Acontece que, ao contrário da história, não existe um só espelho onde insistimos em não nos ver, mas sim milhares deles, pequenos, que cabem num bolso, a vibrar e a berrar a cada cinco minutos: na mesa do jantar, no carro ou na cama, qual empata-amantes, agora deitados de costas voltadas, olhos vidrados no brilho azul do ecrã, sem abraço, palavra ou beijo antes de adormecer.
Falaram-me em phubbing parental, porque a nossa desgraça fica mais sofisticada quando o nome é importado, entre tarifas de preguiça para o traduzir. A verdade, essa, é transversal e ageográfica: os adultos desaprenderam o sentido de presença. Estão no local, com os filhos, mas ausentes, desatentos ao próprio mundo que criaram. O tempo das refeições, outrora sagrado, é agora templo agnóstico entregue ao abandono, mero cenário de rostos silenciosos, tombados para a frente entre garfadas, com indicadores a marcar o tempo à mesa em festinhas metódicas ao ecrã. Entre a selfie em família, com sorrisos que se desligam ao clique do retrato, o vídeo do gato ou a notícia triste que se exorciza com emoji de coração apertado, transformamo-nos em almas dispersas, evaporadas com o calor que já só nos chega pelo telemóvel. Sem percebermos, vamos fazendo swipe indiferente à infância dos nossos filhos, numa espécie de hábito que não se questiona, impacientes com qualquer momento de espera, de intervalo entre palavras, com o silêncio natural do adolescente, que se torna insuportável e que as redes aproveitam para, nesse instante, nos raptar, não oferecendo oportunidade ao tempo que eles precisam para finalmente conversar ou desabafar.
Na minha geração de pais, filhos de boomers — talvez os últimos com herança direta e conforto — existe um certo cansaço latente, disfarçado de liberdade. Uns herdaram décadas de poupança, outros casas, mas muito poucos herdaram paciência. Receberam certeza e segurança, mas faltou que guardassem também na conta o exemplo. O sacrifício é sempre relembrado em voz alta, com décadas de endoutrinação, onde a marca académica e profissional era a mais urgente, e o alargar da família biparental deixado para depois, num tempo em que uma das metades já não se rende para ficar a cuidar da casa. Mais velhos, com menos paciência, com tempo contado ao ponto até ao jantar, o que sobra depois do trabalho, das reuniões, da lista de compras, entrega-se num ritual partilhado, onde cada um ergue barreiras e levanta âncoras no seu sofá, partindo e navegando num mar infindável digital, onde se encontra tudo e todos, menos quem está por perto.
Num sentido de justiça egoísta, educamos à vontadinha, com tanto de cansaço como de falta de coragem, escondidos do incómodo que é explicar a pertinência de um “não”. Depois, nos momentos raros em que emergimos do nosso sono ausente, ficamos chocados ao ver os nossos filhos fechados, enrolados como caracóis, no aconchego das suas conchas digitais.
O alarme esbarra na ironia de os miúdos, esses nativos deste perigoso mundo novo, serem, na realidade, muito mais preparados e cautelosos para uma realidade que lhes é gémea, já parida com eles. Aprenderam cedo a facilidade em esquivar-se ao olhar desatento dos adultos, a criar ilhas com amigos em oceano virtual, a comunicar por códigos, como agentes secretos que trocaram as mensagens que se autodestroem por stories que não guardam história na net, uma espécie de segredos sem provas murmurados entre amigos. Enquanto os pais, menos preparados, abrem o sobretudo virtual e expõem as suas vergonhas ao mundo inteiro, os mais novos escondem-se nas sombras, num anonimato seletivo que se faz de contas spam, com a intuição lúcida e premonitória de que a privacidade será, no futuro, talvez o único reduto da dignidade.
Já preocupados, mas sem tirar o nariz do ecrã, vamos pesquisando estudos, partilhando estatísticas. Alguns, como eu, até escrevem sobre o apocalipse digital. Os especialistas gritam a solidão dos jovens, com cruzes aflitas em braços esticados e mãos apontadas a espantar as redes sociais, o diabo que tomou conta da cabeça dos nossos meninos. Julgamos o que está à nossa frente, sem perceber o espelho que nos devolve o principal rosto do problema.
O isolamento não se encontra primeiro numa conta de TikTok, não é constipação que se apanha no feed do Instagram. Ensina-se, sem querer, à mesa de jantar, nos olhares que nunca se cruzam, nas palavras que só são ditas aos de fora pelas pontas dos dedos apressados, numa espécie de show de sapateado em palco de LCD. É aí, na ausência travestida de presença, no começo da conversa interrompida pelo canto irresistível da notificação do telefone. A herança que vamos passando aos nossos é que a vida real é aborrecida e que o entusiasmo se encontra mais facilmente no que resgatamos, já quase sem bateria, do bolso. É esse o exemplo que lhes passamos, e depois lamentamos o desinteresse que nos devolvem quando procuram consolo noutro lugar.
Somos macacos diante do espelho, a apontar os defeitos dos nossos filhos, sem nunca suspeitar que aquela caricatura deprimente que encontramos é o reflexo trágico do que lhes estamos a ensinar.

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