Foi imbuído deste “conservadorismo” que esta semana Putin proferiu o seu mais imperialista, colonialista e radical discurso de que há memória, encenado para consumo tanto externo como interno, ao anunciar o reconhecimento da independência das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk, e dizer que a Ucrânia é uma “colónia de fantoches”, mas que foi inteiramente criada pela Rússia comunista de Lenin. Quase que se ouvia soar em fundo o God Save the Tsar!, o hino nacional do império russo. “Querem descomunização? Está bem. Estamos prontos para vos mostrar o que significa a verdadeira descomunização”, atirou em tom ameaçador.
Há muito que está claro que Putin não acredita na ordem mundial pós-Guerra Fria assente em pactos de não agressão e em princípios democráticos. Sobre a Ucrânia, aliás, Putin já tinha escrito um ensaio em julho em que falava da “união histórica” entre os dois países e deixava claro que via os ucranianos e os russos como “um povo – um único povo”, ligado por uma “unidade espiritual” que determina que “a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia”.
Desde pelo menos 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e se procurou estabelecer nos Acordos de Minsk uma solução para o conflito na região do Donbass, que esta nova desordem mundial era evidente para quem a quisesse ver. Com a demissão de Barack Obama e de David Cameron do tema, é claro hoje que o “formato da Normandia” estabelecido foi um rotundo falhanço de François Hollande e de Angela Merkel, mais interessados em não hostilizar nem fechar a torneira do gás do que em travar as ambições russas. Putin ficou à solta para continuar em busca do império perdido, aliando-se à China na construção do bloco económico oriental contra o bloco ocidental da Europa e dos EUA.
Com uma situação interna pouco entusiasmante, o mundo a sair de uma pandemia e novos líderes mundiais que considera fracos – Scholz na chancelaria alemã, Biden na Casa Branca e o ex-humorista Zelenski como Presidente da Ucrânia –, Putin sentiu que este era o tempo certo para atacar. Não há inocentes nesta matéria (e os EUA e a NATO claramente não são), mas, não tenhamos dúvidas, é de um ataque que se trata, que tem como pano de fundo a maior deslocação militar desde a Guerra Fria.
Com que objetivo final, não sabemos. Ficar-se-á Putin apenas pelos territórios dominados separatistas ou inclui toda a região de Donbass? Avança por outros estados da Ucrânia? Tudo em Putin é imprevisível e potencialmente irremediável, o seu jogo é a roleta-russa. Será preciso nervos de aço para acompanhar o desenrolar da situação que pode ficar-se “apenas” por sanções internacionais, descambar num conflito armado sério na Europa ou escalar para uma guerra mundial. Isto envolvendo um país carregado de arsenal nuclear – que fez questão de exibir nos últimos dias.
Com este pano de fundo, é sintomática mas não surpreendente a posição do PCP. Os comunistas portugueses, que claramente ainda não perceberam que a Rússia de comunista já não tem nada e se transformou num regime autocrata com laivos de fascismo, vieram exigir “o fim da escalada de confrontação promovida pelos EUA e a Nato contra a Rússia”, “uma estratégia agressiva de imperialismo concretizada após o golpe de Estado de 2014 que foi promovido pelos EUA, a NATO e a UE”. Justifica-se, portanto, para o PCP o imperialismo do bem (o russo) contra o imperialismo dos maus (os americanos e seus aliados)…
É muito curioso perceber como os extremos se tocam quando o tema é um herdeiro da derrocada da URSS que se transformou em autocrata nacionalista e conservador. A par dos comunistas e até bloquistas lusos, também a extrema-direita de Le Pen, Éric Zemmour ou Bolsonaro (o Chega não foi ainda tão longe como os “amigos”) relativiza e enquadra Putin. Há coisas que dificilmente mudam, e a tendência para o facciosismo é infelizmente uma delas.
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