sábado, 5 de novembro de 2022

Como ficam os militares depois da vitória de Lula

Os militares conquistaram acesso privilegiado ao poder durante o governo Jair Bolsonaro, com reflexos na definição de políticas públicas e nos rendimentos da categoria, e exerceram um grau de influência na esfera civil do país como não ocorria desde o fim da ditadura militar.

A ascendência da caserna sobre a política deverá ser reduzida com a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, mas tem raízes históricas no país e ela deve seguir à espreita de uma nova crise grave para retomar a busca por protagonismo, avaliam especialistas.

Durante a gestão de Bolsonaro – um capitão reformado do Exército – os militares comandaram órgãos relevantes do governo, como Casa Civil, Secretaria-Geral da Presidência, Saúde e Infraestrutura, entre outros. E ocuparam centenas – ou milhares, a depender da metodologia – de outros cargos no governo.

O jornalista Fabio Victor, autor do livro recém-lançado "Poder camuflado: Os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro", editado pela Companhia das Letras, compilou levantamentos que buscaram medir o número de militares que ocuparam a gestão pública federal.

O Tribunal de Contas da União (TCU) identificou em 2020 6.157 militares exercendo funções civis na administração pública federal, um aumento de 102,2% em relação aos 2.957 de 2016 – incluindo 1.969 militares inativos contratados para funções temporárias no INSS, além de 1.249 acumulando cargos na saúde e 179 na educação.

Outro levantamento realizado pela Lagom Data para o livro de Victor identificou mais de 5 mil militares em cargos civis no final de 2021, alta de 43% em relação aos 3.500 no final do governo Dilma Rousseff. Considerando apenas os mais altos postos comissionados da administração federal – a elite do funcionalismo – 186 diferentes militares da ativa e da reserva ocuparam esses cargos ao longo do governo Dilma, e 717 no governo Bolsonaro até dezembro de 2021, alta de 285% – dos quais apenas um em cada cinco estava em pastas tradicionalmente ligadas à caserna.

O sociólogo João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), especialista em Forças Armadas e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, afirma à DW que os militares participaram do governo Bolsonaro "do começo ao fim" e "não fizeram nenhuma sinalização de distanciamento".

Uma atuação destacada das Forças Armadas a serviço do governo Bolsonaro ocorreu no processo de organização das eleições deste ano. Os militares foram convidados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a participarem da Comissão de Transparência das Eleições, e usaram o espaço para semear dúvidas sobre a urna eletrônica e fazer exigências à Corte alinhadas ao interesse do presidente de questionar a lisura do processo eleitoral.


"Bolsonaro e seu ministro da Defesa, que se revelou um bolsonarista de quatro costados tão logo trocou a farda pelo paletó, aproveitaram [o convite do TSE] para politizar ainda mais uma questão que não diz respeito aos militares e ampliaram a confusão entre política e caserna", afirma Victor.

Uma diferença crucial entre a atuação dos militares durante o próximo governo Lula e como eles agiram nas gestões anteriores do PT é que agora sabe-se com mais clareza o que a caserna pensa e como ela age para ocupar espaços, diz Martins Filho – como se as máscaras tivessem caído durante o governo Bolsonaro.

Ele cita um documento lançado em maio pelos institutos General Villas Bôas, Sagres e Federalista, intitulado Projeto de Nação e com propostas para o Brasil até 2035, em uma cerimônia com a presença do general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, que "representa bem" o que pensa o meio militar.

No documento, há críticas à suposta "ideologização radical no ensino" e à atuação do Judiciário e do Ministério Público "sob um prisma exclusivamente ideológico, reinterpretando e agredindo o arcabouço legal vigente, a começar pela Constituição".

Outro registro do pensamento militar é uma carta do general Villas Bôas, ex-comandante do Exército, divulgada no final de semana do segundo turno, que afirmava que a eleição de Lula levaria à "destruição do civismo e ridicularizarão do patriotismo e dos símbolos nacionais", "desrespeito à Constituição" e "desmontagem das estruturas produtivas que tão arduamente foram recuperadas".

"Parece uma série de devaneios, mas representam bem o que pensa o militar médio", diz Martins Filho. Ele afirma que os militares "não perdoam" o Judiciário por ter anulado as condenações de Lula e, como resultado, permitido que o petista concorresse à eleição.

Nesta quinta-feira (03/11), Mourão expressou esse sentimento em um post no Twitter, no qual reclamou que a população aceitou "passivamente" a "escandalosa manobra jurídica" que anulou as condenações do petista.

Victor também identifica que a crítica ao Judiciário é um elemento comum no meio militar hoje. "Grande parte dos militares concorda com aspectos do bolsonarismo e faz eco a questões como a crítica ao papel do Supremo e do TSE. Acham que o Judiciário se intrometeu demais, e isso tensiona relações entre o poder civil e a caserna."

A campanha de Lula ao Planalto falou poucas vezes sobre o que planeja fazer em relação aos militares. Há nas suas diretrizes de governo apenas uma curta menção às Forças Armadas, afirmando que elas "atuarão na defesa do território nacional, do espaço aéreo e do mar territorial, cumprindo estritamente o que está definido pela Constituição".

Martins Filho avalia que a escassez de detalhes de Lula sobre como pretende lidar com as Forças Armadas é uma estratégia deliberada para não dar sinais de fraqueza ou de enfrentamento, e indica que ele "perdeu as ilusões" de que seria possível conquistar os militares destinando fartos recursos para seus projetos – como tentou fazer no seu primeiro governo.

O professor da Ufscar cita que o ex-chanceler e ex-ministro da Defesa Celso Amorim também declarou em entrevistas ter ficado atônito ao perceber que muitos militares haviam ludibriado o governo petista, para conquistar promoções na carreira, e depois mostraram-se bolsonaristas.

Uma das medidas consideradas certas no próximo governo Lula é a redução do número de militares exercendo cargos civis na administração pública federal, o que irá provocar perda de rendimento para os afetados – que hoje acumulam o soldo militar às gratificações de suas funções no governo.

Martins Filho também projeta que a gestão Lula evitará declarar novas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que foram usadas nos governos anteriores do PT para designar as Forças Armadas como responsáveis pela segurança de eventos como a Rio+20 em 2012, as visitas do Papa Francisco em 2012 e 2013 e a Copa do Mundo de 2014. Uma alternativa civil seria designar a Polícia Federal para essa função.

"Segundo o modus operandi desses generais, toda vez que você dá um cargo importante para eles procurando agradar, apaziguar, você os acaba empoderando", diz Martins Filho.

Ele diz que outro caso que ampliou o poder e prestígio dos militares durante os governos do PT foi a participação do Brasil na Missão da Nações Unidas para Estabilização do Haiti, que foi comandada por um período pelo general Augusto Heleno, atualmente braço direito de Bolsonaro e ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. O ex-ministro da Infraestrutura de Bolsonaro e governador eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas, também atuou no Haiti.

Ele prevê ainda a destinação de poucos recursos para projetos militares muito custosos, devido à desconfiança mútua com o novo governo e às restrições orçamentárias previstas para os próximos anos.

Por outro lado, o governo Lula não deve promover punições aos militares que atuaram no governo Bolsonaro, diz Martins Filho. Victor tem avaliação semelhante: "Pelo histórico dos dois governos de Lula e pelo perfil conciliador do presidente eleito, creio que ele vai se esforçar para evitar revanchismos."

Em relação ao comando do Ministério da Defesa, Victor diz ser "seguro" que Lula nomeará um civil para o comando da pasta, uma prática iniciada em 1999, no segundo governo Fernando Henrique Cardoso, que simbolizou a submissão das Forças Armadas ao poder civil, e interrompida no governo Michel Temer, com a nomeação do general Joaquim Silva e Luna em 2018.

Ele afirma que Aldo Rebelo, que comandou a Defesa de outubro de 2015 a maio de 2016, quando Dilma foi afastada do cargo no seu processo de impeachment, é "benquisto" entre os militares, mas não deverá ter apoio do PT para voltar ao cargo "a menos que Lula resolva bancá-lo". Ele menciona que os deputados petistas Carlos Zarattini e Arlindo Chinaglia, ambos de São Paulo, têm "algum trânsito" na caserna, e que o nome do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, também tem sido ventilado.

Victor pontua que um desafio do novo governo Lula será lidar com a pressão de setores mais à esquerda por mudanças em temas tidos pelos militares como "intocáveis", como a Lei da Anistia, os currículos das escolas militares e o sistema de promoção de oficiais-generais. "Mas creio que deve prevalecer a natureza de Lula pela conciliação."

Pelo menos no início do governo Lula, a perspectiva é de pouca resistência pública dos militares da ativa em relação ao novo presidente. Um dos motivos é o pragmatismo daqueles que hoje são coronéis e desejam chegar ao posto de general, uma promoção que depende de alguma articulação política, diz Martins Filho.

Além disso, os militares buscarão manter um canal aberto com Lula para pleitear verbas para as Forças Armadas. "Eles não poderão agir como uma força bolsonarista, pois é o governo central que tem o dinheiro e esse confronto direto não seria bom para eles", afirma Martins Filho. Mas tampouco haverá uma efetiva aproximação. "A incompatibilidade de gênios é muito grande entre o presidente da República eleito e os militares."

Martins Filho avalia que o cenário mais provável é os militares recuarem para uma posição mais discreta a partir da posse de Lula. "O problema é que agora nós sabemos o que eles pensam e como eles agem, e é completamente diferente do que pensa a frente democrática. Será uma relação difícil", diz, sublinhando o risco de que, caso Lula enfrente alguma crise grave, os militares "voltarão com tudo" para a seara política com a narrativa de que são instituições a serviço do povo.

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