Não vejo equivalência possível entre uma piada, ainda que ruim, e uma bala na cabeçaTenho uma fantasia que se manifesta como se fosse um esquete do Porta dos Fundos. Estádio lotado, jogo decisivo, minutos finais. O camisa 10 mata no peito na entrada da área. Dá um chapéu no primeiro beque. Mete por baixo das pernas do beque na cobertura. Toca no contrapé do goleiro, que cai sentado, pateticamente. Golaço.
Então, o camisa 10 parte para a comemoração. Aponta para baixo, bota a língua para fora, faz o sinal do demo com os indicadores e os mindinhos. Por fim, sacode o escudo com o pentagrama antes de ser soterrado pelos colegas. O técnico beija a cruz invertida que oculta sob o agasalho. Os reservas encapuzados brincam de ciranda em torno do mascote do time, um sujeito vestido de bode preto com olhos vermelhos.
Talvez mais alguém ache graça nisso, lembrando dos jogadores que intercalam “toda glória a Deus” a cada declaração banal. Talvez alguém ache de mau gosto. Talvez alguém queira meter uma bala na minha cabeça. Talvez ninguém estranhe nada. Afinal, quando as pessoas perguntam se acredito em Deus, e respondo que sou ateu, sinto que se dissesse “eu acredito em Satã, Senhor de Todos os Infernos” elas ficariam menos decepcionadas. Nesse caso, como a maioria, eu ao menos acreditaria num outro mundo.
Não acredito. Não vejo equivalência possível entre uma piada, ainda que ruim, e uma bala na cabeça. Se os jornalistas foram quase unânimes na condenação do atentado ao “Charlie Hebdo”, e nas implicações dele para a liberdade de expressão, base de todas as outras, inclusive a religiosa, também choveram adversativas relativistas. Sinal de que, pensando nos próprios credos, muitos estão dispostos a perdoar os terroristas.
“Atentados como os de Paris são condenáveis, mas uma coisa é a liberdade de expressão, outra é a mera provocação, e não se pode ridicularizar a fé alheia.” Esta frase é um pequeno frankenstein, que costurei a partir das coisas que li. Claro que também li observações argutas, como a de uma leitora deste jornal, chocada justo pela presença de “conjunções adversativas — mas, porém, contudo, entretanto, todavia etc. — antes de (...) ‘argumentos’ que, invariavelmente, pedem limites à liberdade de expressão.”
Pergunto-me se a turma do “mas” seria tão compreensiva se a redação de um jornal esportivo fosse massacrada por membros de uma torcida organizada furiosa com as gozações feitas ao seu time, algo simples assim, chão, terreno. Acho que não. Porque as adversativas indicam que, na cabeça dessa gente, é o discurso religioso que está a salvo de reparo, crítica ou sátira. Ele e o discurso do culto à personalidade. Porque, como escreveu George Orwell, “um Estado totalitário é na realidade uma teocracia”.
Leia mais o artigo de Arthur Dapieve
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