quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

A raiva que borbulha no mundo contra Israel e os Estados Unidos

Com receio de não se reeleger, Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, antecipou, enquanto tomava um sorvete em Nova Iorque, que a guerra Israel x Hamas poderá ser suspensa até o início da próxima semana.

Horas depois, Israel e o Hamas anunciaram que não é bem assim. Disseram a mesma coisa o governo do Catar, mediador de qualquer tipo de acordo, e um porta-voz da Casa Branca.

Biden vive a ser corrigido pelos que o cercam. A idade produz estragos na sua imagem. Outro dia, chamou Vladimir Putin, o presidente russo, de um grande “filho da puta maluco”. A Casa Branca informou que não era isso o que ele quis dizer.

No início da guerra, depois que o Hamas o invadiu, Israel mandou que os palestinos do Norte da Faixa de Gaza se mudassem para o Sul, sob pena de serem bombardeados e mortos. Foram bombardeados mesmo assim.

Metade dos palestinos mudou-se correndo para o Sul. Destruída grande parte do Norte de Gaza, agora Israel manda que os palestinos que se mudaram para o Sul voltem às pressas para o Norte. Por quê?

Porque Israel está pronto para invadir o Sul. Mas por que não invadiu o Sul primeiro? Porque o Sul da Faixa de Gaza sempre foi reduto eleitoral de líderes do governo de extrema direita de Israel, comandado por Benjamin Netanyahu.

Era preciso dar algum tempo para que os colonos israelenses estabelecidos no Sul de Gaza dali pudessem sair, ou proteger-se. Voto não tem preço. Vale mais do que vidas, se for o caso.


Quando Lula diz que Israel comete um genocídio, está certo. Genocídio é a eliminação de um povo, ou a tentativa de. Foi o que fez com os judeus durante a 2ª Guerra Mundial a Alemanha nazista de Hitler.

Lula não usou a expressão Holocausto, mas foi como se tivesse usado. Quem mandou dizer:

“O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu. Quando Hitler resolveu matar os judeus”.

O número de palestinos mortos na atual guerra, e até aqui, já ultrapassou a casa dos 30 mil, a maioria mulheres e crianças. Sem contar os mortos soterrados sob escombros de imóveis.

Não entra um caminhão com ajuda humanitária na Faixa de Gaza sem autorização do governo israelense. Em certo período, mais de 500 entravam por dia. Hoje, só 50 ou 60. Dá para nada.

Os caminhões levam comida, água, remédios e combustível. A ONU adverte que o mundo assiste a uma tragédia que não tem data para acabar. Israel diz que não tem mesmo data para a guerra acabar.

Por causa de sua política externa excessivamente pró-Israel, Biden arrisca-se a perder o voto árabe e o voto dos jovens indignados na difícil parada que tem pela frente para derrotar o ensandecido Donald Trump.

Thomas L. Friedman, um dos principais colunistas de opinião do New York Times, o mais importante jornal do mundo, escreve:

“Passei os últimos dias viajando de Nova Delhi para Dubai e Amã e tenho uma mensagem urgente a transmitir ao presidente Biden e ao povo israelense: estou vendo a erosão cada vez mais rápida da posição de Israel entre as nações amigas – um nível de aceitação e legitimidade que foram meticulosamente construídas ao longo de décadas. E se Biden não tomar cuidado, a posição global da América irá despencar juntamente com a de Israel.

Não creio que os israelitas ou a administração Biden compreendam plenamente a raiva que borbulha em todo o mundo, alimentada pelas mortes de tantos milhares de civis palestinos, especialmente crianças, com armas fornecidas pelos Estados Unidos. O Hamas tem muito a responder por essa tragédia humana, mas Israel e os Estados Unidos são vistos agora como impulsionadores dos acontecimentos e recebem a maior parte da culpa”.

Pensamento do Dia

 


O mal-estar da globalização

Quando se trata de guerra — de violência e fúria que fulminam pessoas e formas de vida —, todo comentário é discutível e potencialmente ofensivo. Feita a primeira vítima, fica difícil chegar à última.

Nas razões convocadas pela guerra, quando ela emerge como um sujeito — uma instituição com direitos tão profundos quanto justos e desumanos do agredido ou do agressor —, o conflito armado tem enorme vigor. Isso porque ele chama a promessa de finalização de uma injúria ou etapa histórica. Quem não se lembra daquela guerra que acabaria com todas as guerras?

Se o mundo fica melhor sem judeus, muçulmanos, católicos, puritanos, materialistas, índios... — eu esgotaria um volume com exemplos —, então há o remédio de tomar Jerusalém, exterminar subversivos e catequizar índios e todos os que não são como nós. Se não admitimos o outro como alternativa e classificamos as alternativas como erros, ignorância, pecado, primitivismo, doença ou deformação, legitimamos seu extermínio porque, nesse caso, o aniquilamento é cura, livramento e progresso. Algo, valha-me Deus, que está na base de todo etnocentrismo e dos anacronismos.


Todo conflito desvenda exclusivismos que não podem ser tomados como modelos absolutos. Ao equiparar a reação de Israel ao que o povo judeu sofreu, Lula fez mais do que cometer um engano. Tocou num tabu. O tabu do “povo eleito” sujeito justamente por ser, como anotou a antropóloga Mary Douglas, o “Cordeiro de Deus”, vítima de todas as infâmias. Como ela desvenda, há uma dialética apurada entre pureza e perigo.

Nada é mais dilacerante do que o terrorismo, que na área da comunicação surge como uma diarreia de fake news e lembra a bruxaria dos povos tidos como primitivos. O terror é uma pavorosa metáfora das desmedidas diferenças de riqueza e poder entre povos. Num sentido preciso, o terror é uma expressão extremada do “poder dos fracos”, um tipo de força dos que perderam até mesmo seu espaço de vida, como é o caso das duas guerras que testemunhamos e estão na base do mal-estar globalizado.

O mal-estar atual é mais atroz do que o freudiano. Para Freud, a questão era o embate dos instintos contra o etos civilizatório; ao passo que o nosso resulta do ajustamento entre uma consciência global (que demanda igualdade) e a perspectiva das nações imperiais.

O paradigma pejorativo do “West and the rest” mudou porque o “West” corre o risco de também pertencer a esse “resto” condenado à marginalidade. O global torna mais difícil manter hierarquias geopolíticas. Nosso mal-estar não diz respeito somente a rivalidades entre nações, religiões, línguas e culturas. Hoje, tem como foco uma referência implacável: a Terra.

Um planeta que, se o estilo de vida dos países hegemônicos for globalizado, pode se exaurir ou — mais apavorante que isso — explodir num conflito nuclear deflagrado por algum Doutor Fantástico que já deixou o cinema.

Violência gera violência que só pode ser mitigada pelo bom senso capaz de deter os drones que matam pelo computador sem nenhuma piedade. Antigamente existiam “campos de batalha”. Nos antigos tempos modernos, essas zonas eram as fronteiras entre países que passavam de vizinhos e parceiros a inimigos. As trocas de bens, serviços e palavras realizadas entre fronteiras são substituídas pelos fuzis dos soldados. A Guerra de 1914-18 teve esse perfil e, embora brutal, nela ainda havia um elemento de cruel humanidade, porque os inimigos se enxergavam e viam suas bravuras e temores.

Hoje, estamos perdidos pelo excesso de comunicação e pelos diabólicos poderes da tecnologia aplicada a ganhar poder e dinheiro. Desse tanto falar sem escutar que, já advertia Lévi-Strauss, faz perna com a intriga, o terrorismo e o golpe. Do mesmo modo que o esquecer denuncia a ausência de diálogo consigo mesmo.

Autodestruição assistida

Muitas críticas justas já se fizeram ao capitalismo, de um ponto de vista ético, em sua tendência de produzir pobreza e concentrar riqueza. Mas raramente se fala sobre o capitalismo como um sistema autodestrutivo que, para existir e gozar de boa saúde, tem de estar num processo de crescimento constante: mais empregos, mais trabalho, mais devastação da natureza, mais monóxido de carbono no ar, mais lixo – seis bilhões de quilos de lixo por dia! –, mais exploração dos recursos naturais, mais florestas cortadas, mais poluição dos mananciais… Até quando a frágil bolha suportará?
Rubem Alves

O capitalismo consegue resolver a crise climática?

“Agora o negacionismo climático se tornou uma espécie de tatuagem tribal da extrema direita.” A frase é do jornalista Claudio Angelo, coordenador de política climática do Observatório do Clima, rede com mais de 90 organizações no Brasil com essa agenda. O OC, como a organização é carinhosamente chamada, foi uma das vozes mais críticas à política de desmonte do sistema nacional de meio ambiente promovida nos anos de governo Bolsonaro.

A metáfora de Angelo pode ser transposta a três inquietações contemporâneas. A primeira diz que os sacrifícios exigidos pela descarbonização da economia abrirão oportunidades e novos empregos, mas também deixarão gente sem renda e perspectiva, e, por isso mesmo, pesam nas urnas.

A pauta verde não costuma eleger políticos. A crise climática é complexa e difícil de comunicar. Enfrenta discursos negacionistas sem compromisso com a verdade e de gente que habita Terras planas. “Não é simples um político se levantar para essas questões. Esses temas, de fato, não dão muita visibilidade e muitos estão apanhando por conta de hastear bandeiras de diversidade, inclusão e meio ambiente”, concorda Carlo Pereira, CEO do Pacto Global da ONU no Brasil.


Na sua visão, contudo, trata-se de um dos vários espinhos da transição e, como tal, vai transmutar. “Há uma questão geracional muito forte, e entendo que este é o último fôlego de um conservadorismo para muitos destes temas.”

Pereira constata que, ao que parece, o Acordo de Livre-Comércio UE-Mercosul “acabou de ser implodido, muito devido aos agricultores europeus. Estamos em uma fase forte de protecionismo dos países, pela crise e inflação”, reforça. A mudança é difícil de acontecer quando eleitores sentem que suas necessidades básicas estão sendo, em alguma medida, ameaçadas. “Vimos o adiamento de algumas legislações. É de fato um momento sensível.”

No início de fevereiro a União Europeia derrubou metas ambientais mais ambiciosas. A Comissão Europeia, braço executivo do bloco, recuou para atender a protestos de agricultores disseminados pelo continente no início do ano, com longos comboios de tratores circulando pelas capitais europeias.

Assim foi deixado de lado, ao menos provisoriamente, o plano para reduzir pela metade a utilização de agrotóxicos em 2030. “Tornou-se um símbolo da polarização”, reconheceu Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia. “Nossos agricultores merecem ser ouvidos”, reforçou. “Muitos se sentem encurralados em um canto”. No mesmo dia também foi descartada a meta recomendada para cortar emissões agrícolas de gases-estufa. Ursula von der Leyen reconheceu que a agricultura europeia tem que transitar para um modelo mais sustentável de produção. Fez uma autocrítica: “Talvez não tenhamos defendido esse ponto de vista de forma convincente”.

A retirada desses dois pontos da pauta tinha endereço e data: a eleição do Parlamento Europeu, em junho. Pesquisas de opinião indicam que a extrema direita pode conquistar muitos assentos e se tornar uma força política importante em grandes economias do bloco. A eleição presidencial de novembro nos Estados Unidos tem o republicano Donald Trump, que retirou os EUA do Acordo de Paris, como nome forte. Em 2024, pelo menos quatro bilhões de pessoas em mais de 40 países irão eleger líderes - é o ano eleitoral mais importante do século, porque ocorre em um momento crucial para o mundo enfrentar a crise climática. “ Com eventos climáticos cada vez mais extremos e frequentes, não há como a população não perceber que, cada vez mais, os eventos afetam sua própria existência. Isso irá se reverter como uma demanda à classe política”, diz Pereira. É como se diz: a mudança virá, pelo amor ou pela dor.

A frase do início da coluna toca em uma segunda preocupação global, a que o multilateralismo anda a passos lentos enquanto a crise climática cresce exponencialmente. O mundo se compromete a distanciar dos combustíveis fósseis - a grande mensagem da COP28, a conferência do clima da ONU que aconteceu em Dubai, em dezembro -, depois de 31 anos de regime climático internacional. A promessa é feita sem prazos, arrancada nos malabarismos da linguagem diplomática, enquanto empresas de petróleo planejam abrir novas frentes de exploração.

O terceiro ponto é menos pragmático: o capitalismo consegue responder à crise do clima? A reunião dos ministros de finanças do G20 nesta semana, em São Paulo, procura encontrar soluções e direcionar fluxos financeiros para alvos menos danosos ao ambiente.

O mundo, contudo, segue mais desigual do que nunca e são os mais pobres quem mais sofrem com a crise climática. Em 2023, os investimentos mundiais em descarbonização somaram US$ 1,3 trilhão, mas só 6% desse valor foi destinado à América Latina, disse Mark Carney, enviado especial da ONU para Ambições Climáticas e Soluções durante a primeira edição do Fórum Brasileiro de Finanças Climáticas, em São Paulo. O grande volume de recursos foi investido na China, nos EUA e na União Europeia. O dinheiro que promove a nova economia global é gasto em países ricos ou na maior (e muito atenta) potência emergente do mundo.

Gente ignorante ganha eleição

É quase irresistível não fazer piada sobre os participantes da manifestação convocada por Jair Bolsonaro. Tudo tão caricato, mas o que vimos é mais alarmante do que cômico. Em público, integrantes do governo Lula ironizaram, enquanto o presidente reconheceu que foi "grande". Pelo menos temos um adulto na presidência.

Tanto faz se foram 185 ou 700 mil, era gente para dedéu na rua, sem falar de lives que reuniram mais de 200 mil pessoas e da mobilização nas redes, na quantidade de artigos, muitos desmerecendo o significado do ato, além dos que se lambuzaram em etarismo, racismo e elitismo. Por mais engraçado que seja, as senhoras que entoam Geraldo Vandré devem acreditar que lutam pela democracia e talvez estejam dispostas a pegar em armas para defendê-la da ditadura em que acreditam viver. O nível de dissonância cognitiva é grande, mas produzir meme não dissolve essa massa antidemocrática.

Tratar o bolsonarismo como um movimento de elite em 2024 é puro elitismo. Mais fácil personificar a extrema-direita como a velha loira botocada do que reconhecer que Bolsonaro conquistou o voto de gente preta e pobre, que deu as caras na Paulista. Tratá-los como coadjuvantes, numa manifestação em que os endinheirados só participaram porque não querem voltar a dividir o avião com os menos afortunados, é classismo. É enxergá-los apenas como massa de manobra e não como cidadãos atuantes na política. O Brasil é conservador e se encontra muito mais nas bandeiras autoritárias do bolsonarismo do que nas pautas de gente que desfila sua Birken em Santa Cecília.

Não sei se a esquerda morreu como esquerda, como afirma o filósofo Vladimir Saflate, mas anda muito distraída e ensimesmada com o fato de ter voltado ao poder, sem reconhecer que venceu uma eleição dificílima e que talvez o verdadeiro segundo turno seja o de 2026. Como vimos em 2018, gente ignorante e caricata ganha eleição.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Pensamento do Dia

 


'Orgulho' de sangue

Cemitério de Gaza em ruínas pelos tanques israelenses
Estou pessoalmente orgulhosa das ruínas em Gaza. Que daqui a 80 anos todos os bebês possam contar aos seus netos o que os judeus fizeram quando assassinaram suas famílias, os estupraram e sequestraram seus cidadãos!
May Golan, ministra da Igualdade Social de Israel


Vidas interrompidas

Roberto Bolaño publicou um estranho livro (A literatura nazista na América, Companhia das Letras), que não é “sobre” literatura (é “pura” literatura), não versa sobre nazismo (é bem mais complexo que isso), não trata somente de tipos literários – naquele sentido do típico de György Lukács – mas de situações análogas ao conservadorismo e ao nazifascismo, com escritores imaginários e títulos inventados. O livro é, de certa forma, uma metáfora dos nossos tempos de fascismo, manipulação ideológica e de cansaço da democracia liberal, provocado pelo domínio das redes com os monstros que ressurgem no fim das utopias.

Eis alguns de Roberto Bolaño: Luz Mendiluce, que “afundada no desespero tem aventuras com personagens portenhos da pior espécie”, publica um corajoso poema “Com Hitler fui Feliz”; o escritor brasileiro (inventado) Amado Couto, que escrevia contos “que nenhuma editora aceitava, depois foi trabalhar nos esquadrões da morte”; a incrível poetisa Daniela Montecristo, que descreve um IV Reich feminino com sede em Buenos Aires e campos de treinamento na Patagônia, que desfilam inverossímeis, mas críveis, quando desperta na nossa memória.


Quando a realidade é dura demais os sonhos fenecem, as utopias cansam. As paisagens se tornam só molduras de recuperação da história que não se revela. A realidade – dura demais – é um tormento que ora se torna uma reportagem insensata do espírito, ora uma obra de arte pendente de uma cumplicidade do leitor com o autor. Estes às vezes não se conectam, pois compõem um elo idêntico ao que viceja entre um comprador atônito pelos preços e um vendedor desesperado por uma saída na sua vida sem rumo.

Certa vez um amigo aleatório me disse que o fascismo, no plano da pura subjetividade, era o tormento que conjugava bilhões de irritações que paulatinamente corroíam o espírito humano e instalavam uma espécie de antivírus, que imunizava as pessoas, tanto para receberem, como para darem solidariedade e empatia. Javier Milei e Benjamin Netanyahu, propagadores desse antivírus, são neoliberais, populistas e violentos, dotados de um ódio extremo ao humanismo das Luzes.

Basta lembrar – por exemplo – que Javier Milei é contra a educação pública gratuita e que não se importa de, não só semear a pobreza e a ignorância, mas também de matar as pessoas de fome, para salvar o “mercado” e o “ajuste”. Basta lembrar também que Benjamin Netanyahu afirmou, com todas as letras, que “Hitler não pretendia matar os judeus” e também se comprometeu de fazer (e faz) uma chacina em Gaza e que – compromisso cumprido – vai ser lembrada por muitas gerações.

Além disso, Benjamin Netanyahu usou, demagogicamente, o Museu do Holocausto para tentar exercer o monopólio da dor de todo um povo, num gesto especial de provocação extremista, visando encobrir – na atenção da imprensa mundial – os crimes de guerra que vem cometendo contra a comunidade Palestina em Gaza. E mais: o fez querendo dizer que Lula não se importava com a barbárie do Holocausto. Mentiroso, fascista e manipulador.

Alega a chancelaria israelense que as expressões usadas por Lula para se referir ao Holocausto ofenderam a sensibilidade judaica no mundo inteiro, o que pode ser verdade, mas como as palavras podem ser interpretadas por dentro das dores adquiridas na história de quem disse – como Benjamin Netanyhau – que Hitler “não queria matar os judeus”, deveria, ser mais comedido para respeitar o luto coletivo de Gaza e as dores do seu próprio povo.

Os assassinatos da ação terrorista de 7 de outubro contra Israel seriam – para a direita israelense – a motivação dos assassinatos em massa na Faixa de Gaza, mas o que pretende a violência desmedida do Estado de Israel é a legitimação da expansão colonial-imperial, que se sucedeu – processualmente – após os Acordos de Oslo “sob os olhos do ocidente.”

A tese de Enzo Traverso em “Las nuevas caras de la derecha” (Clave Intelectual, Siglo Veinteuno, p. 33) sustenta que classificar alguém como “populista” diz mais a respeito a quem utiliza o conceito do que aquele que é imputado como tal. É que a palavra se tornou uma “casca vazia”, mais propriamente uma gigantesca “máscara” de manipulação política e de exercício de dominação mental.

A categoria política populismo, diz Enzo Traverso, passou a ser uma arma de combate político que é apontada para estigmatizar aversários. Dizer que alguém é populista é o mesmo que dizer que esta pessoa não pode desvendar o conceito que está por trás do massacre social do neoliberalismo. Já foram classificados como populistas, Nicolas Sarkozy, Lula, Bernie Sanders, Hugo Chavez, os Kirchner, Donald Trump, Matteo Salvini, Melanchón, Evo Morales e Jair Bolsonaro, o que no fundo – prossegue Enzo Traverso – indica que, mais além da “elasticidade e ambiguidade”, o conceito que é usado sem nenhum critério deve ser atentado – em especial – para o sentido do seu uso.

Já é muito evidente que quem usa a “ofensa” contida na palavra “populismo” pretende, preliminarmente, dizer o seguinte, independentemente de quem for o adverso: estou longe da social-democracia, acho o Estado Social uma besteira e o humanismo democrático – que pode verter, ou não, por dentro de uma política populista – não pode ser respeitado como “política pública”. O anátema do populismo funciona então como um esconderijo de quem não quer ou não sabe que ele já se tornou uma barreira oportunista da ignorância.

Observemos como os comentaristas neoliberais da grande imprensa fazem este jogo, que requer, ao mesmo, tempo aproximação e distanciamento de figuras de centro como o Lula, e toleram – muitos deles – também Jair Bolsonaro como um ex-chefe de Estado que errou, mas quis o bem do país. Observem que eles não aceitam chamar Benjamin Netanyahu de criminoso de guerra ou de “assassino em série”, ou de populista sanguinário operando na política internacional do globalismo militarizado.

Mas existe uma máscara elementar da razão para o mercado, que está na base deste comportamento atrabiliário dos que usam o populismo por dentro do rastro do ódio do fascismo militante. Aldous Huxley afirmava que “a máscara é a essência” como “casca vazia” como desinformação ou como atestado de preguiça mental que dispensa fundamentação: quem usa a palavra populismo contra outrem – pensam os seus usuários – apenas defende a modernidade e a “liberdade” e quem sofre “acusação”, está excluído de ser ouvido sobre o futuro.

Uso a palavra populismo, neste texto, para emitir juízos sobre quem – para atacar adversários ou inimigos – manipula palavras, recursos e situações históricas, para conquistar de forma irracional as mentes do seu povo, visando exercer o poder pela guerra em nome da falsificação da nação.

O uso das palavras ou a sua supressão, num debate de grande envergadura moral e política, como na recente polêmica sobre as palavras de Lula sobre os crimes de guerra que estão sendo cometidos pelo governo de Israel – em nome de seu Estado – não fez em nenhum momento que Benjamin Netanyahu fosse apontado como um perigoso assassino em série, nem como um chefe de Estado populista que preza a guerra, não a paz.

William Faulkner estava vivendo em Nova Orleans quando conheceu Sherwood Anderson (1876-1871), que foi trabalhador braçal – militar que entrou em guerra – funcionário de editoras e depois de agências de publicidade, que se tornou um dos grandes mestres do conto americano. Romancista e poeta, foi paradigma de toda uma geração de escritores que se projetaram na literatura americana do Século XX.

Nas ruas em longas caminhadas, o escritor “maduro” que era Sherwood Anderson, sem o saber conversava com quem seria uma figura exponencial da literatura mundial e que iria se tornar um escritor mais imponente do que Anderson: este escrevia duramente pela manhã para depois conversar, caminhar e beber, com o então obscuro William Faulkner. As caminhadas um dia cessaram, o que gerou um episódio magno do acaso e da ironia, já contado como paródia do nascimento de um romancista.

Um dia Sherwood passa pela residência de Faulkner – que se ausentara há alguns dias dos passeios conjuntos – para perguntar por que ele, William Faulkner, desaparecera, quando ouviu dele uma resposta inesperada: “Estou escrevendo um livro”. “Meu Deus!“ – disse Sherwood Anderson e foi embora. A Sra. Anderson alguns dias depois encontra Faulkner na rua e lhe dá um recado, sobre o dito livro (Soldier’s Pay) – em produção: “ele disse que se não tiver que ler o manuscrito dirá ao seu editor para aceitá-lo”. “Feito!”, disse o futuro Prêmio Nobel de Literatura, que assim se assumiu como escritor profissional. Vida e imaginação.

“A vida desprovida de imaginação não oferece histórias para contar” (…), sem ela os tempos difíceis não encontram as palavras capazes de despertá-los do passado sonolento”, escreve Maria Rita Kehl, apresentando um belo livro de contos e memórias de Flávio Aguiar (Crônicas do mundo ao revés, Boitempo). Num dos melhores momentos da obra o personagem, como se fosse o autor conversa com um vendedor em Abidjan, na Costa do Marfim, que quer lhe vender algo. Surpresa.

Não se trata, como parecia, de uma ampola de vidro e um caco de espelho, mas do que residia na intimidade destes objetos: uma história de amor e de destino, que acompanhava o “caco” e a “ampola” que se instalariam no canal da memória do escritor, prometendo um pequeno vínculo com a história.

Nestes fragmentos da história não estão os vírus do fascismo, nem o fim da imaginação. Não são fragmentos, como as falas de Benjamin Netanyahu, que geram os ódios às utopias e desatam as tormentas do mal. Estas não estão no livro de Roberto Bolaño ou nas conversas simples entre William Faulkner e Sherwood Anderson. Não estão no fim da história, mas no tecido do seu recomeço permanente, que vai mais além das armas e dos ritos assassinos do poder dos que – viciados em guerras e mentiras – querem normalizar as vidas interrompidas.

Como disse William Faulkner, quando recebeu o Prêmio Nobel em 10 de novembro de 1950: “Considero que o homem não só haverá de resistir, mas também de prevalecer. E é imortal não por ser o único entre os animais que está dotado de uma voz inextinguível, mas pelo fato de possuir uma alma, um espírito capaz de compaixão sacrifício e resistência”. Neste momento é onde está Lula contra a guerra de extermínio e pela compaixão de William Faulkner.

Lula e Netanyahu

Matéria no Jornal “The Guardian” cita que, em 1982, depois de assistir cenas do bombardeio de Beirute, o presidente Ronald Reagan, dos Estados Unidos, ligou para o primeiro-ministro Menachem Begin, de Israel, e disse: “Isto é um Holocausto”. Duas horas depois, segundo o jornal, o bombardeio estava suspenso. Do ponto de vista histórico, Reagan, tanto quanto Lula, podem ter exagerado na dose, não na essência política.

Há quatro meses, o governo de Benjamin Netanyahu despreza estatísticas e imagens que mostram a mortalidade e a destruição em Gaza. Arrogantemente ignoraria fala do Lula repetindo a condenação ao Hamas e alertando para a tragedia humanitária dos constantes bombardeios, invasão e assassinatos de civis, crianças, mulheres.

Ao forçar a dose, por descuido linguístico ou por cálculo político, Lula conseguiu incomodar o governo Netanyahu, chamar a atenção para o fato de que a brutalidade militar pode ser comparada a gestos cometidos pelos nazistas. O presidente acertaria plenamente se comparasse o tratamento aos palestinos em Gaza com o tratamento dado nos guetos aos judeus pelos nazistas. Mas esta comparação não incomodaria ao governo de Israel. Foi ao criticar de forma tão enfática que Lula conseguiu abalar a arrogância e a prepotência desumana do senhor Netanyahu.


Como político, Lula explicitou mais uma vez sua repulsa ao terrorismo do Hamas, e carimbou enfaticamente o que o atual governo de Israel está promovendo sobre a população de Gaza. Na essência, chamou atenção ao fato de que os métodos usados pelo governo Netanyahu para impor sofrimento imposto ao povo palestino tem semelhança com alguns usados pelos nazistas contra o povo judeu.

O que é feito em Gaza não deve ser comparado filosófica e historicamente com a totalidade do holocausto, mas pode ser comparado politicamente com operações do nazismo, tal como seus guetos contra judeus e o bombardeio contra todos os habitantes de Lídice, na Tchecoslováquia. Lula não negou o holocausto, não acusou o povo de Israel, apenas comparou os atos de Netanyahu, cujo governo foi salvo pelo Hamas, com atos do nazismo. Nisto ele não errou. Seria um erro responsabilizar Israel, ainda mais aos judeus, como também seria errado responsabilizar aos alemães pelos crimes de Hitler, ou aos brasileiros pelos crimes dos ditadores. Os crimes de Hitler foram de Hitler, os de Netanyahu são de Netanyahu. Por isto, tratar o Lula e todos que o apoiam neste momento como antissemita é uma manipulação.

A declaração do presidente Lula citando o holocausto deveria servir de alerta aos que justificam a morte de milhares de crianças, a fome, o desespero. Por pior que sejam os gestos israelenses em Gaza, nada deve nos fazer cair no antissemitismo, da mesma maneira que por pior que fossem os gestos terroristas palestinos em Israel, nada deve justificar o massacre do povo em Gaza, executado por um governo que não teria sobrevivido sem o brutal ato terrorista do Hamas, matando e sequestrando. Lula verbalizou isto ao denunciar o terrorismo do Hamas e o barbarismo não menor do governo de Israel usando e degradando a imagem moral e a credibilidade técnica das Forças Armadas de Israel, tão admiradas no passado.

A corajosa declaração de Lula deixa-o ao lado dos humanistas contra a desumanidade. Mais sintonizado com os grandes pensadores judeus, do que estão os fundamentalistas do atual governo de Israel.

No futuro, quando forem escritos livros e feitos documentários cinematográficos sobre esta guerra, a fala de Lula prevalecerá como a voz que não silenciou e incomodou Netanyahu, ao usar palavra forte para despertar aqueles que a arrogância cegou e ensurdeceu. Lula, fez o mesmo que Reagan 40 anos atrás, pena que o Brasil não tem a força dos Estados Unidos, nem o governo Netanyahu a solidez do governo Begin. Sua fala não tem a força para parar a guerra, mas dará uma contribuição para isto, ao ter abalado a arrogância fria e desumana do governo de Israel.

Lula ficará na história como quem estava do lado certo, Netanyahu como quem estava do lado errado por ter traído a história do pensamento humanista dos judeus e permitido que o mundo, não apenas o presidente Lula, compare seus gestos com gestos do maldito governo nazista.

Políticas para jovens são urgentes

Tem sido muito raro construir consensos no sistema político brasileiro atual. As relações entre o Executivo e o Legislativo se tornaram mais complicadas desde o segundo governo Dilma, os congressistas estão em constante embate com o STF e a sociedade está fortemente polarizada. Mesmo assim, em determinados temas o conflito dá lugar à cooperação. Esse é o caso da aprovação da poupança para alunos mais pobres do ensino médio público.

Intitulado Pé de Meia, é um programa fundamental para um grupo essencial para o presente e o futuro do país: a juventude. Trata-se de uma excelente notícia, mas ao mesmo tempo revela uma carência perigosa de ações à população mais jovem.

Não faltam prioridades num país tão complexo e desigual como o Brasil. Mas há temáticas que deveriam merecer mais atenção por conta de quatro fatores. O primeiro diz respeito ao número de pessoas de um determinado grupo que estão numa situação social complicada.

Além disso, deve-se levar em consideração o impacto sistêmico desse problema. Isto é, os vários males causados pela não resolução de determinada questão. Um terceiro ponto também é central: como este tema faz a ponte entre o presente e o futuro do país? Por fim, um aspecto prioritário é aquele que pode modificar a forma de se ver e conduzir a política, gerando um efeito bola de neve na agenda pública.

Segundo dados do IBGE, o número de jovens de 15 a 29 anos que nem estuda nem trabalha é de quase 11 milhões, totalizando cerca de 22% desse grupo populacional (mais de um quinto da população jovem). Num estudo recente da OCDE, o Brasil era o segundo país com mais jovens nem-nem entre 37 nações analisadas. A situação é muito ruim em ambos os gêneros, mas a maior parte dos nem-nem é composta por mulheres e, do ponto de vista social, pelo contingente mais pobre da população.


Esse retrato já é suficiente para apontar o tamanho do problema da juventude brasileira. É verdade que já foi pior, e a melhora teve a ver, nas últimas décadas, com a maior inclusão de jovens no sistema educacional. Mesmo assim, cerca de 35% dos jovens de 15 a 18 anos estão fora da escola, sendo o principal momento da evasão escolar brasileira.

Por que os jovens abandonam a escola? Por que essa faixa etária é aquela com as maiores taxas de desemprego e informalidade? Essas perguntas deveriam ser urgentemente enfrentadas, pois o efeito sistêmico desse problema é muito danoso à sociedade. Mais jovens fora da escola e do trabalho significa aumentar a mão de obra disponível à criminalidade - e o crescimento estrondoso do crime organizado nas últimas décadas tem muito a ver com as fragilidades da política para a população juvenil.

Bom que se diga que a juventude sofre aqui nas duas pontas do problema: ela é sujeito e também objeto da violência social, com grande número de homicídios de jovens, especialmente os mais pobres, periféricos e negros. Ouvir as músicas dos Racionais é entender como esse duplo processo perverso afetou a juventude da periferia paulistana, de onde vim.

Ter mais jovens sem perspectiva na sociedade afeta a produtividade presente e, principalmente, futura da economia brasileira. Uma boa parte desse grupo está em posições precárias, com destaque importante para a ocupação de postos na economia uberizada dos aplicativos de entrega e/ou transporte. Qual possibilidade de aprimoramento de habilidades e competências laborais mais amplas terá essa parcela da população? Qual será seu futuro, ou mesmo presente, em termos de proteção social?

Uma juventude com pouca experiência coletiva em escolas ou no trabalho tende, ainda, a ter um processo mais precário de formação de consciência cidadã. Soluções mágicas, quando não violentas, podem se tornar o mantra político dessa faixa etária. O populismo de extrema direita agradece.

Esse alijamento social facilita igualmente a criação de uma geração de homens com autoestima prejudicada, talvez mais tendente a mover-se pelo ressentimento em sua visão de mundo, ao passo que um contingente expressivo de mulheres seguirá mais o caminho perverso da mãe solo abandonada, grande chaga da sociedade brasileira, com poucas chances de mobilidade social. Eis aqui um combustível para famílias se tornarem mais instáveis e com forte potencial de se produzir violência doméstica, majoritariamente voltada contra o gênero feminino.

É grande a lista de efeitos sistêmicos derivados do fato de se ter uma ampla parcela da juventude desassistida por políticas públicas efetivas. O resultado disso não afeta apenas o presente do país. O Brasil sempre acreditou na máxima de que seríamos a nação do futuro.

Isso só é possível se crianças e jovens forem prioridade, algo que só começou a acontecer em grande escala na história brasileira a partir da Constituição de 1988 e da expansão subsequente do Estado de bem-estar social nos períodos FHC e Lula, com avanços inegáveis, mas que ainda são claramente insuficientes frente às nossas necessidades.

O maior exemplo disso é que se abriu nas últimas décadas uma janela demográfica que permitiria maior produção de riqueza. Parte dessa oportunidade foi concretizada, só que o país aproveitou, por ora, muitíssimo menos essa fortuna sociológica do que poderia. Em boa medida porque investiu pouco e de forma ineficiente na formação e qualidade de vida da população jovem.

Desse modo, aquilo que era um bônus pode se transformar naquilo que o economista Marcelo Neri tem chamado de “ônus demográfico”, um modo sutil de definir a quebra da ponte entre o presente e o futuro.

Produzir boas políticas públicas para a juventude, ademais, pode ser uma boa forma de se mudar a qualidade do debate político. É possível acompanhar as ações e resultados de programas voltados aos mais jovens, aferindo com certa rapidez o sucesso, fracasso, problemas e aprendizados nesse processo. Assim, a discussão deixa de ser orientada basicamente por argumentos ideológicos quase sempre referenciados a grupos insulados, aumentando as chances de ser uma contenda mais aberta a opiniões baseadas em evidências, com maior probabilidade inclusive de haver convencimentos e consensos entre setores diferentes da sociedade.

Além disso, discutir o presente e o futuro dos mais jovens por meio de diagnósticos e prognósticos claros é muito mais proveitoso para o país do que gastar um enorme tempo com querelas sobre valores pessoais, uma vez que o debate sobre estes últimos é quase nada efetivo na transformação da realidade social e econômica brasileira. Também vale ressaltar que o tema da juventude, pensado pelo ângulo das políticas públicas, tende a dividir menos os grupos políticos do que as grandes questões econômicas ou de cunho moral.

Colocar a juventude no centro do debate público é uma forma de envolvê-la e transformá-la. Na atual situação de carência e pouca perspectiva de melhora futura, o risco dela se alienar da participação ou de amarrar-se a posições populistas de extrema direita é muito factível e perigoso. Uma geração de jovens que vira prioridade e que se torna sujeito desse projeto transformador é uma receita importante para alterar a política presente e vindoura, gerando líderes que apontem a possibilidade de renovação do país.

A aprovação do programa Pé de Meia foi um jogo de soma positiva que envolveu múltiplos atores. Méritos devem ser divididos pelos presidentes da Câmara e do Senado, pelo ministro da Educação, pela deputada Tabata Amaral e pela ministra Simone Tebet (mães dessa ideia há algum tempo), pela racionalidade adotada pela oposição - majoritariamente bolsonarista - e pela liderança do presidente Lula, que abraçou o projeto.

Mas isso deveria ser só o começo de um processo que deve se orientar, primeiro, por uma perspectiva intersetorial e de longo prazo, dado que a melhoria das condições juvenis vai além da questão educacional, passando por temas como esporte, cultura, saúde, segurança pública e orientação para o trabalho - e aqui a educação profissional deveria ser uma prioridade máxima.

O segundo passo é adotar uma governança colaborativa das políticas para a juventude, congregando os entes federativos e atores sociais - como ONGs, igrejas, empresas etc. - porque nenhuma mudança de larga escala será realizada sem esforços amplos e conjuntos.

Terminando esse ciclo virtuoso, é necessário ter um modelo muito bem definido de implementação de políticas públicas, incluindo aí formas contínuas de avaliação e aprendizado, bem como a consulta regular dos jovens e suas famílias.

Em geral, os governos funcionam mais pela lógica setorial do que pela organização sistêmica de um problema. Uma forma efetiva de mudar a realidade - embora não seja a única e nem contrária às áreas de políticas públicas - é organizar a ação estatal por grupos sociais. Políticas para idosos, pessoas com deficiência e para mulheres, por exemplo, são essenciais e têm avançado, gradativamente, no Brasil. Porém, no campo da juventude os avanços foram muito menores em termos de organicidade e coordenação da enorme fragmentação de programas.

É urgente que tenhamos um plano integrado com uma definição de uma governança colaborativa e de longo prazo para os jovens brasileiros, antes que eles envelheçam mais pobres e vulneráveis ou morram pelo meio do caminho. Perder essa oportunidade agora é reduzir nossa estatura política e moral como construtores de um futuro melhor aos nossos filhos e netos.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Apoiamos as declarações do presidente Lula e repudiamos as ofensas sionistas

Dando um passo além nas contínuas denúncias dos crimes cometidos por Israel contra os palestinos, o presidente Lula causou furor ao fazer uma comparação entre o que ocorre hoje em Gaza e o que Hitler fez com os judeus durante o nazismo.

A comparação entre genocídios é sempre delicada pois a experiência vivenciada por cada povo afetado é inigualável. Cada um representa uma narrativa singular e dolorosa na história das comunidades vitimadas. Logo, não há como estabelecer qualquer hierarquia entre genocídios. É impossível estabelecer uma métrica objetiva para determinar o 'pior' genocídio da história. Categorizar historicamente vítimas maiores ou menores é uma perigosa armadilha de reprodução de racismo.

A contradição de o povo judaico ser ora vítima e agora algoz é palpável, tenebrosa e desalentadora. Lula externou o que está no imaginário de muitos de nós. Uma comparação que causa muita dor a judias e judeus de todo mundo, que tiveram as suas vidas cindidas pelo genocídio dos judeus na Europa, e agora veem um crime similar sendo cometido, supostamente em seu nome. Enquanto coletivo de judias e judeus, temos antepassados que foram vítimas do Holocausto nazista, e entendemos que nosso imperativo ético é nos posicionarmos contra o genocídio do povo palestino e contra a utilização da nossa defesa como justificativa.

Se a criação e fundação de um Estado judaico foi uma medida de sobrevivência num mundo sitiado, ela logo se tornou um pesadelo. O Estado de Israel não trouxe emancipação verdadeira aos judeus pois a sua existência é mantida às custas da negação da autodeterminação dos palestinos. As lideranças israelenses seguem promovendo um massacre contra palestinos e ainda ameaçam a vida de judeus e judias em todo o mundo. Israel representa hoje a maior fonte de insegurança para todos os judeus do planeta ao usar nossa identidade como fachada e justificativa para sua campanha de terror.

Por isso, defendemos e acreditamos que as palavras de Lula são de grande importância pois levantam questões relacionadas à urgência da ação, como um chamado definitivo dirigido a todos para agir diante do que ocorre em Gaza neste momento. Frente à incapacidade da ONU e de várias organizações internacionais em conter a violência perpetrada por Israel em Gaza, destaca-se a importância vital da postura demonstrada por líderes internacionais como Lula, que levantam suas vozes contra o que é já considerado por incontáveis especialistas como um genocídio contra o povo palestino.

As palavras têm poder. Se a forma como Lula se expressou na ocasião foi pouco cuidadosa – tropeçando justamente neste ninho de comparações forçadas – sua fala tem o objetivo de atingir a imaginação e provocar uma crise moral sobre Israel. O pedido de impeachment protocolado pelos deputados bolsonaristas é uma medida descabida, assim como as acusações de antissemitismo – cujo real objetivo é deslegitimar o governo e a diplomacia brasileira. Não acreditamos que judeus brasileiros estão em risco por causa de sua declaração.

Apoiamos as colocações do presidente Lula e cobramos que a radicalidade de suas palavras seja colocada em prática. Seria um gesto diplomático de relevância gigantesca romper todas as relações entre o estado brasileiro e Israel, em especial as relações militares que também fortalecem a barbárie em terras brasileiras, com a compra de armas e tecnologias de controle social que são usadas para atingir a vida do povo negro nas favelas. Convocar o embaixador brasileiro em Tel Aviv foi um passo ainda insuficiente nessa direção.

Por fim, convidamos a todas e todos, mas principalmente ao governo brasileiro a atender as demandas do movimento internacional de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), liderado pelas bases da sociedade civil palestina. O povo palestino tem pressa e nossas ações têm poder.

Vozes Judaicas por Libertação (Coletivo é formado por judeus não sionistas que tem como objetivo criar um espaço alternativo à ideologia sionista e combater o colonialismo do Estado de Israel)

'Vamos completar o trabalho'

Aqueles que querem nos impedir de operar em Rafah estão basicamente nos dizendo: 'Percam a guerra'. É verdade que há muita oposição no exterior, mas este é exatamente o momento em que precisamos dizer que não vamos fazer metade ou um terço do trabalho.
Benjamin Netanyahu

Acabar a guerra “o mais rapidamente possível” quer dizer nada

Dada à sua natureza excessivamente conservadora, como demonstrado ao longo da história, a tradicional imprensa brasileira, só agora e com bastante atraso, começa a dar-se conta de que o maior obstáculo à paz no Oriente Médio é o governo de extrema-direita do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, pela terceira vez no cargo.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sabe disso, mas não quer admitir às vésperas de uma eleição difícil contra o ex-presidente Donald Trump. A maior colônia de judeus fora do Oriente Médio está justamente nos Estados Unidos. Israel é visto pelos americanos como seu maior porta-aviões naquela parte inóspita do mundo.

Os líderes das maiores potências ocidentais também sabem, mas suas ligações com o povo judeu, alimentadas por um antigo sentimento de culpa e negócios que interessam aos seus países, os impede de dizer com clareza que é preciso dar um basta à guerra que ameaça dizimar os palestinos. De resto, não ousam contrariar os Estados Unidos.


Em agosto de 1982, narra a jornalista Lúcia Guimarães na Folha de S. Paulo, o então presidente americano Ronald Reagan, com um telefonema, sustou o bombardeio israelense de civis no Líbano. Reagia assim a um dia de ataques que haviam deixado 100 civis mortos. Reagan ligou para o primeiro-ministro Menachem Begin e disse:

“Isto é um Holocausto”.

Begin, em tom sarcástico, respondeu, segundo Lou Canon, biógrafo de Reagan:

“Eu acho que eu sei o que é um Holocausto”.

Vinte minutos depois, Begin ligou de volta avisando que tinha suspendido o bombardeio. Biden não faz o mesmo com Netanyahu por razões que só ele e Deus conhecem. Não se passa um dia sem que Biden, pessoalmente ou por meio de porta-vozes, não diga que a matança de palestinos tem que ser interrompida.

Mas todas as resoluções apresentadas ao Conselho de Segurança que recomendavam o fim da guerra foram vetadas pelos Estados Unidos. Esta semana, mais uma foi vetada. O governo americano diz que prepara a sua, recomendando que a guerra seja cesse “o mais rapidamente possível”. Quer ambiguidade maior?

O mais rapidamente possível quer dizer o quê? Uma semana, um mês, um ano? Quem definirá o prazo para que os canhões silenciem, e os mísseis e bombas fornecidos pelos Estados Unidos deixem de ser jogados sobre palestinos em fuga dentro da Faixa de Gaza, a correrem para um lado e para outro obedecendo às ordens de Israel? É um tiro ao alvo.

Biden, e mais recentemente os líderes europeus, dizem que o fim da guerra implicará na devolução pelo Hamas dos reféns que eles fizeram, da libertação por Israel de palestinos presos em suas masmorras, e do início “o mais rapidamente possível” da criação de um Estado Palestino. É a velha tese dos dois Estados jamais implantada.

Na semana passada, por unanimidade, o governo de Netanyahu decidiu que não haverá Estado palestino. A decisão foi ratificada, anteontem, pelo Congresso de Israel. Dos 120 deputados, 99 de diferentes partidos políticos votaram de acordo com Netanyahu, e apenas nove contra, de partidos árabes.

Ahmad Tibi, líder do partido Arab Taal, interrompeu o discurso de agradecimento de Netanyahu gritando: “Será criado um Estado palestino! Apesar de suas palavras, ele será criado!” Após duas advertências do presidente da sessão, Ahmad foi expulso do plenário.

Lula falou em Holocausto para condenar a matança em Gaza. Mas ele não é o Reagan, nem o Brasil os Estados Unidos.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Pensamento do Dia

 


Fracasso moral do mundo em Gaza deveria envergonhar a todos

No momento em que o G20 se reúne no Brasil nesta semana, o número relatado de mortes nas hostilidades na Faixa de Gaza está se aproximando da marca dos 30 mil. Espero que tal fato dê motivos para que os chanceleres reunidos no Rio de Janeiro reflitam sobre o que seus países fizeram ou não fizeram para parar essa situação.

Dizer que a guerra em Gaza é cruel e constitui um exemplo de fracasso humanitário absoluto não é novidade. Não há necessidade de reafirmar o óbvio. Em vez disso, permitam-me que, em nome dos meus colegas humanitários, faça um alerta não só para o dia de hoje mas também para o que receio que aconteçerá amanhã.

O que tem ocorrido em Gaza nos últimos 137 dias é incomparável na sua intensidade, brutalidade e alcance. Dezenas de milhares de pessoas mortas, feridas ou enterradas sob os escombros. Bairros inteiros arrasados. Centenas de milhares de pessoas deslocadas, vivendo nas condições mais precárias, que foram agravadas com a chegada do inverno. Meio milhão de pessoas à beira da fome e sem acesso às necessidades mais elementares: alimentos, água, cuidados de saúde, latrinas. Uma população inteira está sendo destituída da sua humanidade.


As atrocidades que assolam o povo de Gaza —e a tragédia humanitária que estão suportando— estão à vista do mundo, documentadas por corajosos jornalistas palestinos, muitos dos quais foram mortos enquanto o faziam.

Ninguém pode fingir que não sabe o que está acontecendo.

Ninguém pode fingir também que não sabe que as agências humanitárias estão fazendo o seu melhor: Cerca de 160 dos nossos colegas foram mortos, mas as nossas equipes continuam a distribuir alimentos, material médico e água potável. Estamos fazendo tudo o que podemos, apesar dos riscos de segurança, do colapso da lei e da ordem, das restrições de acesso e das tragédias pessoais. Apesar do corte de financiamento da maior organização da ONU em Gaza. E apesar das tentativas deliberadas de nos desacreditar.

A comunidade humanitária que represento acaba de publicar um plano que descreve o que precisamos para aumentar o fluxo e a distribuição de ajuda em Gaza. Nenhum dos pontos do plano é irracional: garantias de segurança; melhoria do sistema de notificação humanitária para reduzir os riscos; equipamento de telecomunicações; remoção de munições não detonadas; utilização de todos os pontos de entrada possíveis.

Mas embora eu tenha dito muitas vezes que a esperança é a moeda do profissional de ajuda humanitária, tenho pouca esperança de que as autoridades nos forneçam o que precisamos para atuar. Quero muito que me provem que estou errado.

Sabemos, sem sombra de dúvida, que as agências humanitárias serão responsabilizadas —já estamos sendo responsabilizados— pela falta de ajuda em Gaza, apesar da coragem, do empenho e do sacrifício de todas as nossas equipes no terreno.

Mas não nos enganemos: as privações impostas à população de Gaza têm sido tão severas que nenhuma quantidade de ajuda humanitária é suficiente. Os obstáculos que estamos enfrentando a cada passo são tão grandes que só podemos fornecer o mínimo necessário.

Os ataques de 7 de outubro contra Israel são abomináveis — condenei-os repetidamente e continuarei a fazê-lo. Mas não podem justificar o que está acontecendo com todas as crianças, mulheres e homens em Gaza. Por isso, a minha mensagem aos chanceleres do G20 nesta semana é clara: temos implorado a Israel, enquanto potência ocupante em Gaza, que facilite a entrega de ajuda —com pouco ou nenhum sucesso. Temos apelado à libertação imediata e incondicional de todos os reféns, com pouco ou nenhum resultado.

Temos instado as partes a cumprirem as suas obrigações de acordo com o direito internacional humanitário e de direitos humanos, com pouco ou nenhum resultado.

Temos exortado os países que deixaram de financiar a Agência da ONU de Assistência aos Refugiados Palestinos (UNRWA) a reverterem a sua decisão —com pouco ou nenhum resultado.

Hoje, imploramos a vocês, membros do G20, que usem a liderança e influência política para ajudar a pôr fim a esta guerra e salvar a população de Gaza. Vocês têm o poder de fazer a diferença. Usem-no.

O silêncio e a falta de ação de vocês só contribuirão para que mais mulheres e crianças sejam jogadas nas valas comuns de Gaza.

As agências humanitárias estão fazendo tudo o que podem. E vocês, o que estão fazendo?

Aquecimento global e descaso impulsionando dengue no Brasil

Resistindo às dores no quadril e nas visões pelo corpo, o aposentado Aramis de Lima, de 62 anos, assistiu com ruptura a um batalhão de funcionários de limpeza pública retirando cerca de duas toneladas de lixo e entulho do terreno vizinho a sua casa. Ele acredita que, se fossem feitas duas semanas antes, já no meio da rápida expansão da dengue , teria escapado de sua primeira contaminação pela doença.

“Aqui na rua, 90% dos moradores pegaram, certamente por causa desse lixo que estava acumulado”, acredita. "Minhas redes tiveram sintomas que provavelmente foram de dengue, mas eu tenho histórico de amputação, dores em decorrência disso, aí unidos com a doença e superados em dores muito fortes, espasmos musculares. Foi complicado", conta. Como sequela temporária, comum para a doença, ocorrem as situações pelo corpo.

Pelas ruas da Vila Jaguara, na zona oeste de São Paulo, não faltam áreas e terrenos que sejam alvos da indignação de Lima e seus vizinhos. Numa área de pouco mais de dois quilômetros quadrados, as equipes de saúde mapearam ao menos seis ferro-velhos e focos de acúmulo de lixo e entulho perfeitos para a procriação do Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue, do zika vírus E da chikungunya .

Paralelamente, 7.369 imóveis receberam instruções com inseticida ou assistência social para evitar os focos do mosquito entre dezembro do ano passado e janeiro deste ano.


Os esforços, porém, não tiveram sucesso e não impediram a Vila Jaguara de deter o título de epicentro da dengue no município de São Paulo. Por lá, a taxa de contaminação é 28 vezes maior que a média paulistana. No Brasil, perde apenas para o Distrito Federal, onde cerca de 2,5% da população contraiu o vírus da dengue nos últimos meses.

Em condições normais de temperatura e chuva, o ciclo de vida do Aedes aegypti, da colocação dos ovos até a formação do mosquito, é de sete a dez dias, explica o coordenador de vigilância em saúde da capital paulista, Luiz Artur Caldeira.

“Se a condição for, por exemplo, de muito calor intenso, esse período pode baixar para até quatro dias, dobrando assim o número de mosquitos em relação ao ciclo normal”, alerta. "Isso é algo que ocorre em boa parte do país desde pelo menos setembro do ano passado, muito por conta do El Niño ", afirma, referindo-se às características caracterizadas pelo aquecimento anormal e persistente da superfície do Oceano Pacífico na região da Linha do Equador.

Especialistas vem alertando que as previsões climáticas extremos de 2023 são fruto direto do aquecimento global provocado pela ação humana. No entendimento do epidemiologista e professor da USP Paulo Lotufo, o que a atual epidemia de dengue ilustra é a extensão dos impactos que as mudanças climáticas geram sobre as populações humanas.

"Quanto maior para o aquecimento do planeta, mais o mosquito vai conseguir se reproduzir. Tanto é assim que ele já está chegando a lugares onde há muito tempo não estava, como Estados Unidos e Argentina. Até bem pouco tempo seria inimaginável fazer fumigação às margens do rio Sena, em Paris, para eliminação do Aedes ”, explica.

Com o calor dos últimos meses, os brasileiros vêm sofrendo na própria saúde essa explosão da armadilha dos mosquitos. Em todo o país, o número de casos confirmados ou sob suspeita de dengue já passa de 653 mil — ou um infectado a cada 347 mil brasileiros. No mesmo período de 2023, o número de casos não chegou a 130 mil. Trata-se de um aumento de 294% de um ano para o outro, e que já provocou 113 mortes, enquanto 438 estão sendo investigadas.

Pelos dados do Ministério da Saúde, o avanço da dengue nunca foi tão rápido no Brasil, e o país pode chegar a 4,2 milhões de casos até o fim do ano.

“A taxa de letalidade da população varia de 3 a 7 por mil, ou seja, 0,3% a 0,7%. Quando eu falo que a taxa de letalidade da dengue é de cerca de 1%, o pessoal fala 'puxa, é pouco', mas não é! É o dobro do que é esperado sem a doença", ressalta Lotufo.

De todas as unidades da federação, o Distrito Federal apresenta o cenário mais complicado. Até 10 de fevereiro, dados do último boletim epidemiológico, foram registrados 23 óbitos pela doença em meio ao surto, que do ano passado para este explodiu em mais de 1.000%, atingindo quase todas as regiões com gravidade. Na capital do país, quase metade das mortes por dengue é de pessoas com mais de 60 anos.

Apesar da estimativa de que 70% da população da Vila Jaguara, em São Paulo, esteja nesse grupo, nenhuma morte foi registrada por dengue neste ano no bairro. O que não impede, entretanto, que os moradores mais velhos tenham a doença.

"Moro há 60 anos aqui e nunca vi nada parecido. Até mesmo minha filha e meus netos deixaram de me visitar nas últimas semanas por medo desse surto provocado pelo lixo espalhado. Esperamos que agora melhore, mas o repelente está sempre na mão, não desgrudamos dele", conta a aposentada Nanci Albanez, que diz aguardar ansiosamente pela vacina, que não tem prazo para chegar à maior cidade do país.

Por conta de limitações na produção da farmacêutica japonesa Takeda Pharma, o Ministério da Saúde comprou para este ano o suficiente para imunizar 2,5 milhões de pessoas com a vacina Qdenga . Por conta disso, apenas 10% de todos os municípios do país serão contemplados este ano, 11 deles em São Paulo, onde a vacinação começa nesta terça-feira, com crianças entre 10 e 11 anos na região do Alto Tietê .

A partir de 2025, entrará em campo ainda uma vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan, que ao contrário da japonesa, exige aplicação única. O epidemiologista Paulo Lotufo, porém, enfatiza que a vacina é um auxiliar e que, agora e no futuro, o fundamental é reduzir o contato da população com o mosquito.

O homem, a guerra, o desastre e o infortúnio

Que estranho bicho o homem. O que ele mais deseja no convívio inter-humano não é afinal a paz, a concórdia, o sossego coletivo. O que ele deseja realmente é a guerra, o risco ao menos disso, e no fundo o desastre, o infortúnio. Ele não foi feito para a conquista de seja o que for, mas só para o conquistar seja o que for. Poucos homens afirmaram que a guerra é um bem (Hegel, por exemplo), mas é isso que no fundo desejam. A guerra é o perigo, o desafio ao destino, a possibilidade de triunfo, mas sobretudo a inquietação em ação. Da paz se diz que é podre, porque é o estarmos recaídos sobre nós, a inatividade, a derrota que sobrevém não apenas ao que ficou derrotado, mas ainda ou sobretudo ao que venceu. O que ficou derrotado é o mais feliz pela necessidade iniludível de tentar de novo a sorte. Mas o que venceu não tem paz senão por algum tempo no seu coração alvoroçado. A guerra é o estado natural do bicho humano, ele não pode suportar a felicidade a que aspirou. Como o grupo de futebol, qualquer vitória alcançada é o estímulo insuportável para vencer outra vez.


Imaginar o mundo pacificado em aceitação e contentamento consigo é apenas o mito que justifique a continuação da guerra. A paz é insuportável como a pasmaceira. Nas situações mais vulgares, nós vemos a imperiosa necessidade de desafiar, irritar, provocar, agredir, sem razão nenhuma que não seja a de agitar a quietude, destruir a estagnação, fazer surgir o risco, a aventura. É o que leva o jogador a jogar, mesmo que não necessite de ganhar, pelo puro prazer de saborear o poder perder para a hipótese de não perder e ganhar. A excelência de nós próprios só se entende se se afirmar sobre o que o não é.

Numa sociedade de ricaços ninguém era feliz. Seria então necessário que por qualquer coisa houvesse alguns felizes sobre a infelicidade dos outros. O homem é o lobo do homem para que este possa ser o cordeiro daquele. Nenhuma luta se destina a criar a justiça, mas apenas a instaurar a injustiça. O homem é um ser sem remédio. Todo o remédio que ele quiser inventar é só para sobrepor a razão ao irracional que de fato é. Toda a história das guerras é uma parada de comédia para iludir a sua invencível condição de tragédia. A verdade dele é o crime. E tudo o mais é um pretexto para o disfarçar. A fábula do lobo e do cordeiro já disse tudo. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais imaginação para inventar razões. A superioridade do homem sobre o lobo é que ele tem mais hábitos de educação. E a razão é uma forma de sermos educados.
Vergílio Ferreira, "Conta-Corrente IV"

Sinuca de bico

Moramos num país tropical, abençoado por Deus, bonito por natureza e dirigido, na maior parte do tempo e dos locais, por pessoas preocupadas consigo mesmas e não em construir um país melhor.

A natureza responde conforme a tratamos: semeie ventos e colha tempestades! Como os danos que lhe causamos são enormes e crescentes, suas respostas são cada vez mais severas. Tratamos muito mal também nossos semelhantes: 70% da espécie vive em desnecessária pobreza, com menos de US$10,00/dia! Esses dois resultados precisam ser revertidos, alterando aquilo que os causam: a busca permanente de “mais”! Mais poder! Mais dinheiro! Mais vendas! Mais consumo! Mais viagens! E, como resultado, menos água! Como será viver sem água?


Vimos a recente seca recorde na Amazônia. A Espanha sofre outra, inédita. Na Catalunha há campanhas intensas para que as pessoas poupem água (se o serviço de água for privado, tal tipo de campanha ocorrerá? Alguém imagina a Coca-Cola, grande consumidora de água, defendendo a redução do seu consumo?) Lá, mais de 6 milhões de pessoas sofrem restrições de consumo; os jardins não mais são molhados, as fontes estão secas, os chuveiros nas praias e piscinas fechados, hotéis encheram piscinas com água do mar e os fazendeiros, que não mais podem irrigar suas plantações, deverão reduzir em 50% o uso de água para seus rebanhos, sob pena de multas. Na Andaluzia, a seca já dura 8 anos, com danos à produção de azeite. Em 2023, a seca na Espanha ficou entre os dez mais caros desastres climáticos no mundo. Como será viver sem água?

Desde 1990, a área do Brasil coberta por água diminuiu 15% e, mantida a busca por “mais”, continuará a cair! Essa alarmante situação não mereceu atenção da imprensa, das redes sociais, dos nossos governantes! E nada de política pública capaz de impedir o agravamento do quadro. Reverter essa tendência horripilante exige políticas que implicarão sacrifícios no curto prazo, em especial dos mais ricos, para que os filhos e netos de todos nós tenham chance de viver, dentro de 20 ou 30 anos, sem sofrer respostas ainda mais drásticas da mãe natureza.

Essa desatenção dos políticos com o longo prazo não é apenas brasileira. Ela resulta de um sistema de eleições periódicas que dá mais chances aos mais ricos e induz os eleitos a se preocuparem, acima de tudo, com sua reeleição, ou seja, com o curto prazo! Não se trata, claro, de acabar com as eleições, mas de mudar as regras do jogo, tornando-o mais, muito mais democrático! Mas, como mudar tais regras nesse sentido, se elas são definidas pelos eleitos, (quase sempre) ricos, focados na próxima eleição e desejosos, cada vez mais, em mudar as regras em seu favor?

Triste situação da democracia ocidental! Como sair dessa sinuca? Não apoiar demagogos que prometem o impossível, o paraíso no curto prazo, mas sim quem diga verdades, defina objetivos viáveis e claros, aponte ganhos e perdas, hoje e amanhã, e traduza em linguagem motivadora as medidas necessárias para trilhar esse novo caminho. Alguém à vista com tais qualidades?

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Pensamento do Dia

 



Uma atração fatal

Entra para a história universal do grotesco a autodúvida escatológica do ex-presidente na reunião de 5/7/22: "Como é que eu ganho uma eleição, um fodido como eu? Deputado do baixo clero, escrotizado dentro da Câmara, sacaneado, gozado, uma porra de um deputado". De fato, um atordoante engano, que começa a desvelar-se pela notícia de que mais de mil pessoas com mandados de prisão pelo 8/1 fizeram doações por Pix à anomalia. Segundo a pesquisa Quaest, 43% das pessoas não veem dedo dele na invasão. Ele já convoca para manifestação em fevereiro.

Viável a hipótese de atração fatal. Num best-seller sobre a Guerra ("O Buraco da Agulha", de Ken Follet), os espiões alemães na Inglaterra são descritos como "gente inútil", velhas solitárias, fascistas loucos e criminosos insignificantes, com algo em comum: a atração por Hitler. Como os vândalos do 8/1, massa de manobra barata.


Nesse gênero ficcional, dados históricos costumam ser verossímeis. Exceto aquele juízo de inutilidade. Na realidade, os comandos ingleses que degolavam sentinelas alemães no deserto africano eram recrutados nessa arraia-miúda social. Os "insignificantes" tornavam-se matadores. Dada a oportunidade, pode-se viver a atração por monstro como licença para assassinar. Plenitude hobbesiana: o homem é o único animal que assassina (outra é a lógica da fera, que mata por fome ou território).

Entender o empoderamento da insignificância exige enxergar o povo real e não derivações de um proletariado idealizado como classe histórica. O povo recém-descoberto à luz das redes sociais, do gnosticismo bronco imiscuído em organizações de poder e do tropismo para a tirania não tem a ver com a ideologia do trabalho sob as formas do capital, e sim com o que a sociedade civil exclui.

Esse segmento sempre existiu como plebe, ralé, lumpen, ou seja, estratos marginalizados e investidos de rancor, abaixo do ordenamento culto que norteia a divisão social. A subjetividade política não mais se deduz da sociedade de classes. Mesmo nos surtos populistas, há surdez à linguagem popular.

A atual ultradireita tem ouvidos abertos. Em princípio, porque não há diferença emocional entre ela e a insignificância cívica: uma massa tosca em que o indivíduo, além do círculo íntimo, não sabe mais ao certo quem é ele mesmo. Mas ouve de espertalhões que é um combatente da "liberdade". De miseráveis a bem-nutridos, fica patente a atração comum por modulações caracterológicas de Hitler, emblema cívico-militar do extermínio. Ou impulsão infanto-midiática para um Godzilla arrasador. É fenômeno impermeável à razão liberal, com "monstruário" alternável: proscritos reciclando lixo político, candidatos poluindo a civilidade.

Duas raças

Acrônimos são aquelas sopas de letras maiúsculas que costumam designar entidades de nomes compridos como IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ou Unesco (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization). Não existem para provocar emoção ou sentimento — em si, são neutros, indolores, inodoros. Exceto pelas cinco letras de WCNSF. Essas ferem, fazem chorar, causam horror e dor. Significam Wounded Child, no Surviving Family, ou Criança Ferida sem Familiares Vivos. A sigla nem existia antes do ataque terrorista do Hamas de 7 de outubro e da consequente terraplenagem da Faixa de Gaza desencadeada por Israel. Nunca fizera falta, pois em nenhuma guerra anterior a orfandade infantil fora tão maciça.

De qualquer ângulo que se olhe, as crianças palestinas do enclave formam um capítulo à parte da desumanidade em curso. Estatísticas de guerras anteriores mundo afora registravam média de 20% de crianças do cômputo total de vítimas. Em Gaza, elas são 40%. Dados levantados pela Save the Children apontam para mais de dez crianças mutiladas por dia, com a perda de uma ou ambas as pernas. Isso há quatro meses. E talvez já chegue a 25 mil o número das que perderam ao menos um dos pais na guerra.


Em Gaza, as crianças WCNSF abrigadas em hospitais ou junto a agências internacionais por vezes nem sequer sabem declinar o nome. Emergem mudas de algum escombro, cobertas de pó e sangue. Não choram, não demonstram medo. Estão em choque, à deriva na devastação geral. Inicia-se então uma labiríntica procura por alguma família aparentada capaz de acolher mais uma infância em ruínas. Às que têm a sorte de continuar com algum colo de mãe ou presença de pai/tio/avô por perto, as sequelas previsíveis são inomináveis. Uma observação do chefe de comunicação do Unicef dá a dimensão do drama sentido por qualquer adulto na população cada vez mais sitiada: fazer de tudo para que a criança não perceba que você perdeu o controle. Essa talvez seja a carga mais dura de qualquer adulto em Gaza, hoje.

A pediatra americana Seema Jilani, assessora sênior do Comitê Internacional de Resgate, que atua globalmente em emergências de saúde, passou duas semanas no Hospital Al-Aqsa de Khan Yunis. Em longa entrevista a Isaac Chotiner, da New Yorker, ela relatou como foram suas primeiras horas de plantão ali. Chegara acompanhada de alguns cirurgiões, um obstetra, um anestesista e um intensivista vindos do Cairo.

Já trabalhara em emergências no Afeganistão, no Iraque, no Líbano, no Egito, na Turquia, na Líbia, no Paquistão e há 19 anos fazia pit stops na Cisjordânia e em Gaza. Ainda assim, nada a preparara para o horror que viu no enclave desta vez. A ausência de dignidade ali possível lhe pareceu abissal.

A primeira criança a cair sob seus cuidados foi um menino de 12 meses:

— Ele tinha o braço e a perna direita arrancados por uma bomba. A fralda estava ensanguentada e se mantinha no lugar, apesar de não haver mais perna. Eu o tratei primeiro no chão, pois não havia macas disponíveis (...). A seu lado havia um homem emitindo os últimos respiros. Estava ativamente morrendo havia 24 horas, com moscas por cima (...) O bebê de 1 ano sangrava profusamente no tórax... Não havia nem respirador, nem morfina, nem medidor de pressão em meio ao caos. (...) Um cirurgião ortopédico envolveu com gaze os tocos da criança e comunicou que não a levaria de imediato para o centro cirúrgico porque havia casos mais urgentes — contou com crueza a dra. Jilani.

E concluiu, com empatia, que não conseguia imaginar o que poderia haver de mais emergencial que um bebê de 1 ano sem mão nem perna, sufocando no próprio sangue. A resposta, é claro, todos sabemos, a pediatra também: algum outro estropiado da guerra, com pelo menos uma ínfima chance de ser salvo. Considerando as carências colossais, não era o caso daquele bebê.

Indagada sobre como avaliava a utilidade de sua presença no caos do Al-Aqsa, Jilani apontou para algo muito além da emergência clínica: para o corpo médico do hospital, a chegada da equipe estrangeira significou que eles não haviam sido esquecidos, evidenciava que o mundo não os deixara sozinhos.

Dias atrás, mais um complexo hospitalar em Khan Yunis foi submetido a assalto maciço por parte das tropas de Israel. Segundo o governo de Benjamin Netanyahu, o hospital abrigava integrantes do Hamas e poderia esconder os restos mortais de alguns dos 130 reféns israelenses ainda em mãos do grupo terrorista. O caos, as mortes, o desamparo de civis apenas se repetem e se avolumam. O anunciado plano israelense de ataque tous azimuts à cidade de Rafah visando a derrotar os terroristas do Hamas é uma insânia. Ali está espremido 1,5 milhão de palestinos já exauridos. Fugiram do chão que habitavam mais ao norte para escapar dos bombardeios. Estão numa ratoeira, enquanto o Egito ergue um muro de 7 metros de altura delimitando vasta área do Sinai. Talvez para recebê-los in extremis? Quem sabe o mundo acorda? Como constatou o maravilhoso psicanalista Viktor Frankl, judeu austríaco que sobreviveu a Auschwitz, no fundo existem apenas duas raças — pessoas decentes e pessoas indecentes.

A diferença entre opinião e juízo crítico

Num percurso guiado pelos testemunhos e orientações de diversos pensadores, tentamos estabelecer uma fronteira entre um pensamento autónomo e crítico, que impediria o indivíduo de se abandonar ao ânimo coletivo, e toda essa dinâmica de manifestações efusivas que usurpam a própria gramática política e política e em último caso nos entregam ao niilismo.


Há uma consciência difusa de que estamos a entrar numa fase extrema de um processo “cujo fim não podemos prever com certeza, mas cujas consequências poderão ser catastróficas”, servindo-nos aqui das palavras do filósofo italiano Giorgio Agamben, numa crónica publicada há pouco mais de uma semana. E se há um esforço hoje, e diante da instabilidade política que se vive por todo o mundo e também no nosso país, para manter uma reflexão crítica sobre os aspetos marcantes da nossa vida pública, escapando àquela tendência para um alheamento do destino político comum, o que, no entender de Eduardo Lourenço, sempre só poderia ser encarado como um sintoma de sonambulismo mental e ético, por outro lado, é difícil não se sentir atraiçoado logo de partida pelos termos com os quais se esgrimem os argumentos em confronto, recaindo estes tantas vezes em eufemismos ou trivializações. Assim, mesmo quando há uma vontade de assumir uma atividade autónoma de juízo, muitas vezes o que afasta tantos é essa perceção muito clara do quanto aqueles que se entregam à atividade política revelam, na verdade, uma menoridade intelectual e cívica confundindo-a com uma mera “participação verbal quotidiana e obsessiva, puramente imaginária ou glandular, nisso que abusivamente se chama ‘a vida política” e que é apenas o comentário gratuito e vão de um processo que de todo em todo escapa aos que o comentam” (E. Lourenço).

Na esfera pública mediática, há muito foi diagnosticado essa forma de degradação do discurso que passa pela devoração a que está sujeito por virtude do dramatismo e das afetações da opinião, esse regime de emoção induzida, de ostentação de um pathos sem substância. A substância é substituída pela guerra das virtudes, em que um conjunto de figuras se digladiam por meio de reações inflamadas, produzindo choques contínuos e fátuas demonstrações de virilidade ou vigor, e tudo isto se torna “a coisa mesma”, a própria substância da política. Assim, como nos diz Roberto Calasso, “a opinião encontra confirmação em si mesma, brota por si - a servidão tornou-se espontânea”.

Este ensaísta e prestigiado editor italiano, que morreu em 2021, notava como a totalidade da opinião constitui então um corpo, esse Grande Animal descrito num excerto memorável da República de Platão: “Cada um desses particulares mercenários, a quem o povo chama sofistas e considera seus rivais na arte, só ensinam as máximas que o próprio povo professa nas suas assembleias, e é a isso que eles chamam sabedoria; como se alguém, depois de ter aprendido a conhecer os impulsos e os desejos de um animal grande e forte, como se deve aproximar dele e tocar-lhe, quando e porquê se irrita e se acalma, os gritos que costuma emitir em cada ocasião, e qual o tom de voz que o acalma ou enfurece, depois de ter aprendido tudo isso durante muito tempo, lhe chamasse sabedoria, e, tendo-o sistematizado numa espécie de arte, embora sem saber ao certo quais desses apetites são belos ou feios, bons ou maus, justos ou injustos, e só aplicasse termos de acordo com os instintos do animal; dizendo que é bom o que lhe agrada, e mau o que o importuna, sem poder legitimar de outra forma essas qualificações; dizendo que é justo e belo o que é necessário, porque não viu e não é capaz de mostrar aos outros até que ponto a natureza do necessário difere, na realidade, da natureza do bom.”

Para Calasso, toda a rede das oposições que até hoje formavam a gramática e a sintaxe do pensamento foi usurpada pela opinião, que domina todos os regimes, sem perfil em todos os lugares e em nenhum, e “o excesso da sua presença é tal que permite apenas uma teologia negativa”. Assim o mais difícil é reconhecer quando se ultrapassou essa fronteira, como reconhecer o que não é opinião. Diz-nos Calasso que não nos podemos socorrer de nenhum mapa de opiniões, que a existir não teria qualquer utilidade, uma vez que “a opinião é acima de tudo um poder formal, um virtuosismo que aumenta constantemente, que ataca todos os materiais. A opinião troça de nós ao aceitar qualquer sentido, o que nos impede de a reconhecer pelas teses que apresenta (…), a opinião engole o pensamento e reprodu-lo em termos idênticos, apenas com ligeiras modificações”.

Estamos assim diante de uma forma de produzir juízos momentâneos, que se confundem com simples impulsos, e que sujeitam a gramática e a sintaxe de que nos servimos para enquadrar determinados aspetos ou fenómenos da vida política a uma tal volatilidade em que estamos no terreno de uma pura emoção, esvaziada de qualquer racionalidade.

Como lembra António Guerreiro, este mundo da opinião “é agonístico, isto é, alimenta-se das ilusões marciais, das virtudes heroicas, e imagina-se sempre em combate para dar provas de existência. Além disso, é quase exclusivamente reativo, parasitário e amplificador de ecos. Por isso mesmo é volátil e funciona por ondas que se formam, se agigantam e se desfazem em pouquíssimo tempo, até que uma nova onda recomeça”. Tudo recai assim num regime de maior ou menor agressividade moral, naquele sentido em que o ódio e o amor se esgrimem enquanto manifestações enganadoras, aproveitando-se de indícios ocasionais, e apenas para capturar o maior número de pessoas, gerando essas tendências coletivas em que podem exprimir-se os tais impulsos violentos reprimidos. Estas tendências são agravadas nas sociedades modernas em virtude do que Adorno denominava a “claustrofobia das pessoas no mundo administrado”, sendo este caracterizado como “rede densamente interconectada”. Basta pensar no regime pesporrente das redes sociais como um cenário que atualmente se sobrepõe a qualquer paisagem real, com os seus humores a dominarem uma imprensa que busca um reflexo e avalia o seu alcance pela distribuição que obtém dos seus artigos, ou os números de visualizações, tendo nós chegado a uma vertigem em que a quantidade impede qualquer revolta contra ela.

Robert Musil lembrava como um certo regime de agressividade moral permite essa “coerção literalmente fantástica de reagir ao próximo de uma qualquer forma veemente, derramar-se nele, ou destruí-lo, ou criar em relação a ele algumas constelações ricas em invenções interiores”. Este grande escritor austríaco nota que mesmo o imperativo categórico e aquilo que, desde ele, é tido como uma experiência moral específica, não é, no fundo, senão uma nobre intriga rabugenta visando o regresso ao sentimento. Ora, o que acontece é que aos poucos, e para satisfazer este desejo de conversão sentimental, o próprio mundo se vê convertido em fábula, isto de forma a que os seus signos possam ser manipulados sem oferecerem grande resistência, e usurpados por aqueles facínoras do bem e do mal que, num horror insonso perante a forma de um fenómeno, se recusam a tocar-lhe.

Assim, somos devolvidos à lição de Elias Canetti que explica a formação dos efeitos de massa pelo receio do contacto, pelo pavor de ser tocado pelo desconhecido. E ele refere como entre os fenómenos mais sinistros da história intelectual humana se encontra a fuga ao concreto. Deste modo, o regime da opinião serve como uma manifestação desse desejo de escapar ao confronto com tudo aquilo que nos cerca e exige de nós uma ação decisiva. “O balanço dos gestos exuberantes, o lado aventuroso e temerário das expedições a terras distantes enganam quanto aos motivos que lhes estão por detrás. Não é raro tratar-se, simplesmente, de evitar aquilo que está mais próximo, porque não estamos à sua altura. (…) Seria necessária muita tacanhez para condenar essa extravagância do espírito, embora, de vez em quando, ela resulte de manifesta fraqueza. Levou a um alargamento do nosso horizonte, de que estamos orgulhosos. Mas a situação da humanidade é hoje, como todos nós sabemos, tão séria que temos de nos voltar para aquilo que está mais próximo e é mais concreto. Nem suspeitamos sequer de quanto tempo nos resta para olhar de frente o mais penoso, e, no entanto, bem pode ser que o nosso destino dependa de determinados conhecimentos difíceis, que ainda não temos.
Diogo Vaz Pinto