No entanto, existem questões que tentam driblar esse cuidado, essa preservação da infância: o racismo é uma delas.
Na última semana, um livro infantil causou indignação. A obra em questão se chama "Abecê da Liberdade: a história de Luiz Gama, o menino que quebrou correntes com palavras". Uma iniciativa que poderia ser comemorada, já que se propunha a narrar para o público infantil a vida de um dos maiores abolicionistas do país; um homem que, sozinho, libertou mais de 300 pessoas ilegalmente escravizadas.
Mas no meio do caminho, ou melhor dito, no meio do livro, havia o racismo.
Uma das passagens narra a viagem de crianças africanas escravizadas dentro de um navio negreiro utilizado no tráfico interprovincial do Brasil. Esse tráfico foi responsável pela manutenção da escravidão brasileira, num momento em que boa parte dos africanos escravizados no país estavam nessa condição de forma ilegal – já que, em 1831, o tráfico transatlântico havia sido formalmente abolido no país.
Johann Moritz Rugendas |
É importante dizer que, assim como o tráfico transatlântico, que escravizou mais de 12 milhões de africanos, o tráfico interprovincial foi responsável pela separação de inúmeras famílias de escravizados. Um medo que atravessava boa parte da vida dos homens, mulheres e crianças que trabalhavam nas províncias do Norte e Nordeste do Império do Brasil.
Pois bem, para os autores e editores de Abecê da Liberdade, a história foi diferente. De acordo com o livro, a viagem pelo mar teria sido tranquila, uma tranquilidade que permitiu que as crianças escravizadas pudessem brincar de ciranda, pega-pega e escravos de Jó. Uma "licença poética" pérfida e racista, que reduziu uma das dimensões mais violentas da escravidão a uma viagem na qual "o navio não balançou muito".
Para quem conhece pouco a história do tráfico interno no Brasil, seria mais ou menos como explicar o que foi um campo de concentração nazista, com a imagem de crianças judias brincando de amarelinha, dizendo que a estada no campo de concentração teria sido igualmente tranquila.
No mundo real, a escravização de milhares de crianças africanas representou a perda do lar, da família, da liberdade; o fim da infância. Muitas crianças foram apartadas de suas mães, pais e irmãos justamente nas travessias – tanto do Atlântico, como dentro do Brasil. Apresentar essa experiência por meio de uma ciranda nada mais é do que racismo.
O livro foi escrito por dois autores brancos, e teve sua primeira publicação em 2015, pelo selo Alfaguara Infanti, da editora Objetiva. Recentemente, a Objetiva foi comprada pela Companhia das Letras, e a obra foi reimpressa em 2020 sem que – pasmem! – houvesse uma releitura interna, conforme nota publicada pelo próprio grupo editorial.
Após as críticas, a editora fez uma nota pública e retirou o livro do catálogo, dizendo ainda que seria recolhido das livrarias (embora ainda seja bem fácil encontrar exemplares no mercado). Uma atitude que em nada diminui o erro da editora – já que milhares de crianças leram o livro –, mas que de alguma forma o reconhece.
Esse episódio poderia ser uma oportunidade para pensarmos sobre como o racismo continua entranhado no Brasil, e como a luta antirracista é um exercício constante. Uma oportunidade para autores e editores brancos admitirem que, sim, o racismo ordena suas vidas, e que para mudar esse cenário é preciso reconhecer o privilégio de que eles usufruem por serem pessoas brancas num mundo estruturado pelo racismo. Mas não foi o que ocorreu.
Um dos autores, José Roberto Torero, incomodado com as críticas recebidas, publicou sua indignação num jornal literário. No texto, ele compara a dificuldade de escrever sobre determinados temas (como a escravidão) à censura vivida nos tempos da ditadura. Segundo ele, estaríamos vivendo um momento de patrulhas ideológicas, no qual autores não têm liberdade para escreverem livros que possam seduzir seus leitores, cativá-los.
Ainda que a comparação com os tempos da ditadura militar me faça questionar se o autor – um homem maduro – tenha a dimensão do que foram os anos de chumbo no Brasil, gostaria de responder às questões que ele colocou.
É isso mesmo, José Torero. Estamos vivendo num país em que se torna cada vez mais difícil cativar nossos leitores. Sabe por quê? Porque graças a uma luta histórica dos movimentos negros, as histórias racistas estão sendo reveladas, expostas e criticadas. Uma ação que questiona, inclusive, os cânones literários, como a obra infantil do autoproclamado racista Monteiro Lobato. Você e demais autores ainda têm liberdade e mercado editorial para escrever e publicar o que lhes vier à cabeça, normalizando seu racismo com histórias que não têm nenhum tipo de comprometimento histórico, nenhuma empatia por um mundo realmente equânime. Mas não esperem louros por criar seu "Abecê do racismo".
O racismo não está apenas na segregação explícita, nas ações policiais violentas contra a população negra, na diferença salarial. O racismo atravessa nosso cotidiano, sendo ensinado para nossas crianças, brancas e negras, de maneira perversa, excludente e naturalizada. Nas escolhas dos temas que serão contados, na forma como esses mesmos temas serão contados, na determinação de quem contará as histórias. Nada é mais eficaz para a lógica do racismo do que uma bela história infantil racista.
Todavia, é importante dizer que outras histórias estão sendo contadas. Histórias feitas por historiadores, literatos e editores, muitos deles negros e negras, que têm o compromisso real e inquestionável com a luta antirracista. Histórias que valem a pena, e que podem acalentar crianças e gente grande de um país que ainda é para poucos.
Ynaê Lopes dos Santos, autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017)
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