Tal desvario é levado a sério por muitas pessoas lúcidas, e antes isso, pois, como sabemos, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Comparar o Brasil de hoje com a Alemanha da primeira metade do século passado não faz muito sentido, mas vale a pena registrar que a revista Foreign Affairs, numa recente edição retrospectiva, mostrou que vários jornalistas de primeira grandeza ainda se recusavam a crer que Hitler fosse mesmo levar suas alucinações à prática quando seu regime totalitário já estava praticamente implantado.
No final de 1944, cerca de 100 mil opositores do nacional-socialismo, entre os quais comunistas, social-democratas e liberais, além de judeus e homossexuais, começavam a ser amontoados em campos de concentração. A pseudociência da “eugenia” começava a ser posta em prática mediante assassinatos e castração de indivíduos pertencentes a “raças inferiores”, como os ciganos. Contudo, em que pese aquele monstruoso precedente, não creio que Bolsonaro ponha em prática suas elucubrações golpistas, ou que permaneça sequer um mês no poder, caso o faça.
Embora mais vitriólico que a média dos populistas, ele é isto: um simples populista. Como todos dessa categoria, ele ostenta uma mescla de traços contraditórios. De um lado, um certo senso de realidade, que lhe permite espertamente atingir posições de poder; do outro, um apego a mitos, blefes e bravatas, que cedo ou tarde leva seus anseios à bancarrota. O que não ostentam, porque dele carecem, é ânimo para governar com seriedade. Todos nos lembramos de Jânio Quadros. Eleito presidente em 1960, ele renunciou oito meses depois acreditando no mito por ele mesmo criado de que “forças ocultas” o estariam impedindo de governar. Imaginou que o povo o carregaria nos ombros de volta ao palácio. Ficou a ver navios. Bolsonaro está cumprindo um roteiro semelhante. Se perder, como é provável, vai esgrimir a asnice da fraude eleitoral, sua versão das “forças ocultas” de Jânio Quadros.
O que não podemos é subestimar o estrago que políticos desse tipo podem causar ao País. Embora pessoalmente eu não creia que Bolsonaro vá muito longe, ou que consiga se manter na Presidência se de fato recorrer ao golpe, não podemos descartar a possibilidade de suas manias arrastarem o País para um buraco. Daí a conveniência de ponderarmos algumas das forças em tese capazes de protagonizar ações relevantes, de apoio ou resistência ao golpe anunciado. Refiro-me, em especial, (1) aos partidos políticos, (2) ao Congresso Nacional e (3) à opinião pública, incluindo nesta última a imprensa, instituições da chamada “sociedade civil” e, no limite, manifestações de massa.
Os partidos políticos podem ser descartados, pela singela razão de que já não os temos. Sabemos todos que nossa estrutura partidária praticamente se liquefez na eleição de 2018. Naquele ano, 24 siglas conseguiram acesso à Câmara federal, a maior delas detendo cerca de 15% das cadeiras – cifras suficientes para assegurarmos por larga margem o título de campeão mundial da fragmentação partidária, que, aliás, nos pertence há muito tempo. Mas a fragmentação é apenas uma parte da história. Ferreamente controladas por oligarquias, tais organizações não se renovam, não desenvolvem perfis programáticos e, não por acaso, carecem por completo de confiabilidade.
Precisamente porque nossos partidos são o que são, o Congresso é um desconexo aglomerado de especialistas em trocas clientelistas de apoio por cargos no Executivo. Trocam qualquer coisa por qualquer coisa, como vimos poucas semanas atrás, quando o Senado, quase por unanimidade – ficando o senador José Serra como uma solitária exceção –, atropelou as mais comezinhas regras do jogo eleitoral a fim de turbinar com R$ 41 bilhões a campanha do sr. Bolsonaro. Quem quiser mapear a atual anatomia do Legislativo, forçosamente terá de começar pela entidade que o domina, o Centrão. Se Jair Bolsonaro tivesse êxito em seu propalado intento de golpear o regime democrático, ele faria exatamente o que já vem fazendo, ou seja, delegará a essa pitorescamente denominada figura a tarefa de acomodar seus acólitos na máquina do Estado e de mandar a fatura aos contribuintes.
Contudo, errará por larga margem quem supuser que Bolsonaro ou qualquer outro interessado em solapar as instituições atingirá seu objetivo nadando de braçadas. Salta aos olhos que a sociedade está despertando do estado abúlico em que afundou desde os tempos da sra. Dilma Rousseff, senão antes. Entidades importantes como a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e a Academia Paulista de Letras já começaram a soar o alerta. Muitas outras logo seguirão pelo mesmo caminho. Ou seja, podemos ser arrastados para um desastre, mas não por desatenção ou por algum grave erro de avaliação, como aconteceu na Alemanha.
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