Dilma completa cem dias de governo e entre malandragens e trapalhadas, os amigos dizem que eu - com 78 anos! - não sou velho!
Afora essa e outras impossibilidades impublicáveis numa crônica, chega à minha mente (uma entidade muito mais complexa que o meu mero cérebro) um total desânimo e, confesso, um intenso desejo de sair do palco. Não de morrer, propriamente, com todos os ritos e rezas (que espero não ter), mas de ficar no meu canto, porque eu olho pra rua e só vejo ruína, desespero, incompetência, descaso, insulto, mentira, malandragem e desonra.
Uma das sensações mais claras do fim de uma existência é descobrir que o drama no qual você entrou como um ator não convidado - pois ninguém escolhe onde vai nascer ou se deseja nascer - não funciona porque a companhia teatral, o diretor, o contrarregra, o produtor, o ator principal, e parte da plateia estão liquidando com a peça - no caso, com o Brasil. O Brasil que eu pensava que ia deixar de ser um ninho de ratos para ser um lugar razoável para se viver. Essa sensação de estranhamento e de desentendimento com o mundo, é um sintoma claro de que não há mais nada a representar ou, pior que isso, de estar fazendo o papel de idiota ou, como dizem alguns ex-amigos, de reacionário.
De agente da anti-história, que, infantilmente, ainda fica indignado com a ladroagem, quando não entende que o projeto político em curso é comprar com o dinheiro roubado da sociedade a tal "democracia popular"; é o de transformar o Brasil num paraíso socialista moreno como dizia, apesar de todos os pesares, um nobre pensador como Darcy Ribeiro. (Aliás, permitam-me uma pausa: o que diria ele se estivesse testemunhando essa fieira de vergonhas relativas ao que se chama vulgarmente de "governo" transformado, nessa última década, numa quadrilha cujo objetivo é assaltar o povo trabalhador do Brasil. Fim da pausa.) É claro que, ao lado desse projeto social-popular, alguns viram duques, mas isso faz parte do jogo e do "realismo" implacável da política brasileira.
Outro sintoma é acordar em meio às trevas, quando todos são virtualmente mortos, roncando serenamente para vagar como alma penada, justamente porque a alma não sabe mais onde está. Sabe, contudo, e com a certeza mais absoluta, que não pode mais ficar em plena sintonia com o corpo: esse corpo brasileiro sujeito a um Brasil que derrete pela crise moral que o desmorona por todos os lados.
Sou de uma geração caracterizada por uma mudança cosmológica. Para nós, "esquerdistas", o futuro não seria mais comandado pela religião e pelas compensações do outro mundo, mas pela política, a qual transformaria (por bem ou por mal) esse mundo. Queríamos o paraíso agora, como me ensinou um jovem Richard Moneygrand de olhos muitos azuis numa Harvard banhada de intensa luminosidade.
O sonho permanece, como todas as ilusões - nem o velho Freud viveu sem elas. A questão é descobrir que depois dos males do império, da escravidão, da velha república reformada em Estado Novo -, enfim do domínio da "direita entreguista e reacionária", tudo continua no mesmo lugar, agora sob o sol amarelo da "esquerda" petista. Essa esquerda que rejeitaria os sindicatos, que "não roubava nem deixava roubar", mas que - no poder - emasculou-se justamente pelo saque aberto da coisa pública, em nome de um republicanismo pervertido.
O centro da crise moral que conduz à morte dos valores que nos tornam humanos e nos salvam, justamente porque demandam tudo de cada um de nós naquilo que se chama de crença, honradez, fidelidade, trabalho e esperança, jaz justamente na depravação de que a nossa história não dependeria de nós. Ela, como os elevadores, seria determinada por dispositivos automáticos. Hoje, com os olhos arregalados, descobrimos que não está. Não pode ser entregue a um só ator como um Lula ou uma Dilma e seus comparsas. Tem que ser de todos nós.
A crise moral que atinge todas as esferas do nosso sistema, exceto o da aristocratização sistemática, a qual conduz à impunidade e a garantias que roubar do povo é um belo projeto de vida, consolidou-se e está sendo revelada justamente porque um grupo de procuradores e juízes tem firmemente atuado em conjunto com a polícia federal.
Só isso - e uma mudança radical do nosso sistema jurídico-político-teológico - pode nos salvar na nossa indiferença, da nossa insanidade pública e da nossa perversidade. Os ratos não estão só no navio, estão - valha-nos Deus! - em todo lugar!
Roberto Damatta
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