Muitas mulheres compreenderam e justificaram porque também fariam essa escolha: se fosse atacada por um urso as pessoas acreditavam, não perguntavam como estava vestida, se disse não, se resisti, se bebi, se denunciei para ficar famosa, um urso não me violaria, não me torturaria, não faria de conta que é simpático, não me perseguiria só porque não dei o meu número de telefone, não me fecharia numa cave, não me violaria sozinho ou em grupo, deixaria o meu corpo tranquilo depois de me ter morto, e ninguém diria que estou a sujar a reputação do urso, ou que nem todos os ursos são assim, etc.
Ora, o clássico “nem todos os homens” tem sido uma das reações frequentes a esta questão, demonstrando que o primeiro instinto de muitos homens é o de defender a sua reputação, identificando-se desde logo com a posição dos agressores e não com a das mulheres que preferem nem sequer ouvir e compreender. Encontramos este tipo de reação em vários outros domínios que têm como fator comum a identificação imediata com as posições de dominação, e não com as perspetivas das vítimas. Exemplo disso é a forma como de cada vez que se fala de racismo até pessoas aliadas da causa não resistem em mostrar a que ponto elas não são assim, a que ponto são antirracistas. Participam numa espécie de concurso de inocência, ao ponto de por vezes caírem no ridículo de compararem os seus comportamentos engajados com o das pessoas vítimas de racismo e de acharem ter legitimidade para explicarem, por exemplo, a pessoas racializadas o que é o racismo e como conduzir a luta antirracista. Da mesma forma que homens explicam a mulheres o que é o machismo ou o verdadeiro feminismo e até no caso em questão como se comporta um urso.
Encontramos este tipo de reação em vários outros domínios que têm como fator comum a identificação imediata com as posições de dominação, e não com as perspectivas das vítimas. Assistimos a este mesmo tipo de padrão nas reações à questão da escravatura e colonialismo, e neste momento, mais especificamente à questão das reparações. A justificação, a relativização e a minimização destes crimes contra a humanidade são muitas vezes motivadas pela identificação com a posição dos opressores, dos criminosos, dos ladrões, dos violadores, e não das vítimas. O argumento tantas vezes utilizado “não se pode ver o passado com os olhos de hoje” é disso uma prova. É porque, para “os olhos” das vítimas, serem violadas, mutiladas, torturadas, separadas das suas famílias, escravizadas, assassinadas sempre doeu, sempre foi horrendo, no passado, no presente, como o será no futuro.
E, aqui, estranhamente, o “nem todos” só parece fazer sentido no presente e esquece-se que de facto no passado “nem todos”. Que houve quem resistisse, quem contestasse a barbárie, a desumanidade, a ilegalidade. Penso, entre tantos outros, no abolicionista Henri Gregoire, a quem já recorri e que escrevia em 1808: “Caluniámos os negros, primeiro para ter o direito de escravizá-los, depois para justificar tê-los escravizado.”
Mas este “nem todo ” do passado não convém agora mobilizar, porque isto quereria dizer que sim, era possível já na altura ver com outros olhos. E, se já era possível ver com outros olhos, isso responsabiliza quem participou nestes crimes contra a humanidade. Nestas questões que parecem ter ficado no passado – sendo que aqui estamos a falar de um tempo ainda mais recente do que o 25 de Abril –, o argumento passa a ser “eu não participei nisto”, portanto “não sou responsável”, “não toquem no meu bolso”, caricaturando o que significam as reparações neste contexto, arrogando-se a autoridade para decidir o que se deve lembrar e o que se deve desmemoriar, esquecendo que no presente ainda existem vítimas, assim como beneficiários individuais e coletivos desse passado. E este urso no meio da sala parece ser bem mais difícil de enfrentar do que o da floresta.
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