Uma das experiências mais surreais da minha vida foi entrevistar, em 2014, Will Cathcart, na sede do Facebook, em Silicon Valley. Hoje, Will é o líder do WhatsApp, mas na altura era vice-presidente responsável pelos produtos da rede social de Mark Zuckerberg, nomeadamente pela equipa de centenas de engenheiros que todos os dias desenhavam e afinavam o secreto algoritmo EdgeRank. À minha frente, entre paredes grafitadas com a palavra “hack” e máquinas de distribuição de gomas e chocolates, estava um rapaz simpático, que beberricava uma bebida e atirava piadas enquanto me explicava levemente o incomensurável poder que tinha nas mãos: definir o que viam milhares de milhões de pessoas em todo o mundo nas suas cronologias quando abriam a aplicação.
Ainda estávamos longe do escândalo do Cambridge Analytica, mas fiquei aterrada com a ideia de que, com um microtoque do seu dedo aqui ou acolá num código, toda esta gente (por comparação, a maior nação do planeta) podia passar a ter uma experiência distinta – e uma noção da realidade e do mundo completamente diferente. Estava pois, à minha frente, a nova divindade do século XXI: alguém que podia, com relativa facilidade, tanto catapultar marcas como mudar humores das pessoas e amplificar estados de alma e tendências sociais e políticas. Dono e senhor de um bonito espaço de ligação entre pessoas, mas também de uma potencialmente perigosa máquina de manipulação massiva.
Lembro-me desta conversa amiúde, sempre que se fala de redes sociais, dos seus líderes ou proprietários, e se discute a necessidade de regulamentação para que a internet não seja um faroeste onde vale tudo. Voltei a lembrar-me dela quando veio a público o interesse de Elon Musk, apontado como o homem mais rico do mundo, pelo Twitter. Musk, um empresário de sucesso, o novo herói dos empreendedores e liberais, ligado a marcas como a Paypal, a Tesla e a SpaceX, tem tanto de genial e visionário como de louco, caprichoso e irrefletido. Num dia, dispõe-se a vender ações para acabar com a fome no mundo; noutros, quer atirar carros para o Espaço, implantar chips nos cérebros humanos ou atingir Marte com armas termonucleares para o poder colonizar.
É este o homem que vai gastar 44 mil milhões de dólares (para referência, mais de metade do que Portugal recebeu de empréstimo da Troika) numa empresa que está longe de ser um bom negócio, para pôr ordem na casa e, como alega, “acabar com a censura” na plataforma conhecida por ter uma política de moderação de conteúdos mais apertada (e, na minha opinião, não isenta de críticas) – e que, por exemplo, fechou a conta de Donald Trump. Uma compra 38% acima do valor que Wall Street lhe atribuía e “hands on” na política de gestão da empresa e nos algoritmos que são a sua essência. Tudo isto faz temer mudanças significativas na plataforma que, não sendo a maior, é uma das mais influentes. Usará este poder com consciência ou como brinquedo? Eis a legítima questão.
Na mesma semana, por feliz coincidência, depois de uma longa e dura ronda negocial, o Conselho e o Parlamento Europeu chegaram a acordo sobre a “Lei de Serviços Digitais”, que, completando a “Lei dos Mercados Digitais”, vem estabelecer novos padrões para um espaço digital mais seguro e aberto para os utilizadores, e também mais responsabilidade para as plataformas em relação aos conteúdos, bens e serviços ilegais que albergam e amplificam.
A transparência dos algoritmos, por exemplo, é uma das medidas contempladas, de forma a evitar manipulação e padrões obscuros. Quanto a mim, um passo essencial. Outro objetivo é proteger melhor online os direitos fundamentais, com garantias mais fortes de que as notificações são processadas de modo não arbitrário e não discriminatório e com respeito pelos valores fundamentais da liberdade de expressão e proteção de dados. Há ainda normas sobre proteção das crianças, ciberviolência, discurso de ódio, publicidade online ou desinformação, e multas que efetivamente fazem doer – podem ir até 6% do volume de negócios global. Estas novas regras só começarão a ser aplicadas 15 meses após a sua publicação, mas está à vista que este é um caminho que tem de ser feito, e onde a Europa é – e bem – pioneira.
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