar errado, é preciso ficar trancado dentro de casa. Se estivesse trancado dentro de casa, estaria vivo. Comentários como estes são escutados o tempo todo nas periferias, tanto que se tornaram um clichê. Cada vez mais acuados, aqueles que não querem morrer se resignam a desistir do espaço público.
É a vida dos escravos, sonhada por seus senhores: de casa pro ônibus lotado, do ônibus lotado pro trabalho, do trabalho pro ônibus lotado, do ônibus lotado pra casa. Gente pobre não precisa de lazer ou o lazer é ver TV em casa, preferencialmente programas em que apresentadores, alguns deles com ambições eleitorais, criminalizam pobres e ofertam a imagem de seus corpos no altar midiático. Quem frequenta bar, sabe que pode morrer, é este o recado. Como na noite de 13 de agosto, como em tantas outras noites.
Ser encurralado por homens encapuzados e executado a tiros nunca é a possibilidade no lugar certo e na hora certa
Como pode ser lugar errado e hora errada estar num bar perto de casa antes da meia-noite? Mas assim é. Se há um lugar errado e uma hora errada, supõe-se que existiria então um lugar certo e uma hora certa. Mas a periferia nunca é o lugar certo. Na periferia nunca há hora certa. Já nos bairros nobres de São Paulo, no centro expandido, todo bar é um lugar certo, toda hora é certa. Também na noite de 13 de agosto.
Nenhum dos homens e mulheres de classe média e alta que lotaram os bares da Vila Madalena ou do Itaim Bibi, na mesma noite e hora, jamais precisou pensar sobre a possibilidade de que encapuzados pudessem entrar e executá-los. Nem que as faxineiras no dia seguinte, elas que vêm do outro lado do rio, tivessem de limpar seu sangue com rodo. Não é preciso pensar nisso, nem faz qualquer sentido. Ser encurralado por encapuzados e executado a tiros nunca é a possibilidade no lugar certo e na hora certa.
Ao se depararem com o corpo de filhos, pais, maridos, irmãos, o que os pobres dizem? Ao se confrontarem com o cadáver de quem amam estirado no asfalto, à espera de ser recolhido, ou estendido numa maca no pátio aberto do Instituto Médico Legal, porque faltou geladeira para todos, o que eles afirmam? “Estava no lugar errado, na hora errada”. É a frase com que a mãe espera convencer a sociedade, pela derradeira vez, de que seu filho era inocente e não merecia ser morto a balas. Em seguida, o absurdo se naturaliza na matéria de jornal e vira normalidade: “A maioria dos familiares disse que as vítimas trabalhavam e não viu motivo para execuções”. Isso é quase tão desesperador quanto a morte, porque também é um tipo de morte. E também mata.
Leia mais o artigo de Eliane Brum
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