Essas teses, embora teóricas, provêm de uma realidade muito empírica e fatual. Quando Jair Bolsonaro venceu as eleições de 2018 no Brasil com uma campanha de mídia social muito bem-sucedida, e os escândalos da Cambridge Analytica vieram à tona, o Brasil tornou-se um case de estudos global no que se refere à ascensão da extrema direita, um laboratório para o que chamo de “neofascismo de plataforma”, uma tendência imbutida nas novas tecnologias digitais e fomentada por nossas práticas cotidianas. Isso gerou uma espécie de apocalipse tecnológico, que, embora não seja advindo de uma bomba, pode, no entanto, produzir genocídios, como aconteceu no Brasil durante a pandemia da covid-19, em Mianmar em 2017 e na Índia sob o governo de Narendra Modi.
A crise de 2008 remodelou de vez nosso mundo digital, dando origem a uma nova era de capitalismo monopolista. Intelectuais como Yanis Varoufakis, Cédric Durand e Jodi Dean chegam até mesmo a apontar para uma mudança no nosso modo de produção atual (isto é, uma mudança na organização social e econômica) do capitalismo para o “tecnofeudalismo”. A digitalização e a plataformização não são apenas um novo “modelo de negócios”, como pregam o Vale do Silício e suas variantes ao redor do mundo, mas sim um novo cercamento dos mercados (até mesmo o mercado de trabalho), de modo que a privatização desses mercados aniquila o princípio de competição inerente a eles. Mas não são apenas os mercados que são cercados, mas também nossas formas primárias de sociabilidade, cultura, educação, comunicação, e, mais importante, a política. A nova infraestrutura digital tornou-se a principal forma de organização política da direita. Desde o boom das redes sociais, governos de direita se proliferaram em todo o mundo em uma escala nunca vista antes. Esse aparato não apenas conectou grupos que antes eram apenas marginais, mas constitui a base de uma direita internacional globalizada neofascista. Mesmo defendendo o nacionalismo na maioria dos países, eles compõem o movimento social mais importante (em termos eleitorais) sem fronteiras de nosso tempo. Altamente organizados pelas versões locais de um novo partido de massas digital que atua através de uma máquina de propaganda pervasiva e ostensiva, esse movimento lucra amplamente com a lógica algorítmica que compõe as redes sociais e transforma a linguagem política atual na linguagem da publicidade na qual se amparam essas plataformas. Como argumenta Cathy O’Neil, os algoritmos tornaram-se as novas armas de destruição em massa. Como a destruição de Hiroshima tornou-se algo que pode ocorrer em qualquer lugar do mundo após o advento da bomba atômica, o neofascismo político do Brasil, dos Estados Unidos e da Índia torna-se uma possibilidade muito provável para outras democracias no mundo após a ascensão das redes sociais. O neofascismo de plataforma é uma condição mundial.
As redes sociais não são um instrumento; são um conjunto de monopólios. Nunca na história, a proposta de Marshall McLuhan de que “o meio é a mensagem” foi tão verdadeira. Assim como a bomba atômica não é uma possibilidade de paz, mas sua própria impossibilidade, as redes sociais não são uma possibilidade de ampliar a democracia, mas um de seus principais fatores destrutivos. Os alegados efeitos progressistas que elas podem ter na política são de longe superados por sua capacidade de erosão democrática. As redes sociais não são apenas “tecnologia pura”. É uma tecnologia inserida dentro de uma lógica de plataforma que dita a forma da nossa sociabilidade atual, mesmo que sejamos levados a acreditar que produzimos seu conteúdo. Embora isso pareça absolutamente plausível, é enganoso dizer que as redes sociais existem em nossa situação política. Esta afirmação deve ser invertida para se tornar verdadeira, como diz Anders sobre a bomba atômica. Como a situação política hoje é altamente determinada e definida pela existência das redes sociais – que cercam a esfera pública e o debate político, nossas formas de interação e subjetivação, a forma como nos informamos (especialmente as gerações mais jovens, como vemos agora com a campanha bem-sucedida da AfD no Tik Tok), e a maneira como fazemos política – é preciso reconhecer que as ações e desenvolvimentos políticos de nossa era estão ocorrendo dentro de uma situação de redes sociais, de plataformas sociais, não o contrário. O problema não é apenas o Twitter ou Elon Musk, mas a situação em si. Apesar dos efeitos catastróficos que essas plataformas têm causado, há uma espécie de consenso tecnológico que impede qualquer tipo de crítica. Apesar de todas as posições neofascistas de Elon Musk, ninguém discute o boicote de uma rede como o X – o maior sucesso dessas empresas foi vender o seu negócio como liberdade de expressão. Não há acordo sequer sobre sua regulação em círculos de esquerda. Como argumentei aqui antes, o aparato de plataforma atual realizou o sonho erótico do anarcocapitalismo. Uma das principais características do capitalismo digital é eliminar a função mediadora do Estado e das instituições estatais em múltiplas esferas. As criptomoedas eliminam o papel das regulamentações financeiras estaduais, as plataformas de trabalho contornam as legislações trabalhistas e as redes sociais dispensam qualquer e todo controle democrático sobre o debate político. A chamada tecnologia mais avançada de nossa era não é nada mais que um Velho Oeste digital, um conto de Mahagonny, onde a política é feita pelos mais fortes, mais rápidos e mais poderosos, e onde os perdedores são mais uma vez os subalternos, os povos autóctones, a paisagem natural.
Embora propagandeiem que ultrapassam qualquer fronteira, as redes sociais produzem mais divisões sociais e políticas do que qualquer outra tecnologia anterior a elas, pois não são apenas uma tecnologia, mas um monopólio digitalmente controlado de nossas formas de política. Em suas “Teses,” Günther Anders afirmou que a bomba atômica de alguma forma desconectou a violência e o ódio, transformando a guerra em um assunto impessoal. Segundo ele, “como os alvos do ódio artificialmente fabricado e o alvo dos ataques militares serão totalmente diferentes, a mentalidade da guerra se tornará realmente esquizofrênica.” As redes sociais assumiram o papel de reorganizar o ódio (as comunidades incel, os movimentos digitais neofascistas, as organizações pró-armas e pró-guerra), reconectando as vítimas do ódio com o ataque militar ou paramilitar a elas. As campanhas digitais que incitam o genocídio na Palestina, são só um dos muitos exemplos disso. O ódio nas redes sociais é a face atual da era atômica. Sua lógica algorítmica se encaixa na dinâmica fascista de “in-groups e out-groups” como uma luva. Isso impede que a sociedade como um todo perceba que, com a bomba atômica e a crise climática, “qualquer distinção entre perto e longe, vizinhos e estrangeiros, tornou-se inválida” e que estamos vinculados não apenas nesta, mas também nas próximas gerações à ameaça de destruição na qual nossa existência está enquadrada.
De acordo com Anders, a possibilidade de acionar uma bomba e não assistir aos seus efeitos, a separação no tempo e no espaço de uma ação e suas consequências, é a versão hiper-pós-moderna do assassinato disfarçado de trabalho ou cumprimento do dever no fascismo. Por trás da ideia de “seguir ordens”, novamente, segundo Anders, esconde-se a isenção do trabalhador de responsabilidade por seus próprios atos, dos quais “simplesmente não pode ser culpado”. Clicar é como apertar o botão de uma bomba. Se o ambiente virtual pode de fato dar a sensação de participação política a pessoas de outra forma excluídas da política, ele também separa a ação e a sua consequência no espaço e no tempo. Apertar um botão e pressionar uma tecla são atividades semelhantes agravadas pelo fato de que, no segundo caso, o caráter virtual da ação faz parecer que suas consequências não são verdadeiras. Isso é válido tanto para o indivíduo isolado que repassa uma fake news, como para as fazendas de cliques usadas para disseminar notícias falsas e eleger governos de extrema direita, bem como para a formação de “in-groups” que atacam mulheres, pessoas racializadas, LGBTQIA+ e estrangeiros a ponto de provocar feminicídios, queercídios e até genocídios. O que antes significava ser politicamente crítico e envolvido, isto é, engajado, agora é uma expressão que designa nossa participação em um aparato que é político até o cerne, mas cuja política é coberta por um véu tecnológico. As redes sociais substituem a ação por um engajamento que impede qualquer ação real enquanto, ao mesmo tempo, produzem uma forma de política que parece desaparecer no espaço temporal que separa os cliques e as suas consequências finais. Como Anders afirmou sobre a bomba atômica, “esta, então, é nossa situação absurda: no exato momento em que nos tornamos capazes da ação mais monstruosa, a destruição do mundo, as ‘ações’ parecem ter desaparecido. Como a mera existência de nossos produtos já prova ser ação, a pergunta trivial de como devemos usar nossos produtos para ação é quase fraudulenta, pois a pergunta obscurece o fato de que os produtos, por sua mera existência, já agiram”. Em 2024, metade das interações na internet será por e com bots. Nosso futuro deve ser decidido por isso?
Enquanto a mudança climática reforça o Endzeit e faz de nosso presente a última era em muitos sentidos, o tempo que passamos rolando os feeds nos aprisiona na temporalidade vazia das plataformas das redes sociais, tornando-nos cada vez mais incapazes de perceber o que produzimos como sociedade, de ouvir o que Anders chamou de “a voz muda de nossos produtos.” A era da informação se torna a era da ignorância, e nossa situação como “utópicos invertidos”, isto é, incapazes de ver o que já fizemos, é combinada com a perda de nossa capacidade de imaginar o que poderíamos fazer. Para escapar desta situação, devemos primeiro nos perguntar, sem medo da resposta: existe alguma possibilidade de emancipação dentro deste aparato e situação? Ser antiapocalíptico, como afirmava Anders, é cultivar a capacidade de temer as consequências das nossas ações passadas e presentes para as gerações futuras. Conter o avanço desse aparato sobre a sociedade, especialmente no Brasil dos próximos anos, é uma tarefa mais que necessária para barrar a extrema direita que continua firme e forte nessas redes e para conceber uma política que seja algo mais que mercadoria e publicidade.
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