Estávamos prontos para desembarcar do Arctic Sunrise e embarcar num bote que nos deixaria em Hannah Point. Era início da manhã e seguiríamos os cientistas de pinguins em sua pesquisa nesta nova ilha. E então Nacho, o argentino que é o segundo em comando no navio, informou que não seria possível. Teríamos que esperar até o início da tarde. Parem e tentem adivinhar o porquê.
Previsão de tempestade? Uma dobra no espaço-tempo? O abominável homem das neves?
Não, meus amigos. Os mais de cem turistas de um navio de cruzeiro queriam estar sozinhos na ilha. Sim, meus amigos. A visão dos cientistas pesquisando o impacto da crise climática sobre as colônias de pinguins arruinaria a ilusão da Antártida isolada, da aventura num lugar que ninguém alcança exceto se tiver muito dinheiro, a fantasia de serem uma espécie de Shackleton ou Scott do século 21.
Turismo dos endinheirados invade a Antártida |
Funciona assim. Há um acerto entre os cruzeiros para que, quando um deles está numa ilha, os outros saem da linha de visão. Os turistas pagam caro pela promessa de se sentirem únicos: neste caso, quase 60 mil reais por 14 dias (perto de 14 mil dólares). Pode ser muito mais, a depender do percurso, do tipo de cabine, do número de dias. A mercadoria é a Antártida inalcançável, exceto para poucos. “Só eu estou aqui, me chamem de Amundsen”, pode ser a legenda da selfie. Só que não. Virando a esquina uma fila de navios espera a sua vez de ficar “isolado” no continente gelado.
Para que eles tivessem essa “experiência”, seis cientistas tiveram que interromper sua pesquisa e esperar até a tarde, quando o tempo piorou e a permanência em campo foi encolhida. Os cientistas precisaram desembarcar nas pedras para alcançar o coração da ilha porque, com as más condições meterorológicas, o bote era muito leve para aportar num lugar de melhor acesso. “Que estranho”, comentou um perplexo Noah Stryker, o nerdbird que apresentei a vocês no capítulo anterior. “Os turistas costumavam gostar de conversar com a gente, achavam que era mais uma história para contar quando voltassem para casa.” Com tristeza expliquei a ele que, num momento em que a verdade se tornou uma escolha pessoal, a ciência e os cientistas estão se tornando párias. Mesmo que, para afirmar que a terra é plana ou fingir estarem isolados, tantos os mercadores de ilusões quanto os compradores de ilusões precisem do melhor da ciência.
Esta não é uma curiosidade. É um desacontecimento que revela o quadro maior de acontecimentos em cadeia que nos traz à dramática realidade que vivemos. É também por essa inversão das prioridades que vivemos hoje um colapso climático. E é também a dificuldade de mudar nossas prioridades que torna a meta de limitar o superaquecimento global a 1,5 graus cada vez mais distante, para não dizer impossível.
É o “terraplanismo”, como chamamos o fenômeno maior de negar as evidências científicas mais consolidadas, como o próprio formato do planeta. O número crescente de adeptos sugere que, no momento em que os humanos mais precisam de lucidez é justamente quando entram em estado de negação. Quem acompanha minhas colunas de opinião sabe que uma de minhas hipóteses para a eleição de déspotas é o sentimento de insegurança diante do futuro. Mas não pela indeterminação do futuro. Exatamente pelo contrário.
O futuro, como o conhecíamos antes, era um território de possibilidades. “No futuro será melhor” ou “no futuro atingiremos esse objetivo” ou mesmo “no futuro conseguiremos nossa casa própria”. Agora não. A crise climática conferiu determinação ao futuro. Ele será ruim, do ponto de vista do impacto da mudança do clima. Toda a nossa luta pelo futuro se dá em torno de um planeta pior ou um planeta hostil. E, acreditem, a diferença é enorme. Tão enorme que deveríamos todos estar lutando por ela neste exato momento. Me parece que também por isso, parte da população global prefere votar em negacionistas do clima que também prometem uma volta a um passado que nunca existiu. Trump e Bolsonaro, assim como outros de seus coleguinhas, são vendedores de passados. Passados falsos.
Não tive chance de entrevistar os turistas do navio de cruzeiro que pagam tão caro pela fantasia de estarem isolados na Antártida das lendas. Eles nos queriam longe da vista, como ficou explícito. Não me parece, porém, que devam ser más pessoas ou declaradamente anti-ciência. Me parece mais possível que sejam típicos adultos mimados desta época. Pagamos por uma mercadoria e temos “o direito” de recebê-la. “A verdade é a que eu vou contar”, a prova é o enquadramento da câmera do celular. E assim por diante. A verdade é autoverdade, como já escrevi ao analisar a eleição de Bolsonaro.
Aqui, também os navios de cruzeiro estão literalmente vendendo um passado, o da Antártida inacessível. Em algumas ofertas de viagem pela Antártida, os potenciais clientes não são chamados de turistas, mas de “exploradores”. É curioso como tantos preferem pagar mais caro pela fantasia. Tantos deixam o conforto de suas casas para empreenderem um percurso real e pago com dinheiro real, mas para alcançar uma realidade falsificada. Na ilha que os turistas ocuparam como os únicos humanos, os pinguins de barbicha (chinstraps) vivem uma dramática redução de sua população. Esta é a história que os cientistas poderiam contar. Mas essa história não interessa. Quem, afinal, precisa de fatos?
Num planeta em que tudo já virou imagem, em que a marca de nosso pé está em todos os lugares, acabo por sentir compaixão por esses animais humanos que seguem comprando fantasias de exclusividade. É uma compaixão misturada à raiva, porque essa negação enfraquece a luta que deveríamos estar travando por políticas públicas para conter o superaquecimento global e nos adaptar ao mundo que está vindo. Antes de amaldiçoarmos os turistas antárticos, o que sempre é fácil e também cômodo, porém, devemos olhar para dentro de nós e descobrir que também temos dificuldade de abandonar velhos hábitos em nome do bem comum. Acreditem, há quem sequer é capaz de reciclar seu lixo ou reduzir o consumo de carne.
Hoje, os cientistas se tornaram a verdade inconveniente. Então, precisam ser tirados da vista. E não apenas na Antártida.Eliane Brum, sétimo relato do diário de bordo no navio Arctic Sunrise, na Antátida
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