O vírus matou a legitimidade do Governo de Jair Bolsonaro. E se isso ainda era motivo de dúvidas para uma parcela da população, a opção do presidente por comemorar nesta semana um suposto fracasso de uma vacina e usar um cadáver como instrumento de poder colocou em letras garrafais a dimensão da crise ética que vivemos.
Imoral, o Governo da fraude, da violência, da ameaça e da mentira banalizou a morte. As urnas o levaram ao poder. Mas sua legitimidade não se limita ao que ocorre na votação. Numa democracia, existe um ponto mágico no qual um Governo deixa de ser legítimo. Isso acontece quando ele não só se mostra incapaz de proteger seus cidadãos, mas atua deliberadamente para ampliar o sofrimento. Apoie nosso jornalismo.
A chegada do vírus não foi uma responsabilidade do Governo. Mas esteve em suas mãos a opção por um outro caminho que jamais foi assumido. A pior crise sanitária em 100 anos poderia ter mobilizado uma nação por sua sobrevivência.
Em sua obra "A negação da morte", Ernest Becker apresenta a civilização humana como mecanismo de defesa contra a consciência de nossa morte. Estudos revelam ainda que uma população, quando confrontada com um desafio existencial, está disposta a abraçar um líder forte que, pelo menos psicologicamente, dá sinais de proteção. Paradoxalmente, líderes tidos como “fortes” como Bolsonaro e Donald Trump mostraram como tais termos são meras narrativas construídas para justificar uma característica que não passa de uma cortina de fumaça para esconder personalidades medíocres.
Asfixiada, a alma de um país encontrou ironicamente na distante eleição americana de um político tradicional um motivo para comemorar como se a escolha tivesse sido sua. Como se aquela alma machucada tivesse recebido um sopro de esperança diante de jovens de todas as cores que tomaram as ruas das cidades dos EUA para destravar quatro anos de um grito preso no peito.
Pária, Bolsonaro mergulha o país em sua irrelevância internacional e aprofunda o extremismo de suas declarações. Nesta semana, ensaiou uma ameaça contra Joe Biden, evocando a “pólvora” quando acaba a diplomacia. Mas, acima de tudo, foi na contramão de todas as grandes democracias do mundo ao não reconhecer a queda de Trump. Não se trata apenas de manter um aliado. Ao se recusar a admitir o resultado, Bolsonaro fez uma demonstração perigosa de como está disposto a reagir se for derrotado em 2022.
Não há espaço para eleger santos. Mas chegou a hora de frear um movimento antidemocrático diante das evidências do caráter irresponsável de um líder. Talvez, assim, evitaríamos que esse movimento transforme uma nação em um experimento de destruição. Evitaríamos que esses mesmos líderes transformem a sociedade em uma longa noite de pesadelos que, como num caleidoscópio, vão ganhando novos monstros a cada giro. Em cada giro, uma dor do desmonte de uma democracia. Na história dessa dor, cada percurso de uma lágrima passa a ser tão vacilante como o rumo de uma nação que parece ter se esquecido de seu destino.
No poder, aqueles que conduzem o Estado deram claras demonstrações nesta semana de que não respeitam qualquer tipo de fronteira da ética. Juntos, precisamos acordar desse pesadelo. O desafio não é o de travar uma batalha entre esquerda e direita. Mas sonhar com a construção da paz social, com a vitória da verdade. As instituições precisam reagir, a sociedade não pode se calar e terá de se organizar. Não é mais o momento de transformar ataques à democracia em memes bem elaborados. Esse espaço, agora, precisa ser preenchido pela indignação, pois o que está em jogo é nosso futuro. Chegamos ao limite da indecência e da imoralidade. Basta!
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