Bobbio escreveu que o fascismo “morreu e não há celebração que possa fazê-lo reviver” (a “queda do fascismo”), mas o “laboratório político” italiano ainda lhe reservava surpresas. Em 1994, o megaempresário Silvio Berlusconi torna-se primeiro-ministro da Itália.
Em seus artigos na imprensa, Bobbio era um crítico contumaz do polêmico político. Ele deplorava o fato de que Berlusconi, proprietário de “três grandes máquinas de formação do consenso (emissoras de televisão) tivesse constituído um partido pessoal próprio” e, “com o apoio desse sustento incomum”, se tornado primeiro-ministro (Contra os novos despotismos: escritos sobre o berlusconismo).
Num artigo escrito durante a campanha que antecedeu as eleições de 1994, Bobbio já via em Berlusconi um “fenômeno sem precedentes” e se perguntava: “Já aconteceu algo parecido na Itália ou em qualquer outro país”? Bobbio insinua que não. Mas o “laboratório” italiano não traça fronteiras, e a análise de Bobbio sobre Berlusconi tem pontos que nos transportam, sem escalas, ao Brasil de hoje.
O filósofo italiano reprovava, por exemplo, as anacrônicas declarações de Berlusconi de que sua tarefa era “proteger os valores cristãos ameaçados pelos comunistas ateus”, ou que o principal objetivo de seu partido era não “deixar o país cair nas mãos dos comunistas”. Essa obsessão pelo finado comunismo lembra alguém?
Bobbio reprovava, também, o hábito do ex-primeiro-ministro de “se fazer de vítima de complôs, de conspirações, de traições, ingênuo alvo de inimigos malvados e de pérfidos aliados”. Além disso, “insulta os juízes e tenta deslegitimá-los de todos os modos”.
Bobbio criticava Berlusconi, ainda, pela forma como se dirigia à população. De um lado, já se autodenominou “ungido pelo Senhor”; de outro, ao ser cobrado pelo não cumprimento de suas promessas eleitorais, afirmava que “não o deixaram trabalhar”. Esse horror à responsabilidade lembra alguém?
E não é só Bobbio que, analisando Berlusconi, nos remete a Jair Bolsonaro. Seu compatriota Umberto Eco (1932-2016), num artigo de 2003 (ano em que Berlusconi também foi primeiro-ministro) destacava: “A figura de Berlusconi se presta à sátira, seus adversários às vezes se consolam pensando que ele passou das medidas, e têm certeza (...) que ele corre em direção à própria ruína”. Mas Eco acreditava que Berlusconi estava “colocando em ação, justamente com os gestos mais incompreensíveis, uma estratégia complexa, sagaz e sutil”.
Entre as técnicas de Berlusconi, Eco cita “promessas que, boas, ruins ou neutras, (...) se apresentem aos olhos dos críticos como uma provocação. E deve produzir uma provocação por dia, tanto melhor se inconcebível e inaceitável”. A provocação deve ser tal que “a oposição seja obrigada a aceitá-la e a reagir com energia”. Isso porque “conseguir produzir todos os dias uma reação indignada das oposições (...) permite a Berlusconi mostrar ao próprio eleitorado que ele é vítima de uma perseguição”.
Ainda sobre provocações, a estratégia de Berlusconi seria “lançar a provocação, desmenti-la no dia seguinte (...) e lançar imediatamente uma outra”. Haveria dois objetivos essenciais nessa estratégia, diz Eco. Primeiro, trata-se de um balão de ensaio que, se não suscitar reação enérgica da opinião pública, “significa que até mesmo o mais ultrajante dos caminhos poderia ser, com a devida calma, percorrido”.
O segundo objetivo é o que Eco chamava de efeito bomba. No exemplo dele, “se eu fosse um homem de poder enredado em muitos e obscuros negócios, e ficasse sabendo que dentro de dois dias estouraria nos jornais uma revelação que esclareceria meus malefícios (...), mandaria colocar uma bomba (...) numa praça na saída da missa”. Desse modo, “por pelo menos 15 dias as primeiras páginas dos jornais (...) só teriam espaço para o atentado”. Desviar o foco das atenções é, também, uma especialidade do nosso presidente.
Eco traz sugestões para contrapor-se a essa estratégia, mas elas não cabem neste espaço. Aqui, o objetivo é reportar semelhanças no comportamento dos dois políticos (geralmente identificados ao populismo) e notar que Berlusconi, depois de tantos anos, ainda exerce influência na política italiana.
É incerto se o mesmo ocorrerá com Bolsonaro. O que parece certo é que sua mentalidade seguirá presente na sociedade brasileira (basta notar quão frequentes se tornaram, de uns anos para cá, avaliações elogiosas da infame ditadura militar). Ou seja: se a Itália, como dizia Bobbio, é um laboratório político, o Brasil é o de Frankenstein.
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