O estudo foi realizado por pesquisadores da Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), da Fundação Oswaldo Cruz do Piauí, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade de São Paulo (USP) a partir de dados obtidos do satélite do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas a Médio Prazo ao longo de uma década – de 2010 a 2019 – e publicado no periódico científico Cadernos de Saúde Pública.
Considerou-se como índice alto de poluente quando a medição indicou um nível superior a 15 microgramas de material particulado – os resíduos da queima, dispersos no ar – por metro cúbico. Assim, seguiu-se a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que indica que níveis acima disso já representam risco ao ser humano.
"Usamos a referência da OMS porque para a legislação brasileira definida pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente o limite é de 60 microgramas por metro cúbico. E [para isso] não há base científica", diz uma das autoras da pesquisa, a doutora em saúde pública Eliane Ignotti, professora na Unemat. "Lembramos que há vários estudos, inclusive no Brasil, em que são observados impactos à saúde com limites muito mais baixos."
"É interessante observar que em muitas localidades (...) estes níveis elevados de poluição atingem 100% dos dias no período de estiagem", acrescenta outra das autoras, a também doutora em saúde pública Beatriz Alves de Oliveira, pesquisadora na Fundação Oswaldo Cruz.
Se a pesquisa identificou que mais da metade da população das regiões está exposta a níveis acima do patamar considerável aceitável pela OMS em pelo menos metade do ano, ao analisar os pontos mais excessivos os números são ainda mais preocupantes.
"Estamos lidando com dados estimados, que alcançam frequentemente níveis acima de 200 microgramas por metro cúbico, até 800, 1.000", salienta Ignotti. Ela afirma que "estamos falando de níveis extremamente elevados quando comparados aos limites recomendados pela OMS".
Os autores do estudo alertam para os riscos à saúde pública. "O percentual de dias com má qualidade do ar é um indicador de exposição à poluição atmosférica que identifica as áreas potenciais de risco para a saúde humana a região", explica a professora.
Entre os problemas mencionados pelos pesquisadores estão "o aumento do número de óbitos e internação por doenças cardiopulmonares, o aumento de atendimentos ambulatoriais, o aumento de prevalência de asma, baixo peso ao nascer e até de câncer de pulmão".
Ou seja, além de piorar a qualidade de vida da população, isso significa também aumentar a demanda e criar sobrecarga no sistema de saúde. "Milhares de internações e de óbitos poderiam ser evitados se os níveis de poluição não fossem os verificados nessa região", diz ela.
Quarenta cigarros
A reportagem da DW consultou especialistas alheios ao estudo para tentar mensurar o impacto dessa poluição tanto nas populações quanto no ecossistema da região.
Chefe do Laboratório de Patologia Ambiental e Experimental do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, a bióloga e fisiopatologista Mariana Veras corrobora que os riscos são muito altos para a saúde humana quando pessoas são expostas a níveis altos de poluentes com frequência.
"Há efeitos leves, como uma irritação nos olhos, garganta, tosse, e também efeitos muito graves, como maior incidência de infarto, acidente vascular cerebral, bronquite, agravamento de asma e doenças que se desenvolvem com situações de longo prazo", comenta. "Hoje há estudos que mostram associações de poluição do ar e maior risco de Alzheimer, diabetes, obesidade e outras doenças crônicas."
Publicada em 2021, uma pesquisa coordenada pela Universidade Monash, da Austrália, com participação de cientistas da USP, apontou que incêndios florestais já são a causa de hospitalizações de 47 mil brasileiros por ano. Crianças e idosos estão entre os mais afetados.
Veras recorda de um estudo realizado anos atrás por seu laboratório buscando comparar os danos causados pela poluição de São Paulo, cujo ar tem uma média de 25 microgramas de partículas do tipo por metro cúbico, com os malefícios do cigarro. "Concluímos que duas horas no trânsito [da capital paulista] equivalem a fumar dois cigarros", conta. Ou seja: um cigarro por hora de exposição. "Mas quem mora perto de queimadas tem uma concentração [de partículas poluentes no ar] muito maior."
Fazendo uma analogia, nos casos extremos de localidades da Amazônia e do Centro-Oeste onde a poluição chega a 1.000 microgramas por metro cúbico, isso significaria fumar 40 cigarros a cada hora de exposição.
A especialista explica que as partículas de poluição decorrentes de queimadas e incêndios florestais têm um potencial de danos ao organismo que pode ser ainda pior do que a poluição das cidades, composta por outros materiais. "São características da composição, principalmente do que a gente chama de material particulado, formado pela parte incompleta da combustão da biomassa, da madeira, da floresta. São partículas muito pequenininhas, capazes de entrar em nosso pulmões, chegar nas regiões mais profundas. Apresentam mais risco para a saúde", diz.
Pesquisador do Instituto Ambiental de Estocolmo, o biólogo Mairon Bastos Lima também vê com preocupação o impacto que essa poluição decorrente do fogo nas florestas pode causar nos próprios ecossistemas da Amazônia Legal e do centro-oeste.
As consequências vão do desequilíbrio ambiental a prejuízos para a agricultura. "Mais estudos são necessários para compreender melhor esses impactos, mas é seguro dizer que tamanha quantidade de fumaça e poluição não é inócua", argumenta.
"Por exemplo, pode haver mortandade de certos insetos, com consequências ainda pouco compreendidas. Alguns insetos, como as abelhas, são chave para processos de polinização, além da produção de mel", diz. "Por outro lado, há famílias de insetos chamados de pirófilos por gostarem da fumaça e cujos números se elevam nessas situações. Esses insetos podem incluir tipos de gafanhotos, com consequências [danosas] para a agricultura."
Lima, que atualmente está em pesquisa de campo no Pará, contar ter ouvido de locais que o aumento das queimadas parece estar relacionado ao crescimento das populações de potó, um inseto que pode causar queimaduras severas na pele de humanos. "Mas ainda estamos no escuro em relação a isso, precisamos de mais estudos", salienta.
Onde já há certezas são em pesquisas que mostram, lembra Lima, que a recorrência de fumaça "reduz a resiliência da floresta, isto é, sua habilidade de se regenerar". "E já sabemos que o desmatamento e as queimadas afetam negativamente o regime de chuvas na Amazônia e no seu entorno, e que as chuvas são essenciais para a regeneração do bioma. É o ciclo vicioso que está nos levando para o chamado ponto de não-retorno na Amazônia, quando esse ecossistema já não gerará chuva suficiente para sua própria manutenção", acrescenta.
"Estamos brincando com fogo em todos os sentidos do termo, pois as consequências disso seriam catastróficas. É fundamental que deixemos de ser inconsequentes", alerta o biólogo.
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