segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

O que está nos afundando não é pobreza, e sim a irresponsabilidade e ganância dos ricos

Injusta, a sociedade brasileira tornou-se politicamente disfuncional. Em termos de procedimentos democráticos, a partir de um certo grau de desigualdade, a sociedade apenas multiplica conflitos, tensões e ódios. No brasil, já temos quase um milhão de pessoas nas prisões, 40% delas sem julgamento; e matamos anualmente 60 mil pessoas, majoritariamente jovens homens negros. Em 2018, a polícia matou uma média de 14 pessoas por dia. E temos palhaços explicando que não matamos o suficiente.

O clima generalizado de insegurança criado no país gera precisamente comportamentos sociais patológicos, busca desesperada de bodes expiatórios, de “culpados” sobre os quais possam ser descarregados os medos e os ódios. Campo fértil para oportunistas.

Os processos sociais colaborativos, únicos portadores efetivos de progresso, são substituídos por divisões que nos polarizam. Isso se dá com Macri, com Piñera, com Bolsonaro, com Trump, com Erdogan, com Duterte, com Boris Johnson, com Orbán e tantos outros.


O problema não está na boçalidade desses líderes, sempre haverá boçais ambiciosos, mas sim no fato das massas desesperadas votarem em qualquer candidato que se apresente “contra tudo isso aí”; e, em particular, na disposição das elites em entregar o país a esses boçais, conquanto possam manter ou ampliar seus privilégios.

Na raiz do problema está a desigualdade, a acumulação de privilégios absurdos frente a uma população cada vez mais indignada. Os mais ricos, para assegurarem o futuro das suas famílias – justificativa tão frequente para as fortunas que acumulam – fariam melhor em contribuir com a construção de uma sociedade equilibrada, que funcione para todos.

Politicamente, no sentido de fazer a sociedade funcionar no seu conjunto, o sistema está falido. Em termos econômicos, o sistema é literalmente burro. O que é particularmente chocante, e vem sendo objeto dos meus trabalhos, como o livro “A Era do Capital Improdutivo”, mas também de inúmeros pesquisadores de primeira linha, como Joseph Stiglitz, Thomas Piketty, Paul Krugman, Amartya Sen, Michael Hudson, além de um conjunto de núcleos de pesquisa econômica e social na Unicamp, na PUC-SP, na UFRJ e em outros centros, é que manter a renda e a riqueza concentradas em poucas mãos paralisa as nossas economias.

Lembremos que o problema é mundial. Atualmente 26 pessoas no mundo acumularam mais riqueza do que possuem 3,9 bilhões de pessoas, metade mais pobre do planeta. A América Latina apenas apresenta uma deformação mais grotesca do processo global de financeirização.

Particularmente importante é entender o mecanismo. Stiglitz mostra que acumular riqueza aumentando a produção é diferente de enriquecer se apropriando da riqueza dos outros. O imenso sucesso de “O Capital no Século XXI”, de Piketty, se deve, essencialmente, do fato dele conseguir demonstrar que o PIB mundial vem crescendo numa faixa de 2,5% com a produção concreta de bens e serviços, enquanto as aplicações financeiras, constituídas essencialmente por especulação improdutiva, rendem entre 7% e 9%. Ou seja: o capitalismo que investia e produzia foi substituído por um capitalismo que literalmente vive de especulação, o “capitalismo extrativo” nas palavras de Marjorie Kelly e Ted Howard.

A financeirização generalizada criou um capitalismo que funciona para o 1%, mas não para o resto do mundo. Os autores mencionados trazem todas as demonstrações científicas necessárias.

Mas particularmente útil, além dos cientistas, é olhar o que funciona na China, no Canadá, na Coreia do Sul, nos países nórdicos. O sistema que funciona foi igualmente aplicado no New Deal dos Estados Unidos nos anos 1930; na Europa do pós-guerra no chamado Welfare State; no Brasil, na década de 2003 a 2013, chamada pelo Banco Mundial de “a década dourada da economia brasileira”. Todas essas experiências consistiram na utilização do Estado para melhorar a situação das famílias, assegurando o bem comum. A fórmula é simples: com mais recursos para gastar, as famílias passam a consumir mais estimulando as empresas, que expandem empregos e investimentos produtivos. Tanto a demanda das famílias gera impostos sobre o consumo, receita para o Estado, como a atividade ampliada das empresas gera impostos sobre a produção, mais receitas para o Estado. E a conta fecha.

O Estado dispondo de mais recursos pode, por um lado, ampliar o bem-estar das famílias (que não se resolve apenas com gastos individuais), assegurando o acesso aos serviços de saúde, educação, segurança, rios limpos e semelhantes. Essa é a dimensão pública do bem-estar, com acesso gratuito e universal por parte da população.

Por outro lado, o Estado passa a ter recursos para investir em infraestruturas, como transporte, energia, telecomunicações e sistemas de água e saneamento, investimentos que melhoram a produtividade de todos, e em particular das empresas. Este duplo circuito, em que o ponto de partida, o “motor de arranque” por assim dizer, é orientar os recursos para o bem-estar das famílias, constitui o denominador comum das economias que funcionam, tanto no Canadá quanto na China, ainda que sejam países politicamente tão diferentes. É o chamado círculo virtuoso da economia.

O resto é narrativa. Dizer que temos de dar mais dinheiro aos ricos, para que eles tenham “confiança” e invistam, é uma tremenda enganação. Um empresário no Brasil, depois de seis anos de redução de direitos sociais e trabalhistas, constata desolado: realmente, está mais barato eu contratar mão de obra, mas para que vou contratar se não tenho para quem vender?

As empresas efetivamente produtivas não precisam de discursos ideológicos nem de narrativas, precisam da população com dinheiro para que tenham para quem vender; e precisam de crédito barato para poder investir. No Brasil, com os retrocessos gerados a partir de 2014, as empresas não têm nem um, nem outro.

Com diversos formatos e variações locais, este sistema mantém a América Latina travada nos planos ético, político e econômico. É o tecido social no seu conjunto que se desarticula. Mas os bilionários que pouco produzem, e drenam a economia por meio de sistemas de intermediação financeira e de acordos escandalosos com grupos internacionais, esses sim estão otimistas, compram mais papéis financeiros, acumulam mais dinheiro em paraísos fiscais, e se congratulam quando a bolsa ganha alguns pontos, como se se tratasse da economia real. Esta farsa está quebrando grande parte do planeta, mas em particular a América Latina. É hora de inverter os rumos.

Hoje olhamos com desolação a repressão e as mortes que se multiplicam. Acusados de serem desordeiros, o que os manifestantes querem é justamente a ordem, uma ordem que funcione. Hoje está cada vez mais evidente: a massa de jovens herdará um sistema que lhes tolhe o futuro e liquida suas oportunidades, e que vai acabar não funcionando para ninguém. O que está nos afundando não é pobreza, e sim a irresponsabilidade e ganância dos ricos.

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