segunda-feira, 11 de julho de 2022

O direito e o avesso

A triste realidade histórica é que este país já nasceu enfermo desde que os portugueses aqui desembarcaram, no dealbar do século XVI. Infelizmente, porém, só nos damos conta deste fato quando a moléstia sai, por assim dizer, dos seus parâmetros habituais. É exatamente o que se passa no presente, com o descalabro político, econômico e social dos últimos anos, tornando insatisfeita a grande massa dos pobres e até a classe média. Se assim é, quem sabe surta algum efeito aplicar o método que desde sempre a ciência médica utilizou para enfrentar as moléstias, composto como se sabe de duas grandes etapas: o diagnóstico e a cirurgia, ou o tratamento clínico.

Proponho-me, neste breve ensaio, sugerir apenas um diagnóstico, alvitrando que o tratamento médico seja efetuado por uma equipe mais competente de cientistas sociais.


Uma sociedade dúplice

No conto O espelho, de Machado de Assis, o narrador assevera a seus ouvintes espantados que cada um de nós possui duas almas. Uma exterior, que exibimos aos outros, e pela qual nos julgamos a nós mesmos, de fora para dentro. Outra interior, raramente exposta aos olhares externos, com a qual julgamos o mundo e a nós mesmos, de dentro para fora.

Penso que algo de semelhante ocorre em matéria de ordenações jurídicas nacionais. Em cada país há um direito oficial consagrado, e há também um direito não oficial, encoberto aos olhares do exterior, e que regula os fatos atinentes à vida por assim dizer íntima da nação.

Efetivamente, bem analisadas as coisas, fora dos dogmatismos acadêmicos, é preciso reconhecer que uma Constituição não é apenas, como pensaram os revolucionários norte-americanos e franceses do final do século XVIII, o documento solene que organiza politicamente um país. Por trás dessa forma, ou, se se quiser, do lado do avesso, há outra realidade, igualmente normativa, mas que não goza da chancela oficial. Tal como a politéia das cidades-estados da Grécia clássica, trata-se de algo semelhante a uma Constituição não escrita, mas de incontestável vigência. Ela é formada pelos usos e costumes tradicionais, os valores predominantes na sociedade e o complexo campo dos poderes privados, entrelaçados às competências públicas.

Se lançarmos os olhos para o Brasil, haveremos de reconhecer, sem maior esforço de análise, que as Constituições aqui promulgadas apresentam-se, invariavelmente, quando vistas pela alma exterior de que falava o narrador de O espelho, como indumentárias de gala, exibidas com orgulho aos estrangeiros em comprovação de nosso caráter civilizado. São vestes litúrgicas, envergadas por doutores e magistrados nas cerimônias do culto oficial. Para o dia-a-dia doméstico, contudo, preferimos, como é natural, usar trajes mais simples e cômodos.

Graças a essa duplicidade institucional, correspondente às duas faces do caráter nacional, logramos conviver sem grandes percalços, ao longo de toda a nossa História, com uma sucessão de “lamentáveis mal-entendidos”, segundo a expressão famosa de Sérgio Buarque de Holanda para qualificar as experiências democráticas entre nós. Em todos eles o povo permaneceu ausente, e os conflitos suscitados entre as classes dirigentes resolveram-se, em sua maior parte, por acordo ou conciliação de posições opostas.

A Independência não surgiu de uma revolta do povo brasileiro contra o rei de Portugal, mas de uma rebelião do povo português contra o rei no Brasil. No famoso quadro de Pedro Américo, O Grito do Ipiranga, o artista, sem o saber, simbolizou o nosso povo na figura daquele carreteiro à beira da estrada, pés descalços e torso nu, a contemplar fascinado a cena heroica, como a se perguntar qual o sentido de todo aquele aparato.

Logo após a dissolução da Assembleia Constituinte em 1823, o Imperador declarou-se decidido a outorgar à nação uma Constituição “duplicadamente mais liberal” do que a que estava sendo elaborada. A Carta Constitucional, assim dada ao povo brasileiro de cima para baixo, omitiu por completo a referência, ainda que indireta, à escravidão. Cuidou-se, obviamente, de instituir um liberalismo de casa grande, ao qual, por razões de elementar decência, não podia ter acesso o “vulgo vil sem nome” de que falou Camões.

A revolta militar do Campo de Santana, em 15 de novembro de 1889, que o povo assistiu bestializado, segundo a expressão famosa de Aristides Lobo, não visava a abolir a monarquia, mas simplesmente a destituir o Ministério Ouro Preto. Não estava na mente de nenhum dos líderes intelectuais do movimento, todos positivistas, lutar contra o multissecular costume, já denunciado por Frei Vicente do Salvador no início do século XVII, por força do qual “nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, senão cada qual do bem particular”.

A Revolução de 1930 foi deflagrada com o objetivo de pôr fim à deturpação do sistema representativo, causada pelo coronelismo e o voto de cabresto. Ela desembocou, porém, ao cabo de alguns anos, em uma ditadura com larga aceitação popular.

A transição pacífica do autoritarismo para o regime constitucional, tanto ao final do Estado Novo getulista quanto do vintenário regime militar quarenta anos depois, foi assegurada com a promulgação de leis de anistia aos opositores políticos. Era o direito oficial. Por trás dele, porém, havia o direito subentendido de que essa anistia se aplicava, também, aos agentes públicos e seus cúmplices, responsáveis por torturas, execuções sumárias e desaparecimento de opositores políticos, entre outros inomináveis abusos.

O que se viu, portanto, em todos esses episódios históricos, não foi a sucessão de um regime jurídico por outro, mas o amálgama do novo com o velho, do direito revogado com o direito revogador. Aquele, obrigado a se retirar do proscênio, não desapareceu do teatro jurídico: foi simplesmente relegado aos bastidores, para ressurgir em cena no momento oportuno, como personagem redivivo.

Ao que parece, Janus bifronte, o deus romano da passagem, tem sido o grande protetor de nossas classes dirigentes. Quando o direito oficial não se opõe aos seus interesses, ele é tido e proclamado como o único legítimo e em vigor. Basta, no entanto, surgir uma mínima contradição entre as normas, contidas na Constituição ou nas leis, e o poder que tais classes detêm e exercem efetivamente na sociedade, para que se abram automaticamente as portas de comunicação do direito oficial com o outro ordenamento, até então oculto, que legitima e consagra a dominação tradicional. Em alguns casos, aliás, como será apontado mais abaixo em matéria de resgate de escravos, a par do rígido direito oficial criou-se um direito costumeiro mais flexível e generoso.

Foi certamente por essa razão que o sistema capitalista fixou, tão rapidamente, fundas raízes entre nós. É que uma das características principais do “espírito” do capitalismo, não apontada por Max Weber em seu célebre ensaio,[i] é a sua natureza camaleônica, a habilidade em encobrir os fatos reais com o manto da ideologia. A invocação da liberdade individual serve sempre de justificativa para a submissão de trabalhadores, consumidores e do próprio Estado ao poder dominante dos empresários no mercado. O princípio da isonomia (todos são iguais perante a lei) esconde a sistemática dominação do rico sobre o pobre, do produtor sobre o consumidor, da grande empresa prestadora de serviços sobre o usuário ignorante e imprudente. Certo estava, pois, Napoleão – não o famoso general e imperador francês, mas o ditador suíno de Animal Farm, de George Orwell – quando advertia: “todos os animais são iguais; alguns, porém, são mais iguais que os outros”.

Para descobrir as origens do caráter dual do direito brasileiro, temos, sem dúvida, que remontar ao período da colonização portuguesa nestas terras.

O direito escrito – as Ordenações do Reino, acrescidas das leis, provisões e alvarás posteriores – vinha todo da metrópole; ou seja, tinha o sabor de regras importadas, estranhas ao nosso meio. A tais regras devia-se respeito, mas não necessariamente obediência. Prevaleceu, aqui também, a máxima difundida em toda a América Hispânica: las Ordenanzas del Rey Nuestro Señor se acátan pero no se cúmplen.

Para a construção, ano após ano, desse sistema de autêntico trompe l’oeil, como diriam os franceses – pois o direito oficial é posto artificialmente em relevo, criando a ilusão de corresponder à realidade –, muito contribuíram os altos funcionários enviados de Portugal, os quais, aqui chegados, uniam-se com frequência, pelos laços do compadrio e até do casamento, às famílias dos ricos senhores locais; quando não adquiriam terras e passavam a exercer, eles próprios, a atividade agroexportadora.[ii]

Compreende-se, nessas condições, quão grande era a pressão exercida para dar ao direito de origem metropolitana uma interpretação menos literal e mais adequada à defesa dos interesses econômicos dos colonos aqui instalados. Em carta a D. João IV, datada de 4 de abril de 1654, queixava-se já o Padre Antonio Vieira: “Tudo neste Estado tem destruído a demasiada cobiça dos que governam, e ainda depois de tão acabado não acabam de continuar os meios de mais o consumir. O Maranhão e o Pará é uma Rochela de Portugal, e uma conquista por conquistar, e uma terra onde V. M. é nomeado, mas não obedecido.”[iii]

A partir da Independência, dois exemplos ilustram à perfeição o que acabo de afirmar: a escravidão dos africanos e afrodescendentes, bem como a reação de nossos grupos dirigentes, à ideia de se instaurar uma democracia entre nós.

As duas faces da escravidão

A Constituição de 1824 declarou “desde já abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as demais penas cruéis” (art. 179, XIX).

Em 1830, porém, foi promulgado o Código Criminal, que previu a aplicação da pena de galés, a qual, conforme o disposto em seu art. 44, “sujeitará os réus a andarem com calceta no pé e corrente de ferro, juntos ou separados, e a empregarem-se nos trabalhos públicos da província, onde tiver sido cometido o delito, à disposição do Governo”. Escusa dizer que essa espécie de penalidade, tida por não cruel pelo legislador de 1830, só se aplicava de fato aos escravos.

E havia mais. Apesar da expressa proibição constitucional, os cativos foram, até as vésperas da abolição, mais precisamente até a Lei de 16 de outubro de 1886, marcados com ferro em brasa, e regularmente sujeitos à pena de açoite. O mesmo Código Criminal, em seu art. 60, fixava para os escravos o máximo de 50 (cinquenta) açoites por dia. Mas a disposição legal nunca foi respeitada. Era comum o pobre diabo sofrer até duzentas chibatadas num só dia. A lei supracitada só foi votada na Câmara dos Deputados, porque, pouco antes, dois de quatro escravos condenados a 300 açoites por um tribunal do júri de Paraíba do Sul vieram a falecer.

Tudo isso, sem falar dos castigos mutilantes, como todos os dentes quebrados, dedos decepados ou seios furados.

É curioso verificar que essa dura realidade jamais foi reconhecida pela nossa mal chamada “elite”. Ao escrever em 1866 o seu tratado sobre a escravidão no Brasil, Perdigão Malheiro fez questão de frisar a “índole reconhecidamente compassiva e humanitária dos Brasileiros”, o nosso temperamento “proverbialmente bondoso”.[iv] Gilberto Freyre, de sua parte, com apoio no depoimento de estrangeiros que visitaram nosso país no início do século XIX, sustentou que, nestas paragens, a escravidão foi mais benigna que a praticada nas colônias inglesas.[v]

Apesar de ter sido mantido constantemente em recato, é inegável que o direito não oficial da escravidão jamais deixou de existir. Um bom exemplo, a esse respeito, foi a permanência do tráfico negreiro por longos anos, em situação de gritante ilegalidade.

Um alvará de 26 de janeiro de 1818, baixado pelo rei português ainda no Brasil, em cumprimento a tratado celebrado com a Inglaterra, determinou a proibição do comércio infame sob pena de perdimento dos escravos, os quais “imediatamente ficarão libertos”. Tornado o país independente, firmou-se com a Inglaterra nova convenção, em 1826, pela qual o tráfico que se fizesse depois de três anos da troca de ratificações seria equiparado à pirataria. Durante a Regência, sob pressão dos ingleses, tal proibição foi reiterada pela lei de 7 de novembro de 1831.

Mas todo esse aparato jurídico oficial permaneceu letra morta, pois fora editado unicamente “para inglês ver”. Como lembrou o grande advogado negro Luiz Gama, ele próprio vendido como escravo pelo pai quando tinha apenas 10 anos, “os carregamentos eram desembarcados publicamente, em pontos escolhidos das costas do Brasil, diante das fortalezas, à vista da polícia, sem recato nem mistério; eram os africanos, sem embaraço algum, levados pelas estradas, vendidos nas povoações, nas fazendas, e batizados como escravos pelos reverendos, pelos escrupulosos párocos!…”[vi]

O mesmo Luiz Gama conta um episódio, ocorrido em meados da década de 50 do século XIX, e que ilustra à perfeição a dubiedade largamente aceita do direito brasileiro nessa matéria.

Àquela época, veio a São Paulo um fazendeiro do interior da província, trazendo cartas de recomendação de chefes políticos, em busca de dois escravos fugidos, os quais, por serem boçais, isto é, incapazes de se exprimir no idioma pátrio,[vii] haviam sido apreendidos por um inspetor de quarteirão e declarados livres, em aplicação da Lei Eusébio de Queiroz, de 1850.[viii]

Nada tendo conseguido junto às autoridades locais, o fazendeiro seguiu então para a Corte, e lá entrevistou-se com o Ministro da Justiça, o respeitado Senador e Conselheiro Nabuco de Araújo. Pouco tempo depois, o Presidente da Província recebia um “aviso-confidencial” do Ministro, onde Sua Excelência reconhecia que os negros haviam sido “muito bem apreendidos e declarados livres pelo delegado de polícia, como africanos ilegalmente importados no Império”.

No entanto, prosseguiu o Ministro: “Cumpre, porém, considerar que esse fato, nas atuais circunstâncias do país, é de grande perigo e gravidade; põe em sobressalto os lavradores, pode acarretar o abalo dos seus créditos e vir a ser a causa, pela sua reprodução, de incalculáveis prejuízos e abalo da ordem pública”.

A lei foi estritamente cumprida; há, porém, grandes interesses de ordem superior que não podem ser olvidados e que devem de preferência ser considerados. Se esses pretos desaparecerem do estabelecimento em que se acham, sem o menor prejuízo do bom conceito das autoridades e sem a sua responsabilidade, que mal daí resultará?”[ix] E efetivamente, assim ocorreu: “sem o menor prejuízo do bom conceito das autoridades e sem a sua responsabilidade”, os pobres diabos foram devolvidos ao seu proprietário como reles escravos.

Em percuciente estudo sobre as alforrias no período imperial,[x] Manuela Carneiro da Cunha nos faz penetrar no terreno escorregadio da mais completa ambiguidade. Consolidara-se, em todo o território nacional, o costume de se alforriarem obrigatoriamente os escravos, com o oferecimento, por estes ou por terceiros, do preço convencional do resgate. Nunca houve, porém, o formal reconhecimento por lei desse direito de manumissão forçada do cativo. Em seu tratado sobre a escravidão de 1866, Perdigão Malheiro, ao discutir a constitucionalidade em tese de uma lei que reconhecesse entre nós as alforrias obrigatórias pelo oferecimento ao senhor do valor de resgate do escravo, deixa claro que não tínhamos à época lei alguma a esse respeito.[xi] Foi só com a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, que se admitiu o direito de o escravo ter pecúlio próprio, com o qual poderia resgatar-se.

Para Manuela Carneiro da Cunha, coexistiram na sociedade brasileira oitocentista dois regimes jurídicos: um de um direito escrito e outro de direito não escrito, “lidando com relações particulares de dependência e de poder”. Ambos esses sistemas coexistiam, porque recortavam para si campos de aplicação basicamente distintos: “aos livres pobres, essencialmente, a lei; aos poderosos, seus escravos e seus clientes, o direito costumeiro”. E conclui: “aquela [a lei] é também a face externa, internacional, mas não necessariamente falsa, de um sistema que, domesticamente, é outro”.

Melhor exemplo não poderia ser dado da qualidade tipicamente bovarista de nossas classes dirigentes. À semelhança da trágica personagem de Flaubert, elas procuram sempre fugir de nossa realidade canhestra e atrasada, que nos envergonha, de modo a sublimar na imaginação, para o país todo e cada um de nós em particular, uma identidade e condições ideais de vida, que fingimos possuir, mas que nos são de fato completamente estranhas.

Sob esse aspecto, encarnamos à perfeição o poeta fingidor de Fernando Pessoa: fingimos tão completamente, que chegamos a pensar que existe e é regularmente obedecido o direito ideal que figura em nossa Constituição e em nossos Códigos.

Vejamos, agora, outro caso notável de esquizofrenia social: a noção de democracia.

O “lamentável mal-entendido” da democracia

Quando nos separamos de Portugal, a idéia de soberania popular era considerada anátema para nossas camadas dirigentes.

Em maio de 1811, nas páginas do Correio Braziliense, editado em Londres, Hipólito José da Costa fez questão de lançar um enfático aviso:

“Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis; mas ninguém aborrece mais do que nós, que essas reformas sejam feitas pelo povo; pois conhecemos as más consequências desse modo de reformar; desejamos as reformas, mas feitas pelo governo; e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo”.[xii]

Mais de um século depois, tivemos um eco dessa declaração na advertência que o então Presidente do Estado de Minas Gerais, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, deu a público ao final da República Velha: “façamos a revolução, antes que o povo a faça”!

Na Fala do Trono dirigida aos constituintes de 1823, nosso primeiro imperador referiu-se com desprezo aos inimigos do Brasil, encastelados “nas democráticas cortes portuguesas”.[xiii] Declarou então o monarca esperar que a Constituição a ser elaborada pusesse “barreiras inacessíveis ao despotismo, quer real, quer democrático”.[xiv]

Pouco depois, em 19 de julho do mesmo ano, ao sentir soprar o vento da rebeldia dos “povos”, isto é, dos Municípios, D. Pedro I lançou em proclamação um brado de alerta: “Algumas Câmaras das Províncias do Norte deram instruções aos seus Deputados, em que reina o espírito democrático. Democracia no Brasil! Neste vasto, e grande Império é um absurdo; e não é menor absurdo o pretenderem elas prescrever leis, aos que as devem fazer, cominando-lhes a perda, ou derrogação de poderes, que lhes não tinham dado, nem lhes compete dar”.

É verdade que o movimento que levou à abdicação de Pedro I, em 7 de abril de 1831, foi uma tentativa de conciliação do liberalismo com a democracia. Mas, pouco tempo depois, os líderes liberais arrepiaram carreira e voltaram a pôr as coisas nos seus devidos lugares. A abjuração de Teófilo Ottoni foi, nesse particular, paradigmática. Justificando-se pelas suas veleidades liberal-democráticas do passado, esclareceu que nunca havia almejado “senão democracia pacífica, a democracia da classe média, a democracia da gravata lavada, a democracia que com o mesmo asco repele o despotismo das turbas ou a tirania de um só”.[xv]

Acontece que a partir do término da Guerra do Paraguai a idéia de democracia, ou melhor, de república democrática, rapidamente expurgada de suas conotações subversivas, passou a ser invocada de público, não como regime de soberania popular, mas como justificativa da autonomia política no plano local. Democracia e expressões cognatas, como solidariedade democrática, liberdade democrática, princípios democráticos ou garantias democráticas, aparecem nada menos do que 28 vezes no Manifesto Republicano de 1870. Um dos seus tópicos é intitulado a verdade democrática. Mas, sintomaticamente, nem uma palavra é dita sobre a emancipação dos escravos. É sabido, aliás, que os líderes do partido republicano se opuseram à Lei do Ventre Livre, e só aceitaram a abolição da escravatura em 1887, quando ela já era um fato quase consumado.

Em 27 de junho de 1878, um jovem bacharel, ainda desconhecido no cenário nacional, proferiu na Assembleia Provincial da Bahia um discurso, que poderia, nos dias atuais, ser atribuído a qualquer integrante de um partido conservador. Chamava-se Ruy Barbosa. Afirmou com ênfase que “liberdade e igualdade são diametralmente opostas e andam juntas tão-só nas bocas de demagogos e tiranos”. Para ele, a maior ameaça à liberdade consistiria na “tirania […] exercida pela democracia contra o indivíduo”. Sublinhando a importância da “molécula humana, do indivíduo vigoroso, educado e livre”, afirmou que a igualdade política era sempre relativa, dependente da “desigualdade das condições sociais” e da “desigualdade das aptidões naturais”. A exigência de igualdade para todos, concluiu, nada mais era do que o reflexo da “corrupção advinda do erro socialista”.[xvi]

Estávamos, então, no início do movimento pela reforma do sistema eleitoral, com a abolição das eleições indiretas. O gabinete Sinimbu tentou aprová-la na Câmara dos Deputados e, para tranquilizar a classe dominante dos grandes proprietários rurais, propôs a eliminação do voto dos analfabetos e a elevação do censo, isto é, da renda mínima anual exigida para a inscrição nas listas eleitorais.

Foi então que se levantou o então deputado José Bonifácio, o Moço, professor da Faculdade de Direito de São Paulo e, seguramente, o maior tribuno parlamentar que este país jamais conheceu. Quando subiu à tribuna da Assembleia, na tarde do dia 28 de abril de 1879, a Casa estava à cunha e a sessão teve que ser interrompida várias vezes diante das pressões do público, que pretendia ingressar no recinto e era barrado pelo serviço de ordem.

“Os sustentadores do projeto”, disse ele sob intenso aplauso, “depois de meio século de governo constitucional repudiam os que nos mandaram a esta câmara, aqueles que são os verdadeiros criadores da representação nacional. Por quê? Porque não sabem ler, porque são analfabetos! Realmente a descoberta é de pasmar! Esta soberania de gramáticos é um erro de sintaxe política (prorrompem aplausos e risos no plenário). Quem é o sujeito da oração? (Hilaridade prolongada). Não é o povo? Quem é o verbo? Quem é o paciente? Ah! Descobriram uma nova regra: é não empregar o sujeito. Dividem o povo, fazem-se eleger por uma pequena minoria, e depois bradam com entusiasmo: Eis aqui a representação nacional”![xvii]

Diante do malogro do Gabinete Sinimbu em conseguir ver aprovada a mudança constitucional necessária para abolir as eleições indiretas, o Imperador designou como Primeiro-Ministro o Conselheiro José Antonio Saraiva, dito o Messias de Ipojuca. Este não teve dúvidas: concentrou seus esforços de persuasão no resgate da ideia democrática. Em sessão da legislatura de 1880, declarou: “Gozamos de plena democracia no Brasil. (…) Convivemos com qualquer pessoa; pomos os libertos à nossa mesa e confiamos mais nos libertos dignos de confiança do que em muitos cidadãos brasileiros”.[xviii]

Faltou apenas dizer que, uma vez abolida a escravidão, criaríamos aqui uma sociedade perfeitamente igualitária. O que não demorou muito a ser oficialmente proclamado. Em Mensagem ao Congresso Legislativo de São Paulo, no quadriênio 1912 – 1916, Francisco de Paula Rodrigues Alves, que havia sido Presidente da República de 1902 a 1906, pôde declarar en passant, como se tratasse de verdade evidente por si mesma: “Entre nós, em um regime de franca democracia e completa ausência de classes sociais…”[xix]

Deixávamos então na sombra o fato incômodo de que nas últimas eleições do Império, em 1886, o número de votantes representou menos de 1% da população total do país, e que na eleição do sucessor de Rodrigues Alves à presidência da República essa percentagem mal alcançara 1,4. Afinal, malgrado o ínfimo eleitorado e as consolidadas práticas de fraude, tínhamos eleições. Logo, tínhamos democracia. “Uma democracia à brasileira”, como disse o General que mandou prender o grande advogado Sobral Pinto em 1968. Ao que este retrucou: “General, eu só conheço peru à brasileira”.

Efetivamente, ao procurarem justificar o golpe de Estado de 1964, os chefes militares não hesitaram, no chamado ato institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, em se declararem representantes do povo brasileiro, para exercer em seu nome o poder constituinte.[xx]

A seguir, no ato institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, o Marechal Castello Branco e seus ministros exprobaram a ação de “agitadores de vários matizes e elementos da situação eliminada”, os quais “ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária, precisamente no momento em que esta, atenta aos problemas administrativos, procura colocar o povo na prática e na disciplina do exercício democrático”. “Democracia”, prosseguiram os golpistas, “supõe liberdade, mas não exclui responsabilidade nem importa em licença para contrariar a própria vocação política da Nação”; vocação política esta não explicitada no documento, mas que se supõe correspondente ao regime instituído com o golpe de Estado de março do ano anterior…

Essa retórica de defesa intransigente da democracia para encobrir todos os crimes atinge seu ponto culminante com o infame ato institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que abriu as portas ao terrorismo de Estado: “Considerando que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana etc.”

Se voltarmos agora os olhos para a realidade atual, é doloroso reconhecer a permanência do “lamentável mal-entendido”.

A persistência do equívoco democrático no regime político atual

A Constituição Federal de 1988 abre-se com a declaração solene de que “a República Federativa do Brasil […] é um Estado democrático de Direito”, no qual “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (art. 1º).

Sucede que essa Constituição, como todas as que a precederam, não foi aprovada pelo povo. Os que a redigiram intitularam-se representantes daquele do qual todos os poderes emanam. Mas o representado, em cujo nome a Constituição foi feita, não teve a menor consciência, ao elegê-los, de que o fazia para essa finalidade maior.

Pior: ditos representantes do povo, ao redigirem a Constituição – tal como aconteceu invariavelmente no passado – arrogaram-se o poder exclusivo de modificá-la, sem consulta ao representado. O fato é que, nas primeiras décadas de sua vigência, a Constituição de 1988 foi emendada (ou remendada) em média três vezes por ano. Em nenhuma dessas ocasiões, pensou-se em consultar o povo soberano…

Ora, ao lograrem – sem o menor protesto de quem quer que seja – essa auto-atribuição exclusiva do poder de mudança constitucional, os parlamentares tornaram-se, escusa frisá-lo, os verdadeiros titulares da soberania. Constitucionalizamos, por essa forma, um duplo regime político: o efetivo, de natureza tradicionalmente oligárquica, e o simbólico, de expressão democrática.

Uma análise ainda que superficial de outras disposições da Constituição de 1988 confirma a existência dessa duplicidade de regimes.

O art. 14, por exemplo, declara que a soberania popular será exercida não só pelo sufrágio eleitoral, mas também mediante plebiscitos e referendos e pela iniciativa popular legislativa. No art. 49, inciso XV, porém, a Constituição inclui na competência exclusiva do Congresso Nacional “autorizar referendo e convocar plebiscito”.

De acordo com o entendimento prevalecente, tais atos de autorização e convocação são condições indispensáveis ao início do processo de manifestação da soberania popular. Ou seja, o soberano mandante não pode manifestar sua vontade política, a não ser com licença do mandatário; o que representa, sem dúvida, original criação do espírito jurídico brasileiro!

Tudo isso, sem falar no fato de a representação do povo na Câmara dos Deputados ser feita em parcelas estaduais de enorme desproporcionalidade, e com base num sistema eleitoral vinculado a partidos, hoje totalmente destituídos de identidade programática e de confiança popular. Sem falar, tampouco, no absurdo de se dar ao Senado poder político maior que o da Câmara, quando ele não representa a unidade do povo soberano, mas a divisão do Estado brasileiro em unidades consideradas formalmente iguais, malgrado sua enorme disparidade geoeconômica.

Diante disso, haveremos de nos admirar se o Congresso Nacional funciona como um clube fechado, de costas para o povo, que o ignora e despreza, pelo menos aí soberanamente? Será motivo de surpresa verificar que esse alheamento dos representantes políticos consolidou em suas consciências a convicção de que a eles não se aplicam as sanções legais de prevaricação, corrupção e improbidade administrativa?

Objetar-se-á a essa visão pouco favorável que acabo de apresentar de nossa vida política que a Constituição de 1988 realizou um grande avanço em matéria de proteção de direitos humanos. Indubitavelmente, seria tolo e injusto negar esse progresso ético no nível do direito escrito. Mas teria ele, porventura, eliminado a tradicional duplicidade de regimes jurídicos?

Consideremos, por exemplo, a propriedade privada, declarada pela Constituição Cidadã não só como direito fundamental, mas como princípio básico da ordem econômica (artigos 5º, XXII e 170, II). Ora, conforme notícia ultimamente divulgada, 33 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar, ou seja, não tem garantia alguma de não passar fome.

Como superar essa antinomia radical entre o direito oficial e a realidade vivida em nosso país há séculos?

A substituição de um sistema jurídico por outro não é simples questão de mudança normativa. As normas jurídicas só têm vigência efetiva, isto é, só adquirem força ou vigor social (de acordo com o sentido do étimo latino vigeo, -ere), quando impostas por um poder legitimamente constituído e mantido; o que implica a sua efetiva aceitação pelo povo.

Tudo gira, portanto, em torno da titularidade da soberania. É possível substituir, em nosso país, a minoria tradicionalmente no comando do Estado, pelo povo em seu conjunto, de modo a fazer com que o poder político se exerça em função do bem comum (res publica) e não de interesses particulares?

A resposta a essa pergunta deve partir de uma análise do fenômeno social do poder. Como Max Weber teve ocasião de mostrar, ele não se reduz à força bruta, mas compreende sempre a obediência voluntária dos que a ele se submetem.[xxi] Essa obediência, como a História demonstra de sobejo, assenta-se em um juízo de legitimidade, ou seja, de adequação da relação de poder com o sentimento ético coletivo. Quando a consciência da irremediável injustiça do sistema de poder instalado torna-se majoritária na sociedade, essa organização de poder já está com os seus dias contados.

É este, portanto, o programa de ação a ser assumido com urgência e prioritariamente por nós outros, intelectuais: denunciar sem tréguas a ilegitimidade absoluta da organização política brasileira, à luz dos grandes princípios éticos.

Conclusão

Na oração fúnebre que proferiu em homenagem à memória dos seus compatriotas mortos no primeiro ano da Guerra do Peloponeso, Péricles fez o elogio da democracia ateniense. Afirmou, entre outras coisas, que em Atenas os que participavam do governo da cidade podiam ocupar-se também de seus afazeres particulares, e aqueles que se dedicavam a atividades profissionais absorventes mantinham-se sempre a par dos negócios públicos. E concluiu: “Somos, com efeito, os únicos a pensar que um homem alheio à política merece ser considerado, não um cidadão pacífico e ordeiro, mas um cidadão inútil”.[xxii]

Ouso dizer que o juízo de Péricles necessita, hoje, ser ampliado. Nos dias atuais, todo aquele que se mantém afastado da política para cuidar de seus interesses particulares representa um verdadeiro perigo público. Pois é justamente sobre a indiferença da maioria em relação ao bem comum do povo, no plano nacional, ou do conjunto dos povos, no plano mundial, que se constrói o moderno regime da servidão voluntária.
Fábio Konder Comparato

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