Sua casa fica logo ao lado dos muros do campo. A partir do jardim idílico, veem-se as chaminés soltando fumaça densa, à noite elas expelem chamas. As crianças brincam no jardim; para além dos muros, cães ladram, guardas berram ordens e insultos, detentos gritam de dor, tiros são disparados. É o verão de 1943, os crematórios de Auschwitz foram instalados poucas semanas antes, e agora operam 24 horas por dia.
Do lado de cá do muro, Hedwig Höss, interpretada pela atriz alemã Sandra Hüller, candidata ao Oscar, cuida de seu jardim florido, mostra as flores a um bebê. Quando a mãe a visita, ela comenta que quer plantar uma trepadeira junto ao muro, "aí não vai se ver tanto assim".
É uma das poucas cenas do filme Zona de interesse, de Jonathan Glazer, em que a vizinhança é mencionada ou comentada. De resto, o que acontece por trás dos muros é ignorado ou descartado como uma banalidade qualquer. Só uma vez o horror chega até a família: ao se banharem no rio, "Papai" Höss e seus filhos são surpreendidos por uma onda de cinzas vinda do crematório. Em seguida as crianças são lavadas e esfregadas na banheira, com quase desespero.
O idílio junto aos muros do campo da morte periga se desfazer quando Höss é transferido para Berlim. Mas Hedwig quer permanecer no paraíso que criou para si e os filhos – em Auschwitz.
Rudolf Höss (Christian Friedel) é um homem tranquilo e consciencioso, que domina perfeitamente as próprias emoções, que cuida, amoroso, de sua família-modelo: lê contos de fadas para as crianças, carrega a filha sonâmbula de volta para a cama, acaricia seu cavalo e sai para cavalgar com o filho mais velho. Até quando começa seu expediente no campo, onde executa o plano de extermínio dos judeus, inabalável, desumano, com eficiência implacável.
Nas memórias que Höss escreveu na prisão, antes de ser executado em 1947, um dos grandes temas é justamente essa eficiência. Cedo aprendeu a não demonstrar qualquer emoção, orgulhava-se de conseguir manter o rosto glacial, implacável, enquanto cometia assassinatos.
"Eu precisava aparentar ser frio e sem coração em procedimentos que fariam o coração se contorcer no corpo de qualquer um que ainda tivesse algum sentimento humano [...] Tinha que observar friamente as mães entrando nas câmaras de gás com os filhos que riam ou choravam."
No entanto estava sempre pensando na própria família. Quando – após supervisionar a incineração dos cadáveres, a extração das próteses dentárias valiosas, a morte nas câmaras de gás, como mandava seu dever – ficava por vezes tão perturbado que não conseguia voltar para a mulher e filhos em casa, ele escrevia sobre seu mundo emocional oculto.
Remorso, porém, o nazista Höss jamais sentiu: o cumprimento do dever em nome de seus comandantes estava acima de tudo. Assim, o genocídio de centenas de milhares de seres humanos era para ele uma atividade profissional incontornável, que não admitia nenhum tipo de questionamento.
Livremente baseado no romance homônimo de Martin Amis de 2014, Zona de interesse não coloca em questão o caráter de Höss. O que ele questiona é como é possível alguém viver nas vizinhanças imediatas de uma fábrica de morte e obliterar qualquer percepção do que está acontecendo por trás dos muros.
O ator Christian Friedel, que representa Höss, comentou à revista online Filmstarts: "É mesmo um fato que as pessoas viveram assim. Acho que essas dimensões do recalque – que seriam possíveis em nós todos, pelo motivo que seja – são exatamente o espelho que o filme quer colocar diante da gente."
Esse mecanismo de recalque se manifesta de forma especialmente crassa nas cenas em que uma das crianças brinca com dentes de ouro arrancados; um prisioneiro aduba as flores do jardim da família com as cinzas dos incinerados; ou Hedwig Höss experimenta o casaco de pele que pertencia a uma judia assassinada. Ao encontrar um batom num dos bolsos, ela se maquia com ele: não lhe importa que a última a aplicá-lo nos lábios tenha sido uma vítima de seu marido.
As rodagens foram inusuais para os participantes: espalhadas pela casa e o jardim, estavam câmeras sem operador. Tudo era observado e controlado a partir de um trailer, o elenco atuava sozinho, sem nunca saber quando e em que posição estava sendo filmado. Também não há praticamente close-ups das personagens, e essa distância proporciona ao filme um caráter quase documental.
Os diálogos parecem em parte improvisados, algumas conversas são incompreensíveis – o que não é uma perda, porque em geral se trata de meras banalidades. A não ser que Hedwig note ser preciso mandar ajustar as roupas das vítimas do campo – de que a família se apoderou como se fosse seu direito: os vestidos são todos estreitos demais.
Já tendo recebido numerosas distinções, entre as quais o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2023, Zona de interesse está indicado para concorrer a cinco Oscars em 10 de março: além de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional, os de Direção, Roteiro Adaptado e Som.
O cineasta inglês Jonathan Glazer conseguiu apresentar o Holocausto de modo diferente do que se viu até então, ao intencionalmente abrir mão de mostrar por meios visuais as atrocidades que se cometem atrás dos muros.
Esse trabalho cabe inteiramente à sonografia: os barulhos onipresentes do campo de extermínio dispensam imagens para transportar o horror. Praticamente não há música: empregada com grande parcimônia, a trilha sonora é eletrônica e de brutalidade extrema.
Glazer recrutou como sound designer Johnnie Burn, com quem já colaborara em sua obra anterior, a experimental Sob a pele, de 2013. A dupla considerou cuidadosamente até mesmo a forma como o som chega ao público: renunciando à qualidade imersiva, "sensacionalista", da tecnologia multicanais Dolby Atmos, a trilha é em mono – como num anacrônico preto-e-branco sonoro.
"Foi o que simplesmente deu mais a sensação de documento do que qualquer outra coisa. Deixou aí de ser um lustro em cima do modo como o som era representado", explicou Burn à revista online Filmmaker.
Zona de interesse é uma obra cruel e importante. O ator Friedel comenta: "Quando vejo em que tempo estamos vivendo, como o filme é relevante, eu fico feliz de a gente tê-lo feito." Quando, ao fim, a tela fica preta, irrompe uma espécie de coro, torturantemente alto, dissonante, devastador, brutal: é terror em estado puro – e, no entanto, engendrado por seres humanos.
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