Isto não é uma guerra. É o apagamento frio e metódico de um povo, orquestrado por scanners biométricos. A fome é transformada em arma. A ajuda humanitária é militarizada. O deslocamento é planejado.
E no centro de tudo isso, um regime de necrotecnocracia apoiado pelo Ocidente transforma genocídio em governança e assassinato em gestão.
Há momentos na história em que a violência deixa de ser impulsiva e se torna processual. A fome deixa de ser uma emergência humanitária e passa a ser uma variável num cálculo mais amplo. O exílio deixa de ser lamentado — passa a ser gerido. Gaza hoje exemplifica essa transição: a passagem da crueldade como acidente para a crueldade como estrutura.
Em 28 de maio de 2025, em Rafah, uma empresa americana — sombriamente chamada de Fundação Humanitária de Gaza — tentou distribuir ajuda sob supervisão militar israelense. A operação fracassou: milhares de civis famintos invadiram os portões, as forças israelenses abriram fogo e helicópteros evacuaram os contratados. Não foi um fracasso humanitário. Foi um experimento controlado. A mensagem não era misericórdia. Era dominação.
Raymond Aron alertou que, quando a racionalidade técnica governa os assuntos humanos, a violência assume a lógica do procedimento. Gaza não é mais submetida a ataques episódicos; é governada por um regime burocrático de privação e controle.
A substituição da UNRWA por contratantes privados não é uma reforma — é uma reconfiguração. A ajuda se torna um mecanismo de gestão. A memória é neutralizada. A injustiça é rebatizada como logística. O palestino não é mais um sujeito político, mas um corpo escaneado — catalogado, quantificado, despersonalizado.
Ao facilitar essa mudança, os Estados Unidos abriram mão de qualquer pretensão de liderança moral. Ao se alinharem à máquina de guerra logística de Israel, trocam seu status de superpotência pelo de subcontratante estratégico. Mas sejamos francos: os americanos não são auxiliares do Estado genocida — são seus cobeligerantes. Eles o financiam, o armam, o protegem e o defendem. Não são meramente cúmplices do genocídio; são seus coautores — seus arquitetos.
O que se desenrola em Gaza não é humanitarismo. É a sua inversão. O socorro se transforma em contenção. O reconhecimento se transforma em apagamento. A linguagem dos contratantes — "rastreabilidade", "impacto", "supervisão" — encobre uma estrutura de dominação. Cada caloria é racionada intencionalmente. Cada entrega é uma opressão calculada.
O objetivo é inequívoco: confinar os palestinos a zonas cada vez menores, exaustos, famintos e desprovidos de autonomia, até que a própria existência se torne insuportável. O deslocamento forçado, repetido indefinidamente, não é um fracasso político — é a política. O movimento sem destino, sem dignidade, é uma arma. O objetivo é provocar a morte por exaustão, fazer com que o exílio pareça misericórdia e realizar o extermínio em plena luz do dia — dentro de um vasto campo de concentração a céu aberto.
Este não é mais um conflito regional. É um escândalo civilizacional. Ele põe em questão a credibilidade do direito internacional, a integridade das democracias ocidentais e o valor moral de seus valores proclamados. O sionismo, antes disfarçado na linguagem do refúgio, agora se revela como uma doutrina de exclusão planejada. O silêncio ocidental não é neutralidade. É cumplicidade.
E, no entanto, Gaza resiste. Não apenas com armas, mas com memória, com presença, com a pura recusa em desaparecer. As ruínas falam. As crianças perduram. As pessoas, categorizadas e vigiadas, permanecem a contradição viva da narrativa que lhes é imposta. As revoltas estudantis nos campi ocidentais não são notas secundárias — são rupturas morais sísmicas.
A neutralidade não é mais um refúgio. É preciso consentir — ou confrontar.
A história não absolverá essa barbárie tecnocrática. Não registrará isso como um esforço de ajuda fracassado, mas como o momento em que o humanitarismo foi transformado em arma e a administração se tornou uma ferramenta de aniquilação.
Quando um povo luta até o fim — esgotando cada grama de força em defesa de seu nome, sua fé, sua terra, sua dignidade e sua honra — o que lhe sobrevém depois não é uma derrota. É algo mais. É a história em sua forma mais implacável. É a mordida do destino. É o destino caindo não como humilhação, mas como um golpe final de honra. Isso não é o fracasso de um povo, nem o colapso de um movimento — é o triunfo da fidelidade.
E não há vitória mais nobre do que essa — o triunfo da lealdade em meio à ruína, a afirmação final da dignidade diante do apagamento calculado.
É também a revelação da covardia, a exposição da hipocrisia e a maldição eterna sobre aqueles que permaneceram parados, cúmplices do assassinato, arquitetos da infâmia, herdeiros não da civilização, mas de sua traição.

Nenhum comentário:
Postar um comentário