Falta orçamento, falta execução, falta vontade política. E faltam alimentos. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) possuía, conforme dados abertos de outubro, 34,7 mil toneladas de milho, 21,5 mil toneladas de arroz, uma tonelada de café e estoques zerados de açúcar, algodão, feijão e farinha de mandioca. Amendoim, castanha e fécula de mandioca também estão, há anos, no zero. Em um país agrícola, que se vangloria das exportações recordes de soja, os estoques públicos deste grão também são nulos, desde 2013.
A FAO (sigla em inglês para Food and Agriculture Organization), braço de alimentação e agricultura da ONU, recomenda aos países que armazenem estoques equivalentes a três meses de consumo da população, com a finalidade de garantir a segurança alimentar nacional. Alguns pesquisadores defendem que os países devem ter, pelo menos, seis meses de estoques. Além disso, a lei 8.171, de 1991, que dispõe sobre a política agrícola do país, determina que é papel do Estado manter estoques bem cuidados para abastecimento e calibragem de preços que devem ser adquiridos, preferencialmente, de pequenos e médios produtores.
Com os números atuais, no caso de uma emergência como uma enchente ou tornado, nossos estoques de arroz seriam suficientes para alimentar a população por menos de um dia. O estoque de milho, por um dia e meio. No “celeiro do mundo” – mas onde 43,4 milhões de pessoas não têm alimentos em quantidade suficiente, conforme dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) – estoques zerados de alimentos me parece de uma incoerência psicótica. O dramático derretimento dos estoques públicos, uma tendência iniciada ainda em 2013, acentuou-se no período Temer e chega ao ápice do desmonte no governo atual. Em 2019, a Conab colocou à venda 27 das atuais 92 unidades armazenadoras – em 1991, ano do início das suas atividades, a estatal tinha 349 armazéns que incluíam galpões, unidades de processamento e postos de comercialização. Guilherme Bastos, presidente da companhia vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), afirmou, na luz do dia, em entrevista à imprensa no ano passado, que o governo “tem que estar fora do estoque regulador”.
“Claramente, o que vemos é um posicionamento de política agrícola ultraliberal que entrega a regulação do mercado de alimentos de bandeja à iniciativa privada. Os interesses econômicos estão colocados acima do interesse público. Ficamos com o ônus ambiental de devastar biomas para cultivar grãos para exportação in natura; é o velho Brasil-Colônia presente ainda na atualidade. E temos, hoje, um Estado que não cumpre sua função social de garantir os direitos básicos da população”, critica Silvio Porto, ex-diretor de Política Agrícola da Conab por 11 anos e professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).
O economista Allexandro Mori Coelho, professor da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP), defende que a formação dos estoques públicos é importante como mecanismo de estabilização de preços, proteção dos pequenos agricultores e da população de baixa renda. “O Brasil tem uma população muito grande e é muito desigual. Então, os estoques são uma forma de garantir a segurança dos grupos vulneráveis, que na hora do aperto não tem para onde correr”, afirma.
Enquanto manter estoques para fins de segurança alimentar parece consenso, sobretudo em tempos de pandemia, a discussão sobre composição de estoques para regular preços gera controvérsias. A economista Juliana Inhasz acredita que para a política de estoques dar certo é preciso que o país esteja com a casa arrumada – política e economicamente. “Se o país está com a economia em ordem, caminhando bem no âmbito fiscal, tem um ambiente institucional forte e uma agenda bem definida de apoio à agricultura de pequena e média escala, e comprometimento firme com a segurança alimentar, então, formar estoques pode ser bom para o país” declara, “Mas de nada adianta gastar dinheiro com a armazenagem, que sai caro, com as contas bagunçadas. Eu questiono se vale a pena investir nesta política no Brasil…”, opina.
O argumento central dos economistas contrários aos estoques é o custo decorrente das atividades de armazenagem. Controle de temperatura e umidade dos silos (alguns comportam mais de 30 mil toneladas de cereais), fretes, seguros em geral, estiva, pesagem, capatazia e braçagem saem caro aos cofres públicos.
Já economistas a favor dos estoques insistem em um ponto-chave: o governo precisa ser forte e ter capacidade técnica o suficiente para executar uma política agrícola coerente com a realidade social do país, que não abandone os pequenos agricultores ao sabor dos ventos do mercado. Para eles, um governo forte e justo seria capaz de, ao mesmo tempo garantir a segurança alimentar dos cidadãos, preços acessíveis nos supermercados e a proteção do produtor rural, navegar bem entre os contratempos do comércio internacional, tudo isso sem desrespeitar as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e os acordos bilaterais que mantém. “O governo tem que dar a regra do jogo. E precisamos de um governo que assegure o bem-estar da população, tarefa crucial em países em desenvolvimento. Veja que uma adversidade climática com nossos estoques zerados pode representar um perigo imenso!”, alerta Claudemir Galvani, professor de economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Em tempos de mudanças climáticas afetando a produtividade agrícola em várias partes do mundo, e de forte inflação global de alimentos, o debate sobre estoques de alimentos precisa estar mais presente. E o assunto merece análise aprofundada, sem pressa, devido à complexidade das dinâmicas através das quais a economia agrícola opera em um mundo globalizado. A pressa pode ficar apenas em detectar quem são os agentes penalizados pelo desmonte dos estoques.
A meu ver, me parecem ser, naturalmente, as duas pontas que a Política de Garantia dos Preços Mínimos (PGPM), do Ministério da Agricultura, a razão de ser da Conab, pretende proteger. De um lado, a combalida agricultura familiar, dependendo das migalhas que lhe sobram no orçamento federal e de medidas provisórias que autorizem a compra urgente do grão que falta. Do outro lado, sofre o consumidor de alimentos, deixado à mercê da volatilidade dos preços nas gôndolas, determinado por um mercado violento. A classe média reclama, mas ainda pode comer. A classe pobre agoniza com a insegurança alimentar. E o Brasil, com seus armazéns vazios, segue firme novamente no mapa tenebroso da fome.
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