Num mundo altamente polarizado, tudo pode ser transformado num símbolo político: até mesmo o mais básico objeto de proteção pessoal. Na América disfuncional de Trump e não só, as máscaras foram transformadas em declarações de identidade tribal: quem a usa é um liberal de esquerda, quem as dispensa, um corajoso conservador republicano.
Tapar o nariz e a boca nos locais públicos é a estratégia número um de prevenção e controlo perante uma pandemia, sobretudo quando muitos doentes são assintomáticos. Quem o diz são cientistas do mundo inteiro, que o explicam com factos que até uma criança de 6 anos consegue entender. A propagação do vírus é travada de forma considerável, uma vez que as gotículas contaminadas não são projetadas em direção aos outros. Uma posição que é aconselhada pela OMS e que é puro senso comum. Fazê-lo é, acima de tudo, um ato de civilidade, de educação e de solidariedade, mais do que de proteção individual.
Mas o que são simples factos que até a minha filha de 6 anos é capaz de perceber, Donald Trump é inapto para alcançar. Ele conseguiu transformar em arma de arremesso político o único objeto que pode travar a progressão estrondosa da Covid na América, pondo em causa a vida de milhares de cidadãos que, com este simples gesto, poderiam evitar ser contaminados.
Na festa do 4 de Julho, amontoaram-se em Washington milhares de republicanos orgulhosos com as suas bandeirinhas, máscaras não eram obrigatórias. No seu comício em Tulsa, a mesma coisa. Ao Wall Street Journal, Trump disse que algumas pessoas usavam máscara apenas para o afrontar, como se tudo, incluindo a saúde, girasse em redor do Presidente-Sol. Muitos recusam-nas veementemente por princípio e até as proíbem nos seus estabelecimentos. “Não vivemos num país comunista! Isto é a América”, disse perante as câmaras a dona de um bar no Texas.
Se o mau exemplo vem de cima, o povo vai atrás. Felizmente que, por cá, Ferro Rodrigues se retratou e já anda “mascarado”. Desde abril que o Centro para o Controlo de Doenças norte-americano as recomenda, mas Trump anunciou logo que não pretendia fazê-lo – deixando-o à consideração de cada um. Aos “mariquinhas”, portanto. E faz questão de ser sempre visto sem ela. Aos jornalistas diz que já usou uma e que isso o fez parecer o Lone Ranger. A situação é tão criminosa que até mesmo alguns republicanos se vão demarcando: Mike Pence, Mitt Romney, Mitch McConnell passaram a usá-las.
Se Trump e outros não entendem os argumentos da Ciência, civilidade e responsabilidade, houve já quem tentasse colocar a coisa da única forma que ele consegue processar: a do dinheiro. Uma análise da Goldman Sachs explicou que se os americanos fossem obrigados a usar máscaras em público, seria possível reduzir o número de novos casos diários para níveis que evitariam novos confinamentos, evitando que 5% do PIB dos EUA, ou quase um bilião de dólares, se evapore. Talvez assim colocada a questão, ela seja vista como um ato de patriotismo e orgulho nacionalista. Talvez, porque a estupidez não tem limites.
No Brasil, a mesma distopia louca, mas com um volte-face cinematográfico. Bolsonaro vetou uma parte da lei sobre a obrigatoriedade do uso de máscaras aprovada pelo Congresso que determinava o uso obrigatório em locais fechados, como estabelecimentos comerciais e industriais, igrejas e escolas. E é frequentemente visto em público sem ela.
Agora, Bolsonaro confirmou ter Covid-19. Por enquanto apenas com sintomas ligeiros. Boris Johnson, que no início também desvalorizou o perigo, já recebeu a sua lição e esteve internado. Não sou de desejar o mal alheio, mas aprecio quando se prova do próprio veneno. Chamem-lhe justiça divina, universal ou karma, mas seria muito merecido ver a Covid-19 bater a estes dois com força também.
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