terça-feira, 20 de julho de 2021

O circo e a Justiça

Sempre que surge um novo processo judicial, habituamo-nos a ouvir e a ler que chegou o tempo da Justiça e que, portanto, todos os outros tempos – o da política, o da economia e até o dos interesses nem sempre confessos – devem ser congelados. O silêncio, costuma dizer-se nesses momentos, é crucial para deixar a Justiça funcionar. No entanto, é capaz de já ter chegado a altura de aceitar que a Justiça não tem um só tempo. Por aquilo a que temos assistido, com alguma frequência, será melhor passarmos a considerar que a Justiça em Portugal tem dois tempos: primeiro o do circo e só depois o da Justiça.


O tempo do circo é aquele em que nos tentam passar a ideia de que a Justiça é rápida, eficaz e implacável. É aquele em que acordamos a saber que um conjunto de buscas milimetricamente organizadas conseguiu desmantelar uma cadeia de movimentos suspeitos e que, por isso, a detenção de uns quantos figurões é, naturalmente, o desfecho normal desse processo. É o momento em que o cidadão comum sente que a Justiça está, de facto, a cumprir o seu papel e a ir atrás dos poderosos – aqueles que pareciam viver em clima de impunidade, protegidos por forças ocultas. Essa perceção é alicerçada, quase sempre, em pormenores que se vão libertando da investigação criminal: esquemas “ardilosos”, conversas em código, relações de causa-efeito que ajudam a construir uma narrativa que faz todo o sentido e que, pelos factos expostos, merece ser punida. Nos casos com figuras mais mediáticas, tudo isso é acompanhado por detenções para interrogatório através de justificações muito duvidosas, mas que ajudam ao circo: permitem, por exemplo, que os detidos sejam depois obrigados a deslocarem-se da esquadra ao tribunal, com escolta policial e a cruzar a cidade, ignorando as regras de trânsito, numa emergência despropositada, mas que faz o gáudio dos diretos televisivos – em especial quando já não há o autocarro da Seleção para acompanhar da mesma forma.

Depois temos, então, o tempo da Justiça. Aquele em que já não são as narrativas que contam, mas apenas as provas recolhidas durante as investigações, as buscas e os interrogatórios. E as conclusões do tempo da Justiça nem sempre são coincidentes com as do tempo do circo. No caso dos Vistos Gold, por exemplo, as provas, na era do circo, eram “arrasadoras” acerca do “lamaçal” existente no SEF – de acordo com o que se lia no texto da acusação. Depois, o ex-ministro Miguel Macedo foi absolvido pelo tribunal. Algo semelhante ocorreu no caso Tancos: há poucos dias, em tribunal, o próprio Ministério Púbico pediu a absolvição do também ex-ministro Azeredo Lopes, por não ter, afinal, provas concludentes para o acusar.

O tempo do circo tem sido, isso sim, terreno fértil para lançar acusações sobre o “regime”, alegadamente podre, em que vivemos. A narrativa não é despropositada, convenhamos – mas raramente tem sido sustentada em provas. Deixemos, portanto, o circo e concentremo-nos na Justiça – e no seu tempo.

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