domingo, 20 de julho de 2025

A fronteira está no bolso

Enquanto atravesso o Jardim do Campo Grande, salta-me à vista um grupo num piquenique. Aproximo-me e vejo, então, um insuflável enorme. É uma galinha branca, de bico vermelho, com um cabelo dourado, penteado como o de Trump, com umas mãos a sair das asas a agarrar as grades negras de uma espécie de jaula que a rodeia. Detenho-me. “Isto é o que parece?”, pergunto em inglês a um casal encostado a um banco de jardim. O homem solta uma gargalhada. “É. É um protesto anti-Trump. Vou chamar a organizadora”, diz-me desenvolto.

Aparece, então, a Maria, outra americana, de pele branca e cabelo escuro, que me explica que este ano não lhes apeteceu fazer só o piquenique do 4 de Julho. “Há poucos motivos para celebrar.” Fizeram, então, um protesto. E ali estão eles, talvez meia centena de americanos, a maior parte de meia-idade, todos a morar em Portugal. Como a maioria não se conhece, têm no peito autocolantes onde escreveram os nomes.

“O meu pai emigrou para os Estados Unidos com 14 anos, vindo do Chipre. Os meus avós foram depois. Se os meus avós fossem vivos, nunca iam acreditar que eu tinha vindo para a Europa para ter uma vida melhor”, conta-me a Maria, enquanto conversamos e me fazem perguntas sobre o Serviço Nacional de Saúde ou o sistema de propinas português. Temem ser vistos como usurpadores e garantem-me logo que trataram de arranjar seguros. São todos brancos e estão bem na vida, mas falar com uma portuguesa que lhes diz que são bem-vindos provoca-lhes um alívio visível. Ninguém quer ser o outro, o que está a mais.


Trocados dois dedos de conversa, sigo o meu caminho, ouvindo um podcast do jornal espanhol El Diário. Há uma frase que me fica na cabeça: “Ou somos imigrantes, ou somos fronteira”, diz o locutor, à medida que vai desfiando os casos: do espanhol qualificado que se sente de lado nenhum, à negra, filha de imigrantes, que tendo nascido em Espanha tem a cada passo de pedir documentos a um país onde nunca esteve, passando pelos ucranianos que vieram fugidos da guerra. “Ou somos imigrantes, ou somos fronteira.” Suponho que somos as duas coisas a maior parte do tempo.

Abro o Instagram. Há uma menina de 12 anos que chora descontroladamente. “O meu pai, o meu pai. Ele é tudo o que tenho. É ele quem toma conta de mim, quem me dá comida. O que vai ser de mim agora?”, pergunta a criança americana a quem o ICE (a polícia de fronteiras americana) acaba de prender o pai. O estômago embrulha-se-me. Todos os dias há mais um vídeo destes no feed do meu Instagram. É a brasileira a quem dois polícias encapuzados arrancam dos braços o bebé de nove meses para a levar presa. É o funcionário de uma escola primária que, com as lágrimas nos olhos, conta como a polícia aproveitou a festa de finalistas dos miúdos para levar os pais imigrantes, enquanto as crianças (elas, sim, americanas) se agarravam a chorar às pernas dos professores, sem saber quem cuidaria delas. São meninos e meninas que ainda não fizeram 10 anos, e não sabem uma palavra de inglês, que se sentam sozinhos em salas de audiências perante um juiz que vai decidir se os deporta ou não. É a mulher de meia-idade, sentada no carro, cheia de raiva e desespero, contando que levaram o vizinho, que conhecia há 30 anos e era o único cuidador da mulher acamada. “Estive há pouco tempo em Amesterdão, na casa de Anne Frank”, conta ela, enquanto explica que em Los Angeles já há quem se quotize para pagar aos vendedores ambulantes imigrantes para ficarem em casa, por terem medo do Estado. “Está a acontecer outra vez”, diz ela.

Há uma violência enorme nestes vídeos. Consigo ouvir o choro dos meus filhos em cada uma daquelas crianças. Imagino o que seja arrancarem-mos dos braços, obrigando-me a deixá-los para trás desamparados. A dor que sinto ao pensá-lo é física. E, no entanto, não chegará nunca sequer perto do que sentirão estas pessoas.

Enquanto escrevo, há milícias a varrer as ruas de Torre Pacheco, aqui ao lado, em Múrcia, Espanha. Estão a perseguir e a espancar todos os que lhes pareçam imigrantes magrebinos, porque houve um idoso espanhol que terá sido agredido por alguém dessa origem. Seguem de bastões pelas ruas, vêm de todos os lados de Espanha, partem carros e invadem lojas. Há crianças fechadas em casa, com medo. E um influencer espanhol recupera uma imagem que me parece a melhor para descrever o que se passa. “Quando fechamos formigas brancas e vermelhas num frasco, elas convivem pacificamente. Até que alguém abana o frasco. Aí, começam a matar-se furiosamente.”

Quem abana o frasco? Sabemos bem quem o abana. Por lá é o Vox, na América é Trump – que chega ao ponto de dizer que há uma coisa chamada “crime imigrante”, quando um estrangeiro que chega para trabalhar tem 60% menos probabilidades de acabar preso por ter cometido um crime do que um americano de nascença. Por cá, são outros. Mas são sempre os mesmos. Os que nos querem divididos e com medo. Os que sabem que, enquanto o frasco estiver a abanar, não vamos perceber como nos roubam a saúde, a educação e a habitação, alimentando um sistema iníquo que, cada vez mais, aumenta a desigualdade, produzindo fortunas obscenas ao mesmo ritmo que faz crescer a miséria.

“Os políticos que são contra a imigração são os mesmos que não punem quem a explora”, diz o sociólogo Hein de Haas, numa entrevista ao Público, a propósito do livro em que desmonta os mitos sobre o tema. “A ironia é que a melhor política é não ter fronteiras. Parece muito contraintuitivo, mas sabemos pela História que, quando não há fronteiras, as pessoas entram e saem. A ironia do controlo de fronteiras apertado é que se encoraja as pessoas a ficarem. Não é que ficar seja mau, mas o problema é que a maioria dos imigrantes gostaria de regressar aos seus países”. Ou, como disse Max Frisch, “queríamos trabalhadores e, em vez disso, recebemos pessoas”. Mas não as vemos como pessoas, quando muito como mão de obra e, por isso, precisamos de as desumanizar para as podermos explorar quando queremos e descartar quando não precisamos.

Enquanto espero que acabe a aula de piano dos meus filhos, há um brasileiro que inscreve a sua filha na escola. “Vim porque Portugal é muito seguro. O sétimo país mais seguro do mundo”, diz muito alto. Entro na conversa. Diz-me que sabe do que fala, afinal, é juiz lá e veio para cá fazer um mestrado para, pelo menos durante dois anos, tirar a filha adolescente daquela sociedade perigosa.

“Vim agora do partido Chega”, conta-me, explicando que lá foi porque está indignado por quererem mudar as regras de acesso à nacionalidade. Comprou um apartamento no Príncipe Real e “não podem mudar as regras a meio do jogo”. Foi pedir uma reunião. Está preocupado com as regras, mas lá me conta que a mãe, que é médica, esteve ilegal porque, tendo entrado como turista, começou a trabalhar num centro de investigação sem se lembrar de que tinha de regularizar a situação. Agora, tem medo de regressar para ver a neta e sofrer alguma sanção. “Mas ela cá gasta mais do que recebe”, garante-me ele, confiante de que a situação social é um passaporte especial. E é. A fronteira está no bolso. E quem agita o frasco, sabe bem disso.

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