quarta-feira, 14 de setembro de 2022

De qual Brasil falamos?

O da Colônia ou o do Império, o do republicanismo elitista ou o democrático, o do sertão ou o do litoral, o dos aristocratas ou o Brasil polarizado e sectário de hoje?

No meu trabalho, distingo um Brasil lido como sociedade (costumes e cultura) de um Brasil representado como nação e Estado nacional. O primeiro seria governado por hábitos do coração, conforme diriam Rousseau e Tocqueville; o segundo, administrado por uma legião de leis e procedimentos jurídicos.

Nossas sociologias e politicologias falam do Brasil como Estado nacional e pouco do Brasil como um sistema de valores. E menos ainda dos diálogos, dilemas e paradoxos dos encontros entre esses Brasis.

Um encontro responsável pela emergência de estadolatria, estadomania e estadopatia. Sem perceber que não há governo sem sociedade e que povo e governo não podem ser inimigos, numa polarização em que um “Estado forte” (ou uma “Nova República”) deveria corrigir uma sociedade velha e fraca, a solução tem sido a adoção de “estadolatrias” messiânicas. Despotismos, entretanto, destinados a se desfazer porque os hábitos relacionais do “Brasil sociedade” acabam englobando e criando uma inércia histórica promotora de retornos aterradores, das tais leis que não pegam.


Uma visão enviesada do Brasil engendra batalhas entre costumes não escritos (mas estabelecidos) e leis explícitas (destinadas a corrigir a índole de tais costumes). Ela conduz ao que estamos revivendo hoje: um momento eleitoral que seria de futuro nos leva ao passado justamente porque há um impasse entre o “Brasil nação” e o “Brasil das simpatias populistas”. O Brasil das impessoalidades legais encontra seu limite no Brasil das pessoalidades do “você sabe com quem está falando?” e das “leis que não pegam”.

O Brasil dos personalismos avessos à igualdade é mais resistente que o das normas que valem para todos. Mas como ter normas valendo para todos sem realizar uma crítica honesta do peso das obrigações familísticas? Não para liquidá-las, mas seria possível neutralizá-las escolhendo os valores democráticos da liberdade sem esquecer a igualdade.

Um primo é por mim nomeado ministro. Devo tratá-lo como primo ou como ministro? Ele se comportará como dono do meu governo ou como um funcionário? Se houver um conflito entre o ministério e o governo, ele agirá como primo ou como ministro?

Essas são questões que jamais discutimos francamente, que foram providencialmente esquecidas por nossa agenda democrática, que teria de passar a limpo o Brasil da casa pelo Brasil impessoal da rua e vice-versa.

A dificuldade com a democracia tem a ver com esse dilema entre o poder insuspeito da simpatia pessoal, que tende ao segredo e à corrupção, e a demanda da liberdade igualitária, que tende ao mundo público da impessoalidade e do anonimato — esses pilares do dinamismo democrático.

Em relação ao tamanho imenso da tarefa de implantar democracias em sociedades relacionais e patriarcais, há a dificuldade de perceber que nossos amados ou odiados “políticos” não vieram de Marte, de Pasárgada, do inferno ou do céu, mas são nossos amigos, filhos e compadres. As acusações quase sempre irascíveis com que os tratamos só podem ser compreendidas quando nos damos conta do isolamento com que situamos o “político” num campo em que o “poder” — como uma ponte desgastada entre o pessoal e o impessoal — tem a elasticidade das simpatias e conveniências. Do ganhar brutalmente muito dinheiro até o dobrar (ou driblar) legalismos para favorecer os amigos.

Com isso, entramos no terreno da impunidade, mas isso é, como diria o poeta, uma outra história...

Nenhum comentário:

Postar um comentário