domingo, 10 de dezembro de 2023

Canibalismos

Em tempos diluvianos, éramos animais. O primeiro canibalismo veio com a “alma” ou com a consciência, facultada pela linguagem articulada, que separou o vivido do explicado. Ela engendrou o cisma entre bicho e humanidade nas suas variadas encarnações no “bicho-homem” engendrado entre nós.

Um segundo canibalismo veio alimentado pelo controle do fogo, que, como mostrou Lévi-Strauss, criou a oposição complementar entre o cru (natureza) e o cozido (pacto social ou cultura). Dualidade que consolidou a diferença entre a animalidade governada por instintos inseparáveis de seus portadores do bicho-homem administrado por regras, mandamentos, códigos e crenças. Pelo que os antropólogos chamam de “cultura”, que, como as múltiplas línguas, é imposta, varia de grupo a grupo e chega de fora para dentro.

Tal é o desconjuntado conjunto do “bicho-homem” — expressão que, no Brasil, muito sabiamente, caracteriza a condição humana, pois não são poucas as situações em que o bicho canibaliza o homem, como testemunha a História.

Não custa muito imaginar que nossas crenças se transformem em dogmas e determinismos legitimadores de abomináveis opressões e preconceitos que levam à morte, à destruição e à guerra. O bicho-homem morre, mas sua voz — centrada naquilo que lhe foi dado a acreditar — fica como prova dessa combinação intrigante e insolúvel.

O bicho faz perna com o homem. O homem canibaliza o bicho, mas é eventualmente por ele canibalizado.

Bicho faz sistema com o cru e o homem com o cozido. O fogo e a palavra são os mediadores dessa humanização, mas nem sempre, como experimentamos recorrentemente, o cozido é saboroso. Ou melhor: quem foi eleito como cozido é cru e, pior, rejeitava as canibalizações habituais.

Eleição faz perna com rebelião e revolução. Felizmente, a violência do autocanibalismo negativo é sublimada pela democracia.

Todo candidato representa uma alternativa a quem governa. Mesmo não sendo dogmático, ele configura opções e, assim, propõe uma transformação do statu quo. Com isso, fica à esquerda e desloca até mesmo os mais notórios populistas-esquerdistas que se transformam em conservadores ou reacionários.

O espírito da democracia tem o pendor de desarticular e relativizar extremos, pois ela se concretiza canibalizando o cru que vira cozido e o cozido, que, reitero, pode se transformar em cru. Num certo sentido, o canibalismo democrático nivela ou desilude os que pensam ter balas de prata e soluções finais para os problemas. Daí a dificuldade de praticar democracia em estruturas sociais de fundo histórico aristocrático, escravista — obviamente racista — e elitista. Em sistemas fundados nas hierarquias do “sabe quem está falando?” e do “esse eu conheço!”...

Todo candidato eleito num sistema democrático sabe que será canibalizado por diversas ondas de poderosos agentes sociopolíticos.

Em primeiro lugar, chega o cargo com seus encargos práticos, seu fascínio litúrgico e seu potencial de mando e negociação que imediatamente equaciona limites e fronteiras.

Em seguida, chega o partido, com suas demandas e cobranças. E, finalmente, chega o enxame dos elos pessoais. As dívidas da reciprocidade, do “dar para receber”, quase sempre divergente dos projetos políticos mais racionais e impessoais. Com isso e a seu lado, há o peso do parentesco, do compadrio e das amizades para as quais nada pode ser negado.

Todos esses canibalismos da “casa” se igualam às racionalidades da “rua”. Elas praticamente anulam o universo público em que vive a política.

Essa constelação de canibalismos — do rebelde e revolucionário ao negociador malandro e populista que muda para não mudar — produz uma gramática histórica cuja ambiguidade é irritante. Nela, cada passo adiante promove um retorno. Não é o fim do mundo, porque o novo é inevitável, mas requer muita paciência dos canibais, que, afinal, são velhos amigos e eleitores.

P.S.: Veremos como a “maluquice” de Javier Milei reage à “fritura” canibal portenha.

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