segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Os inimigos imaginários do general Villas Bôas

Tudo fica fácil quando existe um inimigo a combater. Ao inimigo, podemos atribuir as consequências indesejadas de nossos atos ou erros. Inimigos podem ser o comunismo, o imperialismo, a direita, a esquerda, não importa. Quando os inimigos reais somem, o jeito é recorrer aos imaginários. O general Eduardo Villas Bôas pertence à geração dos militares que, formados na Guerra Fria, viram o fantasma do comunismo se tornar irrelevante. Seu pai, partidário de Castelo Branco desde os anos 1950, apoiou o golpe de 1964 quando major em Santa Maria. O filho esperava (e temia) ser convocado para a luta armada quando cadete nas Agulhas Negras. Acabou alçado ao comando do Exército no governo de uma ex-terrorista que implantou a Comissão da Verdade (origem das desavenças que desaguaram no apoio dos militares a Jair Bolsonaro).

Talvez a ambivalência de sua geração explique as dificuldades de Villas Bôas para lidar com as contradições do Exército na história recente do Brasil.


O depoimento que prestou ao pesquisador Celso Castro para o oportuno "General Villas Bôas: conversa com o comandante", chamou a atenção pela história do tuíte com uma ameaça velada ao Supremo Tribunal Federal (STF) às vésperas do julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula em 2018. Villas Bôas revela ter contado com a anuência da cúpula do Exército. Diz que foi apenas um “alerta”. Claro que todo alerta vindo de quem veio funciona como ameaça. A mera manifestação do chefe do Exército é um ato político, como ele próprio reconhece ao dizer ter tangenciado o “limite da responsabilidade institucional”. Villas Bôas, é preciso enfatizar, garante que o Exército nada faria se Lula tivesse sido libertado, assim como nada faria se o impeachment de Dilma tivesse sido derrotado ou se Haddad tivesse sido eleito em vez Bolsonaro. “Os militares de hoje são essencialmente devotados a seus deveres profissionais, profundamente disciplinados e democratas”, afirma. “Num país com a complexidade do nosso, qualquer aventura antidemocracia se torna inviável.” Nesse ponto, ele pode ter razão.

Não impede que esteja errado em tantos outros. Há equívocos factuais, como a narrativa sobre a sucessão depois da morte de Tancredo (como esclareceu o jornalista Elio Gaspari) ou falar em “pogroms de Stálin” para definir os efeitos da demarcação de terras indígenas (Stálin é considerado responsável por tragédias que mataram milhões, mas não por pogroms). Há equívocos mais graves, como a visão da Amazônia ameaçada pelo “imperialismo”, predominante entre os militares e responsável não apenas pela exploração predatória, mas pela persistência de uma economia até hoje dependente de subsídios. Ou a patética defesa do ministro Ricardo Salles, em cuja gestão a destruição da floresta quase dobrou. Ou o machismo, ao falar em mulheres como “mestras na arte de estabelecer novos relacionamentos, de remontar e de fazer funcionar os equipamentos domésticos, de gerenciar a economia da casa”. Ou, entre tantas gafes, os elogios à “criatividade” do general Eduardo Pazuello, aquele que anos depois virou alvo de investigação no STF ligada às mortes na pandemia.

O inimigo imaginário de Villas Bôas hoje em dia não é mais o comunismo, mas um certo “politicamente correto”. Não o policiamento do discurso, mas aparentemente a defesa dos direitos de minorias. “O politicamente correto adquiriu um caráter de ideologia. Transformou-se em ferramenta de ação do moderno imperialismo”, afirma. “Quanto maior a ênfase nas teorias de gênero, maior a homofobia; quanto mais igualdade de gêneros, mais cresce o feminicídio; quanto mais se combate a discriminação racial, mais ela se intensifica; quanto maior o ambientalismo, mais se agride o meio ambiente; e, quanto mais forte o indigenismo, piores se tornam as condições de vida de nossos índios.” É difícil encontrar algum fundamento para justificar tudo isso, mas uma conclusão resulta inequívoca do livro: quanto mais os militares se aproximam da política, pior para a democracia. Quanto mais se afastam, melhor para o Brasil.

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