quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Cisjordânia sob severo bloqueio israelense desde o ataque do Hamas

Fawaz Qafisha abriu alguns centímetros a porta da frente, enfiou a cabeça pela fresta e semicerrou os olhos por causa do sol. A rua lá fora estava quase completamente deserta, exceto por um soldado israelense que estava sentado numa cadeira de jardim colocada em frente à casa de Qafisha, de frente para a porta da frente.


Antes mesmo de Qafisha ajustar os olhos à luz e nos ver vindo pela estrada em sua direção, o soldado israelense se levantou, ergueu o rifle até a metade e ordenou que Qafisha voltasse para dentro.

O cozinheiro de falafel, de 52 anos, fez um gesto para que nos apressássemos.

“É assim sempre que tentamos abrir a porta agora”, disse ele, quando entramos.

"Não temos permissão nem para ficar em nossas janelas."

Qafisha, que nasceu e cresceu em Hebron, na Cisjordânia ocupada, é residente de H2, um distrito denso e fortemente fortificado que alberga 39 mil palestinianos e cerca de 900 colonos israelitas, considerados alguns dos mais extremistas do território ocupado. Os palestinos e os israelenses do H2 estão separados em alguns lugares aqui por apenas alguns metros e cercados por câmeras, jaulas, postos de controle, muros de concreto e rolos de arame farpado.

Há mais de 40 dias, desde o ataque do Hamas a Israel, 11 bairros palestinianos dentro do H2 – compreendendo cerca de 750 famílias – têm estado sob um dos mais severos confinamentos impostos na área há mais de 20 anos. A população de H2 é quase inteiramente palestina, mas o distrito está sob o controle total dos militares israelenses, que nas últimas semanas têm forçado os residentes palestinos a voltarem para suas casas sob a mira de uma arma.

Qafisha e sua família de nove pessoas mal saíram de casa, disse ele. Ele não queria correr nenhum risco. “Você viu o que aconteceu quando chegou”, disse ele. "Temos uma porta que não podemos abrir e janelas das quais não podemos olhar. Não temos nenhuma liberdade. Vivemos com medo."

Posto de controle israelense fortemente fortificado do H2, que abrange 11 bairros. 

A casa de Qafisha ficava perto da rua Shuhada, que já foi uma das ruas mais movimentadas do mercado palestino em Hebron. Em 1994, um massacre de 29 muçulmanos por um extremista judeu numa mesquita próxima levou a tumultos, que por sua vez provocaram uma repressão por parte do exército israelita. O exército fechou à força empresas palestinianas e depois fechou as portas da frente dos residentes palestinianos, no lado da rua Shuhada.

Desde então, os palestinianos da área em redor da rua Shuhada têm vivido restrições variáveis ​​sobre onde podem ir, quando e como. Os surtos no conflito israelo-palestiniano levaram muitas vezes a alguma forma de bloqueio, mas vários residentes disseram à BBC que este foi o mais difícil que alguma vez experimentaram.

A algumas centenas de metros da casa de Qafisha, Zleekhah Mohtaseb, uma antiga guia turística e tradutora de 61 anos, olhava para baixo do seu telhado, observando um jovem colono israelita a gritar consigo mesmo enquanto serpenteava lentamente pela rua Shuhada.

Mohtaseb passou todas as suas seis décadas a poucos passos de onde estava agora, disse ela. Do outro lado da rua Shuhada, a não mais de 6 metros de distância, ficava o Cemitério de Hebron, onde 10 gerações de sua família foram enterradas. Era uma vez, ela podia atravessar a rua e entrar no cemitério. Agora ela demorava uma hora de carro.

“Os colonos”, disse ela, balançando a cabeça, enquanto o jovem israelense passava pela porta da frente fechada por solda. "Eles podem fazer o que quiserem. Eles são o povo escolhido."

Mohtaseb viu muita coisa durante sua vida em Hebron, mas os últimos 40 dias foram dos mais tensos, disse ela. Horas depois de o Hamas ter atacado Israel, numa onda de assassinatos que deixou cerca de 1.200 israelitas mortos, os residentes palestinianos do H2 receberam mensagens dos militares israelitas dizendo-lhes que já não tinham permissão para sair das suas casas. Soldados israelenses começaram a expulsar as pessoas das ruas sob a mira de armas, incluindo Mohtaseb. “Aquelas primeiras duas semanas foram um inferno”, disse ela.

Duas semanas depois de ter começado, o recolher obrigatório no segundo semestre cedeu ligeiramente, permitindo aos palestinianos saírem das suas casas durante determinados horários aos domingos, terças e quintas-feiras. Depois, na quinta-feira passada, enquanto Mohtaseb se preparava para nos receber, três militantes palestinianos de Hebron atacaram um posto de controlo israelita que separava a Cisjordânia de Jerusalém, matando um soldado e ferindo cinco. Imediatamente, ela soube que o ataque prolongaria e intensificaria a repressão no segundo semestre.

"Todo mundo diz que Israel tem o direito de se defender. Tudo bem. Não somos contra isso. Mas e nós, os palestinos?" ela disse.

“Muitas vezes fomos atacados, muitas vezes fomos mortos, muitas vezes fomos forçados a abandonar as nossas casas. Onde estava este direito de defesa quando os palestinianos foram atacados?”

O H2 começou em 1997, quando Hebron foi dividida em dois setores, sob um acordo entre a Organização para a Libertação da Palestina e Israel. H1, habitado inteiramente por palestinos e controlado pela Autoridade Palestina, representa cerca de 80% da cidade. H2, que representa apenas 20% da cidade, é habitado quase inteiramente por palestinos, mas controlado pelos militares israelenses. Dentro do H2, a área ao redor da Rua Shuhada e da Mesquita Ibrahimi é a mais fortificada por postos de controle e postos de guarda. Assistiu a décadas de tensão, violência e ataques terroristas de ambos os lados.

“Este é o lugar fechado dentro do lugar fechado”, disse Muhammad Mohtaseb, segurança de um hospital de 30 anos, sentado no telhado de sua casa, em frente à mesquita.

“Estamos completamente cercados por postos de controle”, disse ele. "Mesmo em um dia bom, não posso dirigir um carro, nenhum carro pode entrar com matrícula palestina. Se eu quiser trazer algo para minha casa, tenho que carregá-lo a meio quilômetro do posto de controle. Quando me casei, Comprei toda a mobília nova para o meu quarto, mas tive que desmontar tudo em pedaços do outro lado do posto de controle para passar pelas catracas e depois reconstruí-los deste lado."

Esse foi um bom dia. Desde 7 de Outubro, a liberdade até de circular na rua desapareceu. Quando chegamos à casa de Mohtaseb, assim como na casa de Fawaz Qafisha, um soldado saltou em direção à porta e ordenou que Mohtaseb voltasse para dentro.

No telhado, Mohtaseb enrolou um cigarro e olhou para as ruas vazias. Com três dos seus quatro filhos fora da escola – todas as escolas H2 foram fechadas – Mohtaseb estava em casa e fora do trabalho há 40 dias. Felizmente para ele, seu empregador foi compreensivo e ainda lhe pagava.

Este não foi o caso de todos. Qafisha, o cozinheiro de falafel, não conseguia cumprir as suas responsabilidades profissionais desde o início do confinamento, porque só podia sair três dias por semana e, nesses três dias, as horas atribuídas não correspondiam às horas que necessitaria para viajar para trabalhar. de qualquer forma. E, ao contrário do empregador de Mohtaseb, o seu não foi compreensivo. “Nesses empregos, se você trabalha, você come”, disse ele. "E se você não trabalha, você não come."

Qafisha pediu dinheiro emprestado várias vezes a amigos para comprar comida para a família, mas estava a ficar sem opções. “Tudo o que você gasta não pode ser reposto”, disse ele, sentado em sua sala, longe da janela. "Então estamos afundando."

Na manhã seguinte, houve outro ataque armado contra soldados israelitas por parte de um militante palestiniano, este na própria Hebron. Desta vez resultou apenas na morte do agressor. Mas algumas horas depois, outra mensagem foi enviada via WhatsApp pelos militares israelenses aos residentes palestinos da rua Shuhada.

“Uma notificação para os moradores da rua Shuhada”, dizia. "Você está proibido de ficar nas ruas por uma semana." E se eles saíssem do H2, dizia, não seriam autorizados a entrar novamente até que a semana passasse.

O confinamento no segundo semestre foi um “exemplo flagrante de como Israel está a implementar punições colectivas na Cisjordânia”, disse Dror Sadot, porta-voz da organização israelita de direitos humanos B'Tselem.

“Os palestinos em Hebron estão pagando um preço por algo que não fizeram”, disse ela. “As pessoas não podem ir trabalhar, as crianças não podem ir à escola, têm dificuldade em obter água e comida. É um castigo colectivo e é ilegal ao abrigo do direito internacional.”

Os militares israelitas disseram à BBC num comunicado que as suas forças operam na Cisjordânia “de acordo com a avaliação situacional, a fim de fornecer segurança a todos os residentes da área”.

“Assim, existem postos de controle dinâmicos e esforços para monitorar o movimento em diferentes áreas em Hebron”, afirmou.

Entre os colonos israelitas que vivem em H2, no colonato linha-dura de Kiryat Arba, está o ministro da segurança nacional de extrema-direita de Israel, Itamar Ben Gvir. Na quinta-feira, Ben Gvir, que supervisionou pessoalmente a distribuição de milhares de novas espingardas aos colonos da Cisjordânia desde 7 de Outubro, disse que Israel deveria adoptar em relação ao território ocupado a mesma abordagem que está a tomar em Gaza, onde mais de 11.000 palestinianos agora foi morto. “A contenção vai explodir na nossa cara”, disse Ben Gvir, da Cisjordânia. “Exatamente como aconteceu em Gaza.”

Segundo o Ministério da Saúde palestiniano, mais de 200 palestinianos foram mortos na Cisjordânia desde 7 de Outubro, por colonos ou em confrontos com os militares.

Na quarta-feira, a apenas algumas centenas de metros da casa de Ben Gvir, Areej Jabari reuniu um pequeno grupo de mulheres num círculo de tricô na sua casa em H2, desafiando as ordens israelitas de não circular nas ruas naquele dia. Esta foi apenas a segunda reunião bem-sucedida desde o início do confinamento, e havia apenas oito mulheres presentes, contra as cerca de 50 que normalmente se reúnem uma vez por semana na mesquita. As tricoteiras chegaram lá por prestidigitação. “Nós nos esgueiramos pelas estradas vicinais e entre os prédios”, disse Huda Jabari, prima mais nova de Areej, com um sorriso.

As mulheres aprenderam, durante todo este tempo de confinamento, a observar os soldados israelitas e a movimentar-se quando eles não estão a olhar. Eles usam as casas uns dos outros para evitar postos de controle dentro do H2, entrando pela porta da frente em um setor e saindo pela porta dos fundos para outro. “Em tempos normais, 50 famílias passam pela minha casa para se locomover”, disse a mãe de Areej, Sameera, cuja casa ficava à sombra da de Ben Gvir.

Areej nos levou até seu telhado para nos mostrar sua vista, sobre uma base militar israelense e um posto de guarda perto de sua casa. Abaixo de nós, colonos israelenses passavam pela rua dela, que ela não tinha mais permissão de usar.

Desde 7 de Outubro, Areej vinha até aqui ao telhado com a sua câmara de vídeo para recolher imagens dos soldados e enviá-las para a B'Tselem, a organização de direitos humanos. Em troca, os militares israelenses chegaram à casa dela no último sábado e forçaram a entrada, disse ela. “Eles quebraram meu cartão de imprensa e me alertaram para não gravar mais vídeos nem postar nada nas redes sociais.”

Eles também a proibiram de subir ao telhado, disse ela, ou de olhar pelas janelas às sextas ou sábados, quando os colonos israelenses usam sua estrada para caminhar do assentamento até o local sagrado judaico perto da rua Shuhada.

As IDF disseram à BBC que estavam cientes do incidente descrito por Areej e estavam acompanhando os soldados específicos envolvidos para examinar o que aconteceu. “Estamos levando este incidente muito a sério”, disse um porta-voz.

Para Areej, isso não parecia particularmente fora do comum. “Sempre que algo acontece, eles colocam mais restrições sobre nós”, disse ela. “O objetivo é nos dividir, dividir a área em pequenos pedaços e nos pressionar para sair”.

Ela estava encostada na grade do telhado de sua casa, olhando para H2. “Eu chamo esta área de fortaleza da firmeza”, disse ela. Ela abriu sua câmera de vídeo e apontou-a na direção do posto de guarda israelense na estrada.

A paz imprevisível

Nada pior para um conflito como o que ora transcorre em Israel e em Gaza, carregado de dimensões simbólicas milenares, do que ser capturado pela lógica pedestre das guerras de cultura, tão raivosas quanto superficiais. Israel nelas aparece, monoliticamente, como o representante do imperialismo ocidental, um apêndice estranho e indesejado na região, contra quem toda e qualquer revolta se justifica, mesmo quando, como em 7 de outubro, pisoteia valores mínimos da civilização e reacende temores ancestrais de perseguição e aniquilamento. Pela mesma lógica, inversamente, o Hamas identifica-se com todo um povo e surge como protagonista de um tardio combate anticolonial, em torno do qual devem se juntar automaticamente os condenados da Terra.

Postas assim as coisas, cada um de nós não tem muito mais a fazer senão se afundar nas respectivas câmaras de eco e repetir indefinidamente as próprias verdades até que um dia, quem sabe, sobrevenha o cansaço e reapareça a necessidade de buscar alguma outra “causa justa”. Perdem-se nuances, omitem-se elementos significativos de um complexo consenso em construção, inclusive nos círculos dirigentes do Ocidente.


Por aqui, aliás, há bons sinais. Certamente, tarda uma decidida ação de paz pelos Estados Unidos, a potência capaz de conter ou influenciar Israel e, ao mesmo tempo, dialogar com o mundo árabe, suas ruas expressivas e seus dirigentes mais sensatos. No entanto, neste momento de trevas, tem sido animador ver o amadurecimento definitivo da ideia dos dois Estados, alicerçada não só numa necessária visão pragmática, como também no reconhecimento formal do direito à terra tanto por judeus quanto por palestinos.

Tem mais de um grão de verdade a proposição do presidente Biden segundo a qual, neste “ponto de inflexão da História”, há um contraponto entre democracias e autocracias. Trata-se, porém, de uma verdade parcial, provisória, até pelo fato de que, como o próprio Biden sabe em primeiríssima mão, as democracias permanecem assediadas internamente por atores disruptivos com capacidade para produzir fissuras em consolidadas tradições constitucionais. E, por ironia, nem mesmo a democracia israelense está livre deste assédio. Um político como Benjamin Netanyahu, não por acaso, é fator interno de restrição das liberdades e fator externo de guerras e invasões, ainda que nesta última circunstância tenha os extremistas palestinos como sócios dedicados.

De fato, com algumas exceções, como perto de nós a Venezuela, têm vindo da extrema direita global as ameaças mais graves aos regimes democrático-constitucionais que costumávamos considerar quase um fato da natureza. O culto do homem forte e providencial ressurgiu como a novidade em reação à globalização dos mercados feita de modo veloz e anárquico em algumas poucas décadas. O rótulo “nacional-populismo” define bem a situação recentemente criada: nativismo ideológico, fechamento de fronteiras econômicas, proteção real ou meramente demagógica aos trabalhadores locais, em troca de concentração de poder e asfixia dos pesos e contrapesos de uma democracia cada vez mais difícil.

Netanyahu é a manifestação israelense deste movimento reacionário global. Antes de 7 de outubro, havia um número impressionante de cidadãos nas ruas e praças de Israel, em manifestações que perduraram por meses a fio em defesa do Poder Judiciário. Por certo, a esquerda em sentido estrito, minoritária desde que a perspectiva de paz se enfraquecera, não tinha o controle dos protestos, dominados por preocupações com o destino de uma instituição absolutamente decisiva. E neles não estavam os árabes israelenses. Não importa muito, brotava ali o germe da renovação e da esperança, o repúdio de massas contra o autocrata em formação. Este germe e este repúdio se viram paralisados com o conflito, que, neste preciso sentido, responde ao nacionalismo agressivo de Netanyahu e seus aliados de extrema direita, particularmente os que representam a ocupação ilegal na Cisjordânia.

Guerras cumprem a função clássica de unir momentaneamente a população em torno da salvação nacional e de abafar o normal dissenso democrático que, de outro modo, se desenvolveria e teria o potencial de dar bons frutos. Na espessa névoa que logo produzem, prevalecem profissões de fé e alinhamentos pavlovianos, como se Israel só tivesse amigos à direita, a Palestina à esquerda. E como se um país inteiro se reduzisse à guerra ao terror e o outro, em formação, limitasse suas formas de luta e resistência a explosões bárbaras.

O caminho da paz, surpreendente e imprevisível, é um daqueles que só se fazem ao caminhar – e a História está mais cheia deles do que parece. Como muitos autores têm lembrado, a Guerra do Yom Kippur, em 1973, levaria ao acordo entre Begin e Al Sadat; e à Intifada de 1987 se seguiriam os Acordos de Oslo entre Rabin e Arafat. O pogrom de outubro e a tragédia cotidiana de Gaza escancaram a evidência de que, no caso destes dois grandes povos, só fanáticos ainda acreditam haver terra a tomar e guerra a vencer.

Bibi, o açougueiro

Benjamim Netanyahu está colocando em perigo a segurança do povo israelense, assim como a de todos os judeus do mundo. Netanyahu já escreveu seu nome na história como o açougueiro de Gaza
Recep Tayyip Erdogan, presidente da Turquia

Dicas de sobrevivência para o fim do mundo

A boa notícia é que o mundo já acabou pelo menos cinco vezes ao longo de bilhões de anos e, graças a isso, o ser humano surgiu e existe até hoje. A má notícia é que o mundo vai acabar de novo mais cedo ou mais tarde e, pela primeira vez, já estaremos nele.

Quem conta essa história toda é Morgan Freeman na série Enigmas do Universo (Netflix). É inevitável ficarmos fascinados pela dinâmica de transformação da Terra e das formas de vida que passaram por aqui. No caso dos seres vivos, isso significou surgimento, evolução e extinção.

O documentário mostra que 90% das espécies que já viveram no nosso planeta foram extintas, incluídos aí os bichos e plantas mais inacreditáveis, indo muito além de celebridades arqueológicas como os dinossauros ou o tigre dentes-de-sabre.


Acontece que as ondas de destruição anteriores tiveram causas naturais, considerando-se que em nenhuma delas havia surgido o homem. Os apocalipses foram causados por asteroides gigantes, erupções vulcânicas em série, eras glaciais, inundações, sobrecarga de CO2 e até mesmo por envenenamento dos oceanos pelo boom populacional de plâncton.

Contudo, houve uma ocorrência comum a todos esses desastres em escala global. Em cada um deles, ocorreu uma extinção em massa das espécies vivas. Ou seja, em todos eles 3/4 das formas de vida pereceram, principalmente as espécies dominantes em cada época, dando lugar a novos seres líderes imprevisíveis.

Não é possível prever qual seria a próxima tragédia natural a devastar a Terra. Poderia ser um novo degelo, ou tempestades solares, quem sabe outro asteroide, talvez terremotos. Porém, a história demonstra que é possível sim que um tipo de ser vivo dispare o gatilho de extinção dele próprio e dos demais, como ocorreu com os microscópicos plânctons.

Se o próximo armagedon tiver causa natural, temos duas dicas possíveis para as pessoas que testemunharem o evento: 1. Relaxe; 2. Aprecie a paisagem. Todavia, se a população humana não quiser repetir o feito dos plânctons de ser a culpada pelo próximo fim do mundo, talvez ainda dê tempo de reverter, ou amenizar, ou mesmo adaptar-se à devastação que já começou (basta ligar a TV ou olhar pela janela para perceber).

Nesse caso, as dicas são outras: 1. Empoderem a ONU; 2. Confiem na ciência; 3. Respeitem a natureza; 4. Combatam a desigualdade social; 5. Revejam as definições de lucro e poder.

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Pensamento do Dia

 


Nosso mundo atormentado carece de humor

O título desta coluna pode parecer uma provocação num momento em que estamos presos na dor entre duas guerras cujas imagens perturbam o nosso sono. A medicina nos alerta sobre o aumento do número de pessoas que sofrem de depressão no mundo e o crescimento dos índices de suicídio.


As redes sociais inundam-nos com imagens aterrorizantes da guerra em Israel e na Ucrânia que perturbam os nossos sonhos e nos transportam, idosos, às duas grandes guerras mundiais na Europa, ao mesmo tempo que ressuscitam as fotos e os slogans dos antigos ditadores que foram protagonistas dos mais velhos conflitos sangrentos da história.

Sim, tudo converge para o dilaceramento da alma diante do medo, da dor e do desespero do desamparo. E nos perguntamos se não estamos retornando aos tempos dos antigos tiranos reencarnados.


E são nesses momentos trágicos que mais precisamos procurar como nos desintoxicar e nos defender de tantas angústias sem que isso implique deixar de compartilhar a dor do próximo.

Dizem-me que em Espanha, por exemplo, nunca se usaram tantos ansiolíticos como nestes momentos em que o medo do futuro é premente.

A ajuda da medicina em momentos de medo e dor é crucial. É uma das conquistas do nosso tempo, que se agita entre a novidade que abre novos caminhos de esperança e o desenterramento dos velhos espantalhos da tragédia das guerras.

E é nessas ocasiões de perturbações espirituais e morais que o ser humano deve utilizar um dos instrumentos típicos da inteligência: o humor. Os animais podem brincar, mas não sabem rir de si mesmos.

Não sei se você notou que os grandes ditadores da história, os mais sangrentos e cruéis, eram desprovidos de humor. Você consegue imaginar um Hitler , um Stalin, um Mao e um Franco contando uma piada? Mesmo os ditadores aprendizes de hoje são incapazes de ter humor. Eles nem sabem sorrir. Eles só sabem fazer caretas, franzir a testa e gritar.

E, no entanto, o humor sempre foi um dos instrumentos mais eficazes durante ditaduras militares, o melhor antídoto para a barbárie. Nós, espanhóis mais velhos, lembramo-nos de quando nos tempos mais duros do regime de Franco, de torturas e tiroteios, o humor sempre foi uma válvula de escape capaz de nos fazer sorrir.

Foi impressionante como as piadas sobre Franco viajaram pela Espanha de norte a sul em segundos e isso sem a mídia de hoje. Enquanto escrevo, uma daquelas piadas libertadoras me vem à mente. Um ministro dissera a Franco que muitas famílias numerosas de trabalhadores não conseguiam dar aos seus filhos mais do que uma refeição por dia e iam para a cama com fome. O indignado Caudillo disse que não acreditava e que queria visitar uma daquelas famílias.

Dito e feito. Encontraram um mecânico com cinco filhos pequenos e uma noite ele foi visitá-los com seu acompanhante. O líder perguntou ao chefe da casa se faltava comida na mesa dos filhos. “Não, meu General”, respondeu o trabalhador com segurança. “Ao meio-dia todo mundo tem um prato de comida”, acrescentou. “E à noite?”, Franco perguntou a ele. “Não tem problema, meu general. Minha mulher prepara a mesa, todos se sentam e eu grito para eles: ‘Franco, Franco, Franco!’ e observe como eles respondem. Os cinco pequeninos que estavam de pé gritaram: ‘Pai, pare com isso, já chega dele.’ A mãe então lhes disse: “Tudo bem, crianças, depois vão todos dormir”.

Hoje, quando tentam ressuscitar caricaturas dos velhos ditadores, precisamos novamente, para nos defendermos dos seus delírios, de novos mecanismos de humor para dessacralizar o seu aparente poder, que por vezes é mais fraqueza do que qualquer outra coisa.

Os líderes da nova extrema-direita de hoje, tingidos de nazis nostálgicos, não possuem a prosopopeia dos ditadores sedentos de sangue do passado, mas têm armas que poderiam explodir o mundo. Eles são talvez mais perigosos que seus antigos chefes.

Por isso, talvez mais do que nunca, precisamos de nos munir de instrumentos de humor para nos defendermos das ansiedades e medos que eles criam em nós. E, no entanto, como já aviso, embora uma parte do humor tenha ido para as redes, os grandes meios de comunicação escritos e televisivos reduziram drasticamente os seus cartunistas e comediantes, capazes de nos desintoxicar de tanta dor e medo diante da insegurança que atinge o mundo.

Agradeço a este jornal que desde o seu nascimento até hoje aumentou o número de cartunistas com sua carga não só de humor, mas de reflexão que todas as manhãs nos oferece um sopro de oxigênio. Suas criações são ora cruéis e ora ternas, mas são esperança em meio à fumaça do medo que nos pressiona.

Nestes tempos difíceis para a migração daqueles que têm que fugir das guerras com todo o peso da dor que carregam, não esquecerei um cartoon de anos atrás que estava entre o terno e o feroz de El Roto. Parado em um semáforo com seu carro, um idoso se aproxima do motorista para limpar o vidro da janela e receber algumas moedas. O motorista faz um gesto mal-humorado para ele ir embora. O faxineiro insiste e explica: “Você não precisa me dar nada. Foi só para você saber que eu existo.”

Saber que há tanta dor no mundo, que vivemos num caldeirão de pólvora que pode explodir a qualquer momento, certamente não é remédio para a nossa angústia existencial. A medicina e os guias espirituais esforçam-se nestes tempos para nos aconselhar a abraçar o humor, a alegria, o frescor da natureza, a inteligência emocional, a meditação e a esperança para não sucumbirmos.

E é nesse livro de receitas que enche as páginas dos meios de comunicação e se multiplica nas redes em que cada vez mais faltam as páginas de humor, o verdadeiro, aquele que nos obriga a sorrir mesmo nos momentos mais cruciais. “Vida que continua” é um slogan que o meu médico de longa data, o académico Augusto Messías, me repete.

Ah, você pode fazer humor com a religião? Sim, porque é libertador e até as confissões religiosas podem ser tóxicas e alienantes, com o seu rosário de pecados e anátemas. No campo da sátira, os judeus são muitas vezes mestres do humor, talvez porque tenham sofrido perseguições e holocaustos.

Você se lembra da clássica piada sobre o soldado judeu ferido na guerra? O jovem estava espancado, ensanguentado, quando um padre católico se aproxima dele com um crucifixo na mão e, colocando-o diante dos seus olhos, pergunta: “Você sabe quem é este?” O soldado judeu olha para o crucificado e exclama: “Uau, alguém está morrendo aqui e eles vêm até mim com enigmas!”

As guerras passam, as tragédias acabam sendo digeridas, a dor nunca será derrotada e teremos sempre à mão o melhor remédio, o melhor antídoto para a angústia e o medo: o humor.

A paz na Palestina ainda terá um longo caminho

Após mais de um mês de negociações em sigilo, intermediadas por Catar e Estados Unidos, começou na sexta-feira a troca de reféns em poder do Hamas por prisioneiros palestinos em Israel. Foram libertadas inicialmente 24 pessoas, sendo 13 mulheres e crianças israelenses, 10 cidadãos tailandeses e 1 filipino em Gaza. Israel libertou 39 palestinos da Cisjordânia que já estavam presos, antes mesmo de a guerra começar, e iniciou a trégua de quatro dias na guerra de Gaza.

O grupo sob poder do Hamas em Gaza, desde os ataques terroristas de 7 de outubro, foi entregue à Cruz Vermelha, que coordenou a operação de travessia da fronteira entre Gaza e o Egito, pela cidade de Rafah. Recebidos por médicos e especialistas em comunicação com reféns, foram levados de volta ao território de Israel por helicópteros do exército. Os tailandeses e o filipino receberão atendimento médico antes de voltarem para seus países.

Nos próximos dias, outros reféns devem ser liberados, na base de três prisioneiros palestinos, menores de idade e mulheres, para cada refém israelense, num total que deve chegar a 150 palestinos por 50 israelense. A suspensão recíproca dos ataques, como resultado de negociações que duraram mais de 30 dias, é uma demonstração de que uma paz duradoura é possível se houver vontade política em torno de objetivos exequíveis. A criação do Estado Palestino exigirá negociações mais complexas e demoradas, mas continua sendo a condição para a paz definitiva.


O acordo de Paris para o fim da guerra do Vietnã, negociado entre o Vietnã do Norte e os Estados Unidos, resultou de quatro anos de negociações, após a ofensiva do Tet (Ano Novo Lunar) de 1968. Iniciadas em janeiro de 1969 e concluídas somente em 27 de janeiro de 1973, somente foram exitosas porque havia um ambiente interno nos Estados Unidos contra a guerra, uma correlação de forças internacional favorável, mesmo em meio à guerra fria, e a vontade política do conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos Henry Klissinger e do líder comunista Le Duc Tho. Ambos receberam o prêmio Nobel da Paz, mas o segundo recusou. Alegou que a paz não havia sido alcançada completamente.

Kissinger e Duc Tho foram artífices de negociações muito complexas. O primeiro cessar fogo ocorreu em 1972, quando os Estados Unidos se retiraram do Vietnã, em troca de libertação de 566 prisioneiros americanos preso em Hanoi. A segunda parte do acordo, a permanência dos governos do Norte e do Sul até as eleições, fracassou, porque as tropas do Vietnã do Norte permaneceram no Sul.

Em retaliação, o presidente Richard Nixon determinou o bombardeio de Hanoi e da cidade portuária de Haiphong, nas quais foram lançadas 100 mil bombas, o equivalente a cinco bombas nucleares. Mas as negociações continuaram e a reunificação do Vietnã acabou ocorrendo, após a autodissolução do exército do Vietnã do Sul.

Ao contrário do que aconteceu no Acordo de Paz de Paris, não há interlocutores em Israel e no Hamas interessados na paz duradoura, com a criação do Estado palestino, em troca de pleno reconhecimento do Estado de Israel, respectivamente. O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, já declarou que o cessar-fogo é uma “pausa breve” e os combatentes continuarão de “modo intensivo”, no mínimo dois meses. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou que as tropas do país continuarão em Gaza até “trazer de volta todos os reféns e liquidar o Hamas”.

Netanyahu pretende manter o controle definitivo sobre a Faixa de Gaza após as Forças de Defesa de Israel (FDI) eliminarem o Hamas. A libertação de reféns não deveria incentivar a continuação da guerra. O cessar-fogo deu ao Hamas mais tempo para se reorganizar e fazer mais exigências nas negociações para libertar os 190 que ainda permanecem em seu poder, o que vai aumentar a pressão das famílias e dos Estados Unidos sobre Netanyahu.

Hahaha Sinwar, comandante do Hamas em Gaza, tenta ganhar tempo com o argumento de que precisa ainda localizar os demais reféns, que estariam distribuídos entre diversas facções. Sinwar retornou a Gaza em 2011, libertado na troca de mil prisioneiros pelo soldado israelense Gilad Shalid, depois de 23 anos preso. Seis anos depois, foi eleito para chefiar o território, cargo que ocupa indefinidamente.

Os jovens palestinos libertados na sexta-feira foram recebidos como heróis e não escondiam a gratidão ao Hamas. Os 14 mil palestinos civis mortos, dos quais 10 mil são mulheres e, principalmente, crianças, são tratados como mártires da independência da Palestina, muito mais do que vítimas de uma guerra insana, iniciada por uma ação terrorista do Hamas.

A guerra manterá Netanyahu no poder, até a população se cansar. Também manterá o prestígio político, as fontes de financiamento e a revolta social que retroalimenta o Hamas. Defendida pelos Estados Unidos e pela União Europeia, a solução de dois Estados é a única possível para o conflito, mas está muito longe de ser alcançada. Netanyahu não aceita a criação do Estado palestino, assim como o Hamas, apoiado pelo Irã, não reconhece o Estado de Israel.

Uma família de manés, a começar pelo pai

Mané quer dizer indivíduo tolo, menos inteligente ou com pouca capacidade intelectual. Ou, se preferir, um bobo, palerma, inepto, paspalhão, indolente. Bolsonaro está “quase na situação de mané”.

Quem disse? Bolsonaro no lançamento do PL60+, movimento do seu partido, o PL, para atrair público com 60 ou mais anos de idade interessado em participar das eleições de 2024.

No seu discurso, Bolsonaro afirmou que os parlamentares presentes no evento eram “privilegiados” por poderem “discutir o futuro” do país, enquanto ele, coitadinho, não tem “nada”.

Bolsonaro foi condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral a 8 anos de inelegibilidade por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação quando ainda era presidente.

Mas não está impedido de “discutir o futuro” do país. Pode fazê-lo em qualquer lugar, até mesmo no Congresso se convidado. Não o faz porque lhe falta capacidade intelectual e é preguiçoso.



Ultimamente, Bolsonaro deu de falar as coisas pela metade ou por meio de enigmas. É medo de revelar o que quer ocultar, atirar no próprio pé como já atirou tantas vezes, e a justiça bater à sua porta.

“Na hora H, para fazer as coisas dentro das 4 linhas, ele vira a cara para você”, disse Bolsonaro sem explicar a quem se referia. “Quem tinha que fazer a coisa certa, não fez”.

E por fim:

“Depois do embate do Legislativo com o Judiciário, ninguém mais tem dúvida do que aconteceu em outubro do ano passado”.

Tal pai, tais filhos. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) disse na mesma ocasião que o ministro Flávio Dino ocupará uma vaga no Supremo Tribunal Federal para “se vingar da oposição”.

Vingar-se do quê? Não disse. Mas chamou Dino de ruim:

“O Lula extrapolou na sua ignorância e no seu desrespeito com o Brasil ao enviar o nome de uma pessoa que reúne tudo de ruim (e que não inspira) nenhuma confiança”.

Por sua vez, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) aproveitou a presença na Câmara da ministra da Saúde, Nísia Trindade, para mostrar o quanto entendia do assunto em discussão.

Depois de relacionar a vacinação contra a Covid-19 com morte súbita, perguntou a Nísia

Será que não é muito extremo obrigar o filho do pobre a se vacinar?”

Primeiro, a ministra respondeu que a vacinação contra a Covid-19 nada tem a ver com morte súbita; em seguida, que apenas neste ano 110 crianças morreram em decorrência da doença.

Em 2023, o Brasil registrou 3.379 casos de síndrome respiratória aguda grave por Covid-19 em menores de 1 ano, e 1.707 casos na faixa de 1 a 4 anos. Nísia completou:

“A indicação é muito clara e está baseada em um dado muito simples: 110 mortes de crianças por Covid em 2023, é esse o dado que leva a essa determinação.”

E pensar que uma família de manés governou o Brasil durante quatro anos…

O papel dos memes na política

Memes são parte fundamental da vida digital. Logo, da vida. Mesmo os que professam estranhas sentenças como "não tenho redes sociais", durante conversa em alguma mídia social, reconhecem que vivemos em ambientes sociais digitais.

No final dos anos 1990, os primitivos que por lá viviam ainda separavam os mundos em "real" e "virtual" enquanto diziam coisas hoje incompreensíveis como "entrar na internet". Sucessivas ondas de transformação digital, porém, unificaram a nossa experiência social. Já não há um "fora" da conexão digital; você, no máximo, modula o quanto ainda quer de vida desconectada e reza para dar certo.

Ora, se ambientes digitais oferecem hoje os recursos fundamentais para a interação, a integração e a informação, funções sociais decisivas, era de se esperar que novas linguagens surgissem e se consolidassem. Os memes, formas expressivas concisas, condensadas e que se fixam na memória coletiva, são parte da língua franca da era digital.

Assim como as sonoras lapidares eram um recurso precioso na era da televisão, as frases de efeito, os chistes e as tiradas espirituosas eram admirados na esfera pública aristocrática ou da alta burguesia.


Meme é um pouco disso tudo. Afinal, qualquer coisa pode ser um meme desde que seja capaz de se fixar na camada mais acessível da memória coletiva, de ser reconhecida e de comunicar de maneira rápida um conteúdo. Como uma sonora, o meme precisa ser facilmente replicável e reconhecido; como uma tirada, é bom que seja surpreendente e bem-humorado; como um chiste, convém ser irreverente, crítico.

Curiosamente, nesta semana, duas figuras públicas falaram de memes em campanhas políticas: um marqueteiro e um comentarista de política. A acreditar-se no título das reportagens, há uma singularidade. O marqueteiro, Sidônio Palmeira, é contra os memes. O comentarista, Merval Pereira, a favor.

Na verdade, a diferença entre Pereira e Palmeira é um pouco mais complicada. Merval, em O Globo, repercute uma entrevista de Pablo Nobel, o marqueteiro do argentino Milei, que diz dos memes que são a ponta de lança da comunicação eleitoral, vez que capturam a atenção dos jovens, dos menos politizados e menos engajados. Aliás, a mesma coisa que se dizia sobre usar redes sociais em campanhas desde os anos 2000. O elogio ao meme é novo, o discurso é velho.

Surpreende um pouco mais a posição de Sidônio, que revela considerável desconforto com o uso de memes em entrevista dada a Samuel Lima no Estadão. Os memes de arminha de Bolsonaro, da motosserra de Milei e da peruca de Nikolas Ferreira foram explicitamente mencionados, o "faz o L" de Lula não o foi, mas poderia ter sido. A questão para ele é que se usam memes "em vez de". Em vez de uma discussão política substantiva sobre temas.

Memes são uma forma de ganhar repercussão, cliques, acredita. "Isso termina simplificando, deixando muito raso o debate político". A contraposição entre a política com substância de antanho com a política de simulacro e aparências de hoje é um clássico nos estudos de comunicação eleitoral. Já se culpou por essa decadência a televisão, a sociedade do espetáculo e a internet. Parece que o meme sintetiza os culpados da vez.

O que parece incomodar Sidônio Palmeira é visto com um problema por todo mundo: as campanhas não têm ajudado as pessoas a discutir com profundidade as questões políticas. O diagnóstico de que isso tem a ver com o uso de memes e, ele acrescenta numa conjunção injustificada, fake news, é que se pode discutir. Sim, fake news não são um recurso legítimo, mas o que memes têm a ver com isso? E por que o mero recurso a memes tornaria os debates rasos? As campanhas precisam se esgotar neles?

Quando existiu essa campanha socrática em que oradores não precisavam de slogans, jingles, humor e outros recursos visuais, sonoros e conceituais para fixar uma identidade e uma ideia-chave na memória do eleitor? Por que na era dos palanques e na era da televisão nada disso era incompatível com uma campanha baseada em questões e na era digital passou a ser?

As campanhas não conseguem mais vender ideias e discutir seriamente problemas e soluções? Concordo.

O frenesi dos parlamentares para manter-se vistos e lembrados, sobretudo daqueles que usaram a sua presença digital para conseguir mandatos, é um problema que afeta seriamente as casas legislativas hoje em dia? Concedo. O uso de memes provoca algum desses efeitos? Certamente não. As causas devem estar em outro lugar.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Pensamento do Dia

 


Acho que a realidade morreu

Os The Yes Man ficaram famosos criando eventos falsos, nos quais assumem a identidade de políticos ou executivos de grandes companhias multinacionais. A dupla de geniais ativistas, ou artivistas, constituída por Jacques Servin e Igor Vamos, tem por objetivo denunciar, de forma satírica, todo tipo de injustiças sociais, ou projetos que ameacem a vida e o meio ambiente.

A ação mais recente da dupla ocorreu há poucos dias, em Lisboa, durante o Web Summit, evento sobre novas tecnologias, que reuniu na capital portuguesa mais de 70 mil participantes, de 153 países.

Os The Yes Man subiram ao palco principal da Web Summit, no passado dia 15, travestidos de DJ Marshmello e de um executivo da Adidas, chamado Aristide Feldhold. Sem que ninguém contestasse a falsa identidade dos dois, apresentaram um novo projeto da Adidas, o adiVerse, um mundo virtual onde os operários daquela conhecida marca de roupa desportiva poderiam ter tudo aquilo a que na vida real não têm acesso. O projeto incluiria o recurso a uma criptomoeda gerada por um chip implantado nos corpos dos trabalhadores, com o objetivo de rastrear a sua produtividade.


“Imaginem um lugar onde os trabalhadores, mesmo os mais pobres, possam ter tudo o que quiserem”, explicou o falso Aristide Feldholt: “onde os trabalhadores que não têm uma boa refeição por dia possam festejar o dia todo e a noite toda. Onde os trabalhadores possam educar e cuidar dos filhos menores, e onde, mesmo sem dinheiro, consigam viver vidas plenas.”

O fictício Feldhold concluiu o discurso falando sobre a ligação da marca alemã com o regime nazi e seus supostos abusos laborais nos dias de hoje. A multidão aplaudiu. Não aplaudiu a sátira — notem. Aplaudiu o projeto, acreditando ser real. Diversos participantes chegaram mesmo a elogiá-lo.

Releio as notícias sobre a intervenção dos The Yes Man sem saber se rio ou se choro. A sátira exagera uma determinada realidade — ridicularizando-a. Quando o público leva a sátira a sério, ou seja, quando se mostra disponível a aceitar como realidade a ficção mais fantasiosa, é porque a realidade caiu doente.

Talvez até já tenha morrido: a realidade.

A morte da realidade explicaria muita coisa que vem sucedendo neste nosso planeta nos últimos meses. Explicaria, por exemplo, a eleição do senhor Javier Milei, na Argentina.

Javier Milei parece, ele todo, incluindo o cachorro defunto a quem pede conselhos, uma invenção maravilhosa dos The Yes Man. A gente vê aquele sujeito desgrenhado a quebrar, à martelada, uma maquete do Banco Central, e pensa logo nos The Yes Man. Veja-o de motosserra na mão, gritando que vai cortar relações com a China, e que o Brasil é um país comunista, e pensa nos The Yes Man. Milei é a sátira do ultraliberalismo, na sua versão mais grosseira e mais anedótica.

Admitindo que a realidade tenha falecido, e que já estejamos todos vivendo na sátira delirante dos The Yes Man, como Alice do outro lado do espelho, a grande questão é a de saber se pode existir ainda outra ficção dentro da ficção — um espelho no interior do espelho. Se alguém souber onde fica esse segundo espelho digam-me, porque eu estou disposto a saltar.

Por que existem mulheres e crianças palestinas presas em Israel

A troca de 50 reféns capturados pelo Hamas durante o massacre de civis durante o dia 7 de outubro pela libertação 150 mulheres e crianças palestinas presas em Israel levanta uma questão que merece um olhar mais atento. Afinal, por que mulheres e crianças são mantidas em cárcere na maior democracia do Oriente Médio? Boa parte do mundo ocidental desconhece o assunto ou pouco repercute.

Essas mulheres e crianças que serão trocadas por reféns se encontram encarceradas por conta chamadas prisões administrativas, que permitem ao estado judeu deter quem considera necessário sem uma acusação formal e por períodos indefinidos.

“As prisões administrativas não requerem provas, tampouco acusações claras; na maioria das vezes não há acusação alguma”, afirmou ao Extra Classe o professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Bruno Huberman.

Segundo o professor – ele próprio judeu e crítico das políticas praticadas por Israel – não são poupadas mulheres, crianças ou idosos.


Pelo menos 350 pessoas foram presas desta forma em 5 de abril passado quando a polícia de Israel invadiu a Mesquita de al-Aqsa, em Jerusalém, durante o mês sagrado do Ramadã para os muçulmanos.

Na ocasião, as prisões foram condenadas por líderes de todo o mundo árabe e muçulmano e ocorreram durante a dispersão de protestos que estavam sendo realizados para impedir que grupos extremistas judeus realizassem o abate de cabras no complexo da mesquita, um antigo ritual do feriado da Páscoa que já não já vem mais sendo praticado pela imensa maioria dos judeus israelenses. O episódio teve ampla cobertura da imprensa local e internacional, tendo repercutido no mundo inteiro via Reuters, France-Presse e CNN.

Para a jornalista Soraya Misleh, coordenadora da Frente em Defesa do Povo Palestino, o sistema de encarceramento por parte de Israel é intrínseco ao projeto que denomina de colonização e apartheid sionistas.

“Palestinos e palestinas são presos políticos e encarcerados pelo simples fato de existirem enquanto palestinos, o que também é resistência”, afirma ela que é filha de palestinos, mas nasceu no Brasil.

Tanto o professor Huberman quanto Soraya dizem que a várias crianças palestinas são presas por se revoltar e atirar pedras em tanques ou nas forças de ocupação israelense.

“Podem ficar até 20 anos nos cárceres, enfrentando tortura, maus tratos, negligência médica”, registra Soraya ao lembrar que não é de hoje que existem relatos de violações dos direitos humanos de palestinos sob detenção de Israel.

“No caso das mulheres e meninas, intimidação e ameaça de agressão sexual e estupro são parte das terríveis torturas, como muitos relatos demonstram”, completa a jornalista.

Na realidade, denuncia Soraya, “protestar contra a ocupação, denunciar a limpeza étnica e o genocídio nas redes sociais, simplesmente mandar uma mensagem sobre a situação brutal, ser familiar ou amigo de alguém estão entre as ‘razões’ para que (palestinos) sejam presas e presos”.

Para Huberman, se de um lado muito se fala dos “reféns do Hamas”, de outro, é similar a situação dos presos administrativos de Israel.

“Prisão administrativa dá a ‘legitimidade’ de algo que é ilegal e é semelhante a sequestrar um refém”, entende.

Dados de organismos internacionais dão conta de que o número de palestinos detidos administrativamente quase que dobrou desde o ataque feito pelo Hamas em 7 de outubro.

Assim, informa Soraya, já seriam algo como 250 crianças e 95 mulheres nessa condição.

“Até então eram 5.200 (presos), incluindo 170 crianças e 33 mulheres. Vale observar que há dados de que em média 700 crianças são presas todos os anos pela ocupação israelense”, revela.

Ela vê a libertação das 150 mulheres e crianças como algo importante, mas não suficiente.

Lembrando que se trata de um acordo de pausa nos bombardeios, Soraya afirma: “Deve-se ampliar a pressão e mobilização pelo fim do apartheid, colonização, limpeza étnica e genocídio, o que se combina com a demanda pela libertação de todos os presos políticos palestinos”.

Os ideais serão algo que se possa alcançar?

Venho manifestando já por vezes minha opinião de que cada povo e até cada indivíduo, em vez de sonhar com falsas “responsabilidades” políticas, devia refletir a fundo sobre a parte de culpa que lhe cabe da guerra e de outras misérias humanas, quer por sua atuação, por sua omissão ou por seus maus costumes; este seria provavelmente o único meio de se evitar a próxima guerra. E por isso, não me perdoam, pois se julgam todos, sem dúvida, inocentes: o Kaiser, os generais, os grandes industriais, os políticos, os jornalistas... nenhum deles tem absolutamente nada de que recriminar-se, ninguém tem culpa alguma! Poder-se-ia até pensar que tudo foi melhor assim para o mundo, embora alguns milhões de mortos estejam embaixo da terra. E saiba, Hermínia, embora esses artigos ignominiosos não me possam atingir, às vezes me entristecem. Dois terços da gente do meu país leem esta espécie de jornal; leem de manhã e à noite coisas escritas neste tom, são trabalhados permanentemente, incitados, açulados; semeia-se neles o descontentamento e a maldade, e a meta final de tudo isto é outra vez a guerra, a próxima guerra, que já está chegando e que sem dúvida alguma será muito mais horrenda do que a última. Tudo isto é claro e simples, qualquer pessoa pode compreendê-lo; com uma hora de meditação todos poderiam chegar ao mesmo resultado. Mas ninguém quer agir assim, ninguém quer evitar a próxima guerra, quer livrar-se nem livrar a seus filhos da morte aos milhares, nem quer parar um instante e pensar voluntariamente. Uma hora de reflexão, um momento de entrar em si mesmo e perguntar a parte de culpa que lhe cabe nesta desordem e na maldade que impera no mundo... mas ninguém quer fazê-lo! E assim tudo continua como estava e a próxima guerra vai-se preparando cada dia que passa, com o auxílio de milhares e milhares de pessoas diligentes. Estas coisas sempre me desesperaram: para mim não existe “pátria”, não existe “ideal” algum. Tudo isto não passa de frases inculcadas por aqueles que preparam a próxima carnificina. Não tem sentido pensar ou escrever algo que seja humano, de nada vale ter boas ideias na mente... são duas ou três pessoas que agem assim em compensação, há milhares de jornais, de revistas, de conferências, reuniões públicas ou secretas que, dia após dia, insistem no contrário e acabarão por alcançá-lo. Hermínia permaneceu ouvindo com interesse.

— Sim — disse em seguida — você tem razão. Naturalmente haverá outra guerra; não é preciso ler nos jornais para saber disto. É certo, embora isso nos entristeça, que o homem, apesar de tudo e de todos, apesar do que possa fazer, o homem tem inevitavelmente de morrer. A luta contra a morte, meu caro Harry, é sempre uma coisa bela, nobre, prodigiosa e digna, da mesma forma que a luta contra a guerra. Mas há de ser sempre uma quixotada sem esperanças.

— Talvez seja verdade — exclamei enérgico — mas com verdades semelhantes a esta de que temos todos de morrer e que, por conseguinte, tudo é igual, é que convertemos a vida em algo monótono e estúpido. Desta forma teremos de renunciar a tudo, ao espírito, às aspirações; teremos de destruir a Humanidade, teremos de permitir que reine o egoísmo e o dinheiro e esperar a próxima guerra com um copo de cerveja à mão.

Estranho foi o olhar que Hermínia me dirigiu; um olhar de regozijo, cheio de ironia e malícia, de compreensão e camaradagem, mas também cheio de arrogância, de consciência e de profunda seriedade.

— Isto não se aplica a você — disse em tom maternal. — Sua vida não será monótona nem estúpida, embora saiba que sua luta é inútil. É muito mais lisonjeiro, Harry, lutar-se por alguma coisa bela e ideal e saber ao mesmo tempo que não se conseguirá alcançá-la. Os ideais serão algo que se possa alcançar? Viveremos para acabar com a morte? Não, vivemos para temê-la e também para amá-la, e precisamente por causa da morte é que nossa vida vez por outra resplandece tão radiosa num breve instante.

Hermann Hesse, "O lobo da Estepe"

A guerra e a terra

A guerra, retumbante fracasso da Política, é uma severa agressão ao Planeta em contraste com as sábias palavras de Francisco na Encíclica Laudato si, Louvado sejas, cujo subtítulo: sobre o Cuidado da Casa Comum (2015) exaltam os cuidados com a Terra.

O Professor Clovis Cavalcanti, economista ecológico avant la lettre, recomendou uma leitura reflexiva e me disse, feliz, que tínhamos um Papa que compreendera a dimensão do cântico de São Francisco de Assis ao pregar: “a nossa casa comum se pode comparar ora a uma Irmã, com que partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços”.

Que me perdoem os cientistas,, dedicados pesquisadores, notáveis filósofos, pensadores e os bem-intencionados líderes empresariais e políticos, mas o texto papal é insuperável. Revoluciona a base conceitual dos padrões civilizatórios contemporâneos e propõe uma relação fraterna entre o Homem e a Natureza de modo a assegurar equilíbrio e integridade planetária para as novas gerações.


O gatilho da releitura foi um cotidiano repleto de violências da guerra que nos chegam todos os dias, ao vivo e em cores, exemplos do extremo desamor humanitário. A destruição em larga escala do meio ambiente se soma também, às pequenas e grandiosas maldades, criminosas, que vão do corte da árvore, à poluição do ar, à contaminação da água e ao envenenamento da terra como se o papel da natureza se limitasse a alimentar um sistema de produção capaz de atender o consumo desenfreado e a ambição incontida.

Ao lado estrondoso da guerra, também, nos chegam eventos em proporções nunca vistas de enchentes, incêndios, vendavais, calor intenso e frio paralisante, ameaçando o ritmo da natureza e, por consequência, colocando em risco a biodiversidade, a cadeia produtiva e a segurança alimentar.

Ora, não foi por falta de aviso das instituições internacionais e de vozes esclarecidas que o abuso da natureza por uma equivocada dominação humana e o uso desenfreado dos recursos naturais, afetaria o clima, acelerando mudanças e provocando graves emergências climáticas. Tudo com base científica, ignorada pelo obscuro, delinquente negacionismo e desmedida ganância do enriquecimento.

É inegável que as inovações tecnológicas e os avanços da ciência ajudam, a mitigar os impactos, mas estão longe de ser um Deus ex-machina. O verdadeiro poder está na consciência das pessoas; é um impulso de dentro para fora que enxergue uma relação amorável com cada pedaço e cada ser do universo.

Neste desafio de profunda transformação cultural, há uma componente vital: a ética do bem comum. Inviável trilhar este caminho sem a companhia de um regime político que assegure a força da alteridade, da solidariedade, do diálogo e dos consensos. Este regime político é a democracia.

A guerra e a autocracia são inimigas do futuro da Terra.

Neste sentido, o argumento democrático vem sofrendo ameaças em decorrência do avanço da polarização política, do discurso antistabilshment, apropriado pelo populismo extremista. É uma doença que tem sérios sintomas endêmicos. Os aliados da antidemocracia, revela recente e farta literatura política, promovem a erosão das instituições e destroem o regime com os próprios mecanismos que dão sustentação às democracias liberais. Sem tanques, a arma é a cooptação e desmoralização dos mecanismos da representação popular até o capítulo final da captura do poder. A Hungria é um caso exemplar.

A propósito, os autores, Levitsky e Ziblatt, de Como as democracias morrem, (Zahar, 2018) lançaram uma obra atualíssima Como salvar a democracia (publicada no Brasil no dia 17 do corrente mês pela Editora Zahar), com um prefácio comparativo das situações entre o Brasil e os EUA, enfatizando ao longo da obra o fenômeno trumpismo/republicanos e um olhar comparativo da ascensão dos extremismos mundo afora.

De outra parte examinam com acurácia algumas circunstâncias a serem enfrentadas: a banalização do autoritarismo, a semilealdade, atributo dos personagens aproveitadores de qualquer espaço de poder, a tirania das minorias (a reversão da “tirania da maioria”).

E ao constatar a perda de prestígio da democracia, os autores defendem estratégias capazes de lutar contra o perigo autoritário, entre elas, coalizões centristas, democracia militante e defensiva, reformismo institucional, reafirmando que “a cura de todos os males da democracia é mais democracia”.

Sem meias palavras, os autores concluem com firmeza: nossas instituições não salvarão as democracias, temos que salvá-las nós mesmos; ou seremos democracias multirraciais no século XXI ou não seremos democracias.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Pensamento do Dia

 


O agro quer empurrar a conta do clima (para você)

No último dia 8, o presidente-executivo da Abiove, André Nassar, publicou no Broadcast Agro um artigo atacando o SEEG, o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima. Entre outras coisas, o texto acusa o OC de ter, de alguma forma, contribuído para a exclusão ao agronegócio do mercado regulado de carbono ao atribuir 75% (na verdade, 74%) das emissões do país aos sistemas alimentares. Ocorre que o estudo em referência só foi publicado após a exclusão do agro do projeto de lei que regulamenta o referido mercado – exclusão esta que ocorreu a pedido do próprio setor. Esse é um dos problemas técnicos e lógicos da missiva, dos quais trataremos adiante. Na raiz de todos eles está uma narrativa cada vez mais utilizada pelo agronegócio brasileiro: o setor não quer assumir as emissões de desmatamento.

Há 11 anos o SEEG publica anualmente, com cálculos feitos a partir de uma metodologia robusta e publicada numa das principais revistas científicas do mundo, as estimativas de emissão do Brasil. As análises do SEEG são tão sólidas que três estados brasileiros usam o sistema do OC para fazer os próprios inventários de emissões. Ano após ano, as contas do SEEG mostram que a devastação perdulária dos nossos biomas responde por cerca de metade das emissões brutas de gases de efeito estufa do país.

Agora, às vésperas da COP28, o agro decretou que não tem nada a ver com isso. Tem-se ouvido de figuras importantes do setor, dentro e fora do governo, que desmatamento e clima são coisas distintas; e que, se há alguém desmatando no país, esse alguém não é o agronegócio. A historinha é que a agropecuária só participaria do drama do clima global na condição de vítima.


Em 24 de outubro, 20 dias depois de o agro ter exigido – e ganho – sua exclusão do PL do mercado de carbono, o OC publicou um relatório calculando pela primeira vez as emissões totais dos sistemas alimentares do Brasil. A forma de fazer a conta é nova. Como Nassar aponta, ela de fato “rompe a fronteira” dos inventários de emissões ao considerar tudo o que é emitido nas fases de pré-produção agropecuária (mudança de uso da terra e produção de fertilizantes), produção (emissões diretas do rebanho, por exemplo) e pós-produção (transporte de alimentos e uso de energia do varejo, por exemplo). Os autores do SEEG aplicaram no Brasil um método desenvolvido pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).

Embora a conta seja nova, a notícia é velha: o desmatamento responde pelo grosso do 1,8 bilhão de toneladas de CO2 equivalente emitidas pelos sistemas alimentares no Brasil, com 56,3% do total, seguido pelas emissões diretas da agropecuária, com 33,7%, energia, com 5,6%, e resíduos, com 4,2%.

Confrontado com a febre, o presidente da Abiove preferiu atirar no termômetro: Nassar se bate contra a “alocação” das emissões, em especial as de desmatamento, ao setor. Segundo ele, a metodologia de alocação usada pelo OC no SEEG levaria a uma “atribuição exagerada” da responsabilidade das commodities pelo desmatamento. O oposto é verdade: o método da alocação, que parte das emissões totais do país (calculadas pelos seguros métodos de inventários que o SEEG adota rigorosamente) para então atribuí-las a um conjunto específico (no caso, os sistemas alimentares), busca justamente evitar que as emissões sejam superestimadas ou subestimadas.

Um aparte aqui: o peso direto do agro no PIB do Brasil é de cerca de 7%. Só que o setor computa efeitos indiretos, como a venda de máquinas agrícolas, insumos e serviços para chegar ao número mais frequentemente usado de 25% de participação. Isso tem nome: alocação. Aceitar alocações para a composição do PIB do agro, mas rejeitá-las quando o assunto são emissões, tem outro nome: duplo padrão.

O corolário desse raciocínio é que, se não se deve atribuir ao agronegócio as emissões de desmatamento, é porque o agro não desmata. Se isso é verdade, alguém mais está desmatando – a menos que as árvores da Amazônia venham programadas para entrar em apoptose e depois em combustão espontânea. Mas quem seriam os responsáveis? E o que ocorre com essa área convertida?

Utilizando as matrizes de transição do MapBiomas, que olham o que aconteceu com cada quadrado de 30 metros por 30 metros do território brasileiro desde 1985, os autores do SEEG concluíram que, desde 1990, 92% das emissões por desmatamento ocorreram devido à formação de pastagens, e outros 5% à produção de soja. Decerto há muito desmatamento especulativo, feito para tomar posse de terras públicas e não para produzir. Só que o destinatário final da maior parte da área aberta por grileiros é um pecuarista. Não há, portanto, nenhum erro em alocar todas as emissões por mudança de uso da terra, atividade que se beneficia de pelo menos 97% delas, à agropecuária. Ao contrário, é obrigação de quem calcula emissões fazê-lo.

Mas, se o agro não tem nada a ver com quem desmata, fica aqui então um desafio para o setor: aprovar um projeto de lei aumentando a punição aos crimes por desmatamento, ou outro para punir de forma rigorosa e definitiva o crime de grilagem de terras, que afinal tanto lhe prejudica a imagem.

No mundo real, infelizmente, o que se vê é o contrário: representantes do agro no Congresso estão neste momento em campanha para aprovar uma anistia potencialmente eterna à grilagem de terras no país e avançando sobre os direitos e territórios indígenas, estes os verdadeiros guardiões das florestas. Pior ainda, a julgar pela sugestão de André Nassar sobre o mercado de carbono, o setor quer ganhar dinheiro vendendo créditos de carbono, mas não quer reportar e muito menos limitar suas emissões. No sistema de “cap and trade”, o agro quer o “trade”, mas não o “cap”.

A agropecuária brasileira é melhor que isso. É um setor que obteve ganhos imensos de produtividade com uso de tecnologia e que há dez anos pratica o maior programa de agricultura tropical de baixa emissão do mundo, com sequestro líquido de carbono em solos bem manejados (como o SEEG mostra há oito anos). Faria melhor o setor para si, para o país e o planeta se encarasse seus problemas – todos solucionáveis – de frente em vez de tentar se esconder atrás de contorcionismo retórico ou negacionismo.

As vozes do povo precisam ser ouvidas

Não sei dizer se “a voz do povo é a voz de Deus”, mas que a sociedade precisa ser mais ouvida, precisa.

As mudanças na sociedade são como placas tectônicas em movimento. Só são percebidas quando ocorrem acidentes, como os terremotos, cujo paralelo seriam as revoltas nas ruas e as surpresas nas urnas.

Há um descontentamento social que se revela em sentimento de insegurança e medo de retrocessos. Esse fenômeno, global, representa um desafio, especialmente para os partidos de centro-esquerda, que têm falhado ao não capturar e acolher as novas demandas sociais.

Nos Estados Unidos, estudo recente do Progressive Policy Institute aponta para mudanças nos anseios de eleitores da classe trabalhadora, que levaram ao seu afastamento do Partido Democrata. Uma trajetória que culminou com o domínio de Trump no Partido Republicano.


Se no passado a classe trabalhadora estava associada a ocupações masculinas sindicalizadas, principalmente na manufatura, hoje ela se encontra mais nos vários segmentos de serviços, muitos não sindicalizados, havendo grande presença de mulheres. Muitos trabalhadores não desfrutam dos benefícios dos sindicalizados da indústria e desejam ter seus próprios negócios, sendo assim mais sensíveis a barreiras regulatórias e burocracias que dificultam o empreendedorismo.

Queixam-se da automação que deprime empregos e salários, e não veem o grau universitário como caminho para o avanço profissional. A maioria (74%) defende o investimento público em estágios e planos de carreira e deseja atividades de curta duração que combinem aprendizado e trabalho.

Grande parcela (45%) acredita que o Partido Democrata se moveu em demasia para a esquerda e (40%) o considera bastante influenciado por "interesses especiais”, como sindicatos do setor público. Quando perguntados sobre o que mudariam na plataforma democrata, apontaram a prioridade no crescimento e o controle dos gastos públicos.

Apesar de desejarem maior respeito do Partido Republicano a instituições democráticas e postura menos restritiva em temas sociais, o julgam mais preparado para gerir a economia. Acham que se sai melhor no fortalecimento da iniciativa privada e do empreendedorismo. Os democratas lideram apenas na agenda ambiental e no respeito às instituições democráticas.

A eleição de Javier Milei na Argentina é outro exemplo das consequências do movimento de placas tectônicas. Com apoio puxado por homens jovens, sem formação superior e baixas perspectivas no mercado de trabalho, obteve ampla vitória.

As últimas décadas mudaram a dinâmica social naquele país, principalmente desde a crise de 2001, quando a pobreza ficou mais visível, aponta a consultoria Moiguer. Até então, apesar da fragmentação da sociedade, havia um imaginário comum de um país de classe média – tanto segmentos ricos como pobres se identificavam como classe média.

As crises econômicas não só aprofundaram como solidificaram a fragmentação social, apagando o sentimento de pertencimento de classe média e alimentando a polarização na sociedade, em diversos temas.

Um estudo da consultoria aponta que 91% da classe baixa, que representa 50% da sociedade, é cronicamente pobre, o que significa que não sairia da pobreza mesmo com 4 ou 5 anos de crescimento econômico robusto do país. Apesar de 70% dos indivíduos da classe baixa terem mais escolaridade do que os seus pais, isso não se traduziu em ascensão social.

O Brasil seguiu caminho diverso, que permitiu o surgimento da nova classe média, ainda que com retrocessos por conta da recessão do governo Dilma. Novos anseios surgiram, como por serviços públicos de qualidade e liberdade para empreender. Temas típicos de uma agenda liberal deixam de ser tabu, como as reformas trabalhistas e a autonomia do Banco Central.

Enquanto isso, o PT confunde estado forte, que provê bom serviços públicos e protege direitos, com estado intervencionista, que alimenta o patrimonialismo, este bastante revigorado, como se viu na tramitação da reforma tributária.

Há ainda boa dose de paternalismo que, ao final, acaba prejudicando a própria classe trabalhadora, como no tabelamento dos juros do consignado e na portaria que condiciona o trabalho do comércio nos domingos e feriados à convenção coletiva de trabalho.

Esses elementos não têm aderência aos novos valores das classes trabalhadoras. Elas serão ouvidas?

Vencedora do Pulitzer denuncia guerra em Gaza e se demite do New York Times

A guerra em Gaza e o horror televisionado tem levado intelectuais, artistas e ativistas em todo o mundo a se posicionarem a respeito dos crimes de guerra cometidos por Israel durante o conflito. Uma delas, é a proeminente a poetisa e ensaísta Anne Boyer, que se pronunciou de forma contundente contra a política editorial do The New York Times (NYT) sobre a cobertura da guerra no Oriente Médio.


Editora de poesia da New York Times Magazine, o suplemento dominical do diário novaiorquino, ela pediu demissão do cargo, alegando que “a guerra do Estado israelense apoiada pelos Estados Unidos contra o povo de Gaza é em nome de ninguém”.

“Não há segurança dentro ou fora dela, nem para Israel, nem para os Estados Unidos ou a Europa, e especialmente para os muitos povos judeus caluniados por aqueles que afirmam falsamente lutar em seus nomes. O seu único lucro é o lucro mortal dos interesses petrolíferos e dos fabricantes de armas”, acrescentou a autora, em texto publicado em seu blog Mirabilary, no qual divulga as razões por trás de sua decisão.

Em outra passagem do seu texto de demissão, a poetisa condena as “paisagens infernais verbalmente higienizadas” nos textos do jornal, e também o apoio editorial do NYT às “mentiras belicistas” de Israel.

O último trabalho de Boyer como editora do suplemento do NYT foi a publicação, na edição de 5 de novembro, de um poema da poeta palestino-americana Fady Joudah intitulado “Escrito nas últimas semanas”, sobre o qual ela comentou: “O peso do não dito e do indizível, do perdido e do deixado de lado, paira sobre a cabeça do poema. Talvez seja a Palestina. O que está faltando desafia a proporção. Poderia ser tão vasto quanto a história, tão pequeno quanto a respiração de uma criança”.

Anne Boyer vive atualmente em Kansas City, no Missouri. Sua carreira se destaca por obras como The Romance of Happy Workers (2006), My Common Heart (2011), Garments Against Women (2015, 2016) e Handbook of Disappointed Fate (2018).

Anos atrás, a escritora lutou contra um agressivo câncer de mama, e criticou firmemente o sistema de saúde norte-americano no livro The Undying: Pain, Vulnerability, Mortality, Medicine, Art, Time, Dreams, Data, Exhaustion, Cancer, and Care (2019), vencedor do Prêmio Pulitzer de 2020.

Na obra, a poetisa aborda “a experiência da doença mediada por telas digitais, tecendo antigos diários de sonho, fraudadores e fetichistas do câncer, vloggers de câncer, mentiras corporativas, pessoas pró-dor, os custos ecológicos da quimioterapia e os muitos pequenos assassinatos do capitalismo”, como descreve o site da premiação.

Posições anticapitalistas são uma marca da escrita transgressora de Boyer. Em entrevista à BBC em 2021, ela crítica a retórica neoliberal do livre arbítrio, dizendo que “ela esconde que, na realidade, muito do que nos acontece não é o resultado de nossas escolhas, é um conjunto de condições compartilhadas, de forças históricas, de estruturas político-sociais”.

“Não posso escrever sobre poesia no tom ‘razoável’ daqueles que pretendem nos acostumar a esse sofrimento irracional”.

Eis a sua carta de renúncia ao seu cargo como editora de poesia da New York Times Magazine:

“Pedi demissão do cargo de editora de poesia da New York Times Magazine.
A guerra do Estado israelense apoiada pelos Estados Unidos contra o povo de Gaza é em nome de ninguém. Não há segurança dentro ou fora dela, nem para Israel, nem para os Estados Unidos ou a Europa, e especialmente para os muitos povos judeus caluniados por aqueles que afirmam falsamente lutar em seus nomes. O seu único lucro é o lucro mortal dos interesses petrolíferos e dos fabricantes de armas.

O mundo, o futuro, os nossos corações – tudo fica menor e mais difícil com esta guerra. Não é apenas uma guerra de mísseis e invasões terrestres. É uma guerra contínua contra o povo da Palestina, pessoas que resistiram durante décadas de ocupação, deslocação forçada, privação, vigilância, cerco, prisão e tortura.
Como o nosso status quo é a auto expressão, por vezes o modo mais eficaz de protesto para os artistas é recusar.

Não posso escrever sobre poesia no tom ‘razoável’ daqueles que pretendem nos acostumar a esse sofrimento irracional. Chega de eufemismos macabros. Chega de paisagens infernais higienizadas verbalmente. Chega de mentiras belicistas.
Se esta demissão deixa nas notícias um buraco do tamanho da poesia, então essa é a verdadeira forma do presente”.

Nunca morreram tantos jornalistas num só lugar

Quando, a 2 de Novembro, o jornalista Mohammed Abu Hatab, repórter veterano da Televisão da Palestina, morreu em Gaza, as notícias sobre a sua morte foram confusas.

Salman Al-Bashir, colega da mesma televisão – o canal oficial da Autoridade Palestiniana –, estava em directo quando soube da morte. Ficou muito perturbado, chorou ao vivo e, num gesto que correu o mundo, tirou o capacete da cabeça e despiu o colete antibala com a palavra “PRESS” gravada no peito e nas costas. Atirou tudo para o chão e disse qualquer coisa como: “Isto não serve para nada, não nos protege de nada, vamos ser todos mortos”.

A sua intervenção dava a entender que Abu Hatab morrera “em serviço”, enquanto fazia uma notícia ou uma reportagem. No dia seguinte, o New York Times publicou uma notícia que dizia na “entrada” – frase abaixo do título que antecede o texto – que “Mohammed Abu Hatab é o mais recente jornalista a morrer enquanto cobria a guerra Israel-Hamas”.


Abu Hatab não estava a trabalhar. A própria notícia do New York Times diz que “a Televisão Palestina disse” que Abu Hatab foi morto “em casa por um ataque aéreo israelita”.

Abu Hatab estava em casa. Todas as notícias que li relatam que morreu com 11 membros da sua família, incluindo a mulher, um filho e um irmão. Algumas notícias dizem que fizera uma reportagem no Hospital Nasser, em Khan Yunis, em Gaza, uma hora antes do ataque a sua casa e sugerem que a casa foi um alvo directo de Israel. Há imagens que mostram o pequeno prédio onde Abu Hatab vivia totalmente destruído, ao lado de prédios intactos.

Será difícil saber.

É bem possível que não tenha sido intencional, mas um bombardeamento como tantos outros. Já morreram 15 mil pessoas desde que a guerra começou, alguns são jornalistas, muitos mais têm outras profissões ou são jovens e crianças.

A organização Euro-Mediterranean Human Rights Monitor, cujo presidente é Richard Falk, professor emérito de Direito Internacional da Universidade de Princeton, diz no entanto que “Israel lançou uma onda de assassinatos contra jornalistas no país, visando deliberadamente profissionais e escritórios de media, para tentar impor um bloqueio real e abrangente dos media em toda a Faixa de Gaza”.

Diz também que “a escalada de Israel contra os jornalistas foi acompanhada pelo incitamento público por parte de ministros e funcionários israelitas, que fizeram afirmações infundadas e ilógicas de que jornalistas tinham conhecimento do ataque de 7 de Outubro no sul de Israel”. Dão como exemplo as declarações do antigo embaixador israelita nas Nações Unidas, Danny Danon, que apelou a que alguns fotojornalistas de Gaza fossem incluídos na lista de participantes na operação de 7 de Outubro e fossem “eliminados”.

Dirá o leitor: a Euro-Mediterranean Human Rights Monitor é pró-Palestina, a sua análise é parcial. É possível.

Mas o caso de um freelancer da agência de notícias Reuters levanta perguntas perturbadoras.

Há dois dias, a Reuters escreveu que “ataques mortais atingiram a casa de um fotógrafo em Gaza, dias depois de um grupo de activistas de defesa dos media israelitas ter questionado a sua cobertura do ataque do Hamas de 7 de Outubro, gerando ameaças de morte contra ele nas redes sociais”.

Diz a Reuters que o fotógrafo Yasser Qudih sobreviveu ao ataque a sua casa na noite de 13 de Novembro, mas que oito familiares morreram. O ataque ocorreu cinco dias depois da publicação de um texto da organização HonestReporting no qual se questiona se Qudih e outros três fotógrafos de Gaza, cujas imagens foram publicadas na Reuters, AP, CNN e New York Times, teriam tido conhecimento prévio do ataque de 7 de Outubro.

A HonestReporting diz ter como missão “combater o preconceito ideológico no jornalismo e nos media com impacto em Israel”.

No dia 9, a Reuters negou as sugestões da HonestReporting de que tinha conhecimento prévio do ataque e disse que o governo israelita lhe exigira explicações.

O HonestReporting disse que não estava a acusar a Reuters de conluio, mas a “levantar questões éticas sobre a cobertura jornalística”.

O facto é que circulou uma fotografia de 7 de Outubro na qual se vêem palestinianos a transportar uma mulher civil israelita, capturada no kibbutz Kfar Azza e que estava ser levada de moto para Gaza. Na imagem, vêem-se dois fotógrafos.

A 8 de Novembro, Eli David, investigador e investidor (e que diz ter uma das 100 contas de Twitter mais influentes do mundo), publicou essa fotografia com setas vermelhas a apontar para esses fotógrafos palestinianos e escreveu no X: “Última hora: AP, CNN, New York Times e Reuters tinham jornalistas ’embedded’ com os terroristas do Hamas no massacre de Outubro.” O post foi visto por dez milhões de pessoas.

No dia 9, o general Benny Gantz, ministro sem pasta no actual governo israelita, escreveu no X que “os jornalistas que sabiam do massacre e que ainda assim optaram por permanecer como espectadores passivos enquanto crianças eram massacradas não são diferentes dos terroristas e devem ser tratados como tal.”

A Reuters respondeu que as fotografias que comprou a Qudih, fotógrafo que estava na fronteira a 7 de Outubro, foram tiradas muito depois de o ataque ter começado, o que destrói o argumento de que a agência ou o fotógrafo tiveram conhecimento prévio do ataque.

Disse a Reuters: “As fotografias publicadas pela Reuters foram tiradas duas horas depois de o Hamas ter disparado contra o sul de Israel e mais de 45 minutos depois de Israel ter dito que homens armados tinham atravessado a fronteira. Os jornalistas da Reuters não estavam no terreno nos locais mencionados no artigo do HonestReporting.” Ou seja, os jornalistas souberam do ataque e foram a correr para a fronteira, que é o que os jornalistas fazem.

Certo é que, dias depois de tudo isto, a casa de Qudih foi bombardeada.

Desde que a guerra Israel-Hamas começou, já houve mais jornalistas e pessoal dos media mortos do que em qualquer outro período semelhante num só conflito, disse o Comité de Protecção dos Jornalistas. Pelo menos desde 1992, quando esta lista começou a ser feita. Hoje, 22 de Novembro, já são 62 mortos, quase todos jornalistas palestinianos. Em 2022, em todo o mundo, morreram 68 jornalistas por serem jornalistas.

Sessenta e dois jornalistas são uma gota nos mais de 15 mil mortos desde o início desta guerra. A vida dos jornalistas não vale mais do que a dos médicos, professores ou sapateiros. E muitos jornalistas não morreram enquanto estavam a trabalhar, não terão morrido por serem jornalistas. A maior parte estava simplesmente em Gaza, em casa, talvez a dormir.

Mas há dois problemas: o primeiro é a nuvem de suspeita sobre a morte de tantos jornalistas em tão pouco tempo. Outro é mais simples: há cada vez menos jornalistas para contar o que se está a passar em Gaza.