domingo, 26 de janeiro de 2020

A correia de transmissão do autoritarismo no Brasil de Bolsonaro

Uma das discussões importantes entre os analistas da democracia brasileira atualmente consiste em saber se o presidente Jair Bolsonaro e seu Governo representam ou não um risco para a democracia brasileira. Na segunda-feira, o cientista político Celso Rocha de Barros, escreveu um importante artigo respondendo a articulistas que vêm defendendo a ideia de que o balanço que se pode fazer do primeiro ano de Governo Bolsonaro é o de que a democracia brasileira resistirá às bravatas autoritárias do atual presidente e aliados.

Para Rocha de Barros, as ameaças são reais e o fato de as instituições não terem desmoronado no primeiro ano de Governo não significa que elas não estejam em risco. Claudio Couto, mostrando como o teste permanente das instituições pode acabar esgarçando essa resistência, e Claudio Ferraz, apontando que as democracias se fragilizam em contextos de extrema polarização, também contribuíram para o debate.

Parece claro que não podemos simplesmente comemorar o fato de a democracia ter resistido a um presidente com perfil e discurso claramente autoritário em seu primeiro ano, como um sinal de que ela resistirá mais adiante.


Eu escrevi, em novembro, para o site da revista Piauí, um artigo alertando que o autoritarismo do século XXI vai minando a democracia aos poucos. Não acordamos um dia com tanques na rua e um regime autoritário, mas governantes eleitos democraticamente vão, ao longo de alguns anos, corroendo instituições de freios e contrapesos, até que elas perdem força e o autoritarismo se consolida. Os artigos que apontam a sobrevivência da democracia neste primeiro ano como sinal de que não teremos uma virada autoritária poderiam tranquilamente ter sido escritos ao final dos primeiros anos dos Governos —hoje claramente autoritários— na Nicarágua, Hungria, Venezuela, Polônia, Turquia e Índia.

Claro que também se deve ter cuidado para não se tocar de forma leviana o alarme do autoritarismo. O Brasil ainda tem instituições que têm funcionado como contrapesos importantes às inclinações autoritárias do Executivo. Congresso, Supremo Tribunal Federal, imprensa e sociedade civil têm conseguido reagir contra diversos ataques ao bom funcionamento da democracia.

Também não se pode fingir que as inclinações autoritárias presentes na sociedade e no Estado brasileiros surgiram com a eleição de Bolsonaro. As milícias que oprimem regiões inteiras do Rio e mataram Marielle Franco penetram o Estado bem antes de sonharem com o Planalto, a Constituição é obra de ficção para os jovens negros das periferias, ataques aos povos indígenas não são exatamente uma novidade na nossa história. Os exemplos são, infelizmente, infindáveis.

O que mudou? O que faz com que o momento atual represente um risco muito mais tangível de uma virada autoritária profunda no Brasil?

Há uma mudança clara na sociedade. Um defensor explícito da tortura, da ditadura e da homofobia não seria eleito em um Brasil relativamente recente. Algo mudou na tolerância da nossa sociedade com esses valores antidemocráticos. O autoritarismo latente na nossa história tornou-se novamente desavergonhado – talvez fruto da forte polarização como aponta Ferraz- e não há como negar que isso represente um terreno muito mais fértil para que ataques à democracia deixem marcas mais profundas em nossas instituições.

Além disso, parece haver na sociedade uma radicalização da tensão em torno de temas morais, com ênfase especial na questão de gênero. As reações violentas contra debates e manifestações a favor da pauta LGBT ou de direitos das mulheres tomam proporções impressionantes. Seja na bomba jogada no prédio da produtora do grupo Porta dos Fundos, seja nas ameaças recebidas por Felipe Neto por defender um quadrinho com beijo gay, seja na violência contra a antropóloga Debora Diniz, forçada a deixar o país, podemos perceber que a manifestação pública nesse tema gera um novo tipo de violência. Essa radicalização tem propiciado uma naturalização de violências contra defensores de uma visão de mundo menos conservadora.

Nada disso foi inventado por Bolsonaro. O que muda então? A presença de um chefe do Poder Executivo que foi eleito baseado justamente nos valores afirmados por essas violências altera a forma como as instituições brasileiras reagem a essas manifestações violentas.

A cada discurso que reforça uma visão autoritária por parte do Governo (do ministro emulando nazismo ao presidente dizendo que as pessoas de esquerda não merecem ser tratadas como pessoas normais), os setores mais violentos da sociedade vão se sentindo à vontade para avançar contra seus inimigos e as instituições vão, pouco a pouco se sentindo confortáveis para reforçar as violências ao invés de proteger a constituição.

O Governo anuncia que não haverá mais fiscalização, os grileiros e o crime organizado reagem imediatamente não apenas avançando no desmatamento, mas com ameaças e assassinatos de líderes indígenas e defensores do meio ambiente. E as instituições respondem não coagindo essas violências. O presidente diz que as ONGs são responsáveis pelos incêndios nas florestas causados por esses mesmo grileiros criminosos, as instituições reagem falseando investigações para acusar brigadistas que trabalhavam com ONGs —e até com polícia e bombeiros locais— para apagar o fogo.

O presidente e seu ministro escolhem a agenda do enfraquecimento da legislação para punir policiais que matam, a polícia do Rio reage com seu ano mais violento da história, com o número assustador de cinco pessoas mortas pela polícia por dia no Estado. O presidente diz que o jornalista Glenn Greenwald “talvez pegue uma cana aqui no Brasil”, as instituições reagem apresentando uma denúncia sem fundamento, em um dos mais graves atentados à liberdade de imprensa no país pós-88. O discurso presidencial estimula o ódio contra a esquerda, um grupo fascista reage jogando uma bomba no prédio do grupo Porta dos Fundos e Judiciário carioca responde censurando o especial de natal do grupo.

É esse mecanismo de alimentar a violência através do discurso e criar um ambiente para que as instituições corroborem essa violência ao invés de reprimi-la que marca a diferença do que vemos hoje com o autoritarismo latente do Brasil.

Neste primeiro ano de Governo, apesar de uma reação de apoio aos ventos autoritários por parte de instituições principalmente locais, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, parte relevante da imprensa e a sociedade civil têm conseguido impedir que o discurso de fato desmonte a democracia.

São inúmeros os exemplos em que essas instituições (em geral a soma de suas ações) têm conseguido barrar o autoritarismo. Ou seja, a discussão não é sobre se há ou não ameaça à democracia. Mas se essas instituições serão capazes de resistir a essa pressão —apontada por Claudio Couto— constante por tanto tempo. E é aí que as perspectivas são menos animadoras.

Bolsonaro indicará no mínimo dois ministros do STF até 2022 e mais dois caso seja reeleito. Com a atual forma do STF decidir, na qual decisões individuais são quase sempre mais importantes do que o voto do plenário, é difícil prever o que ministros comprometidos com os valores e ideias de Bolsonaro podem fazer com nossa democracia.

Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre não poderão ser reeleitos para as presidências das casas legislativas (a não ser que alterem a Constituição) e, a partir de 2021, Bolsonaro poderá tentar emplacar aliados mais próximos no comando das Casas. Quem garante que os ataques verbais de Bolsonaro à imprensa e à sociedade civil não se concretizarão nos próximos anos, aproximando seu Governo de seus pares no campo internacional como Viktor Orbán?

O risco à nossa democracia existe. O contexto global de crescimento de Governos autoritários exige que reconheçamos isso. No nosso caso, a correia de transmissão entre o discurso autoritário, passando pela violência de grupos sociais e a acolhida de instituições estatais, fica cada vez mais clara. A resistência à naturalização desse processo passa por denunciá-lo constantemente e evitar qualquer barganha para naturalizá-lo (“nenhum silêncio é inocente”, alertou Eliane Brum aqui no EL PAÍS).

Também é necessário compreender que há um campo de batalha política fundamental na defesa de um STF comprometido com a Constituição, de um Congresso que valorize a democracia e na preservação da imprensa livre e do espaço para a sociedade civil. A capitulação desses pilares pode transformar uma violência esparsa na nossa sociedade em uma violência diretamente direcionada para a manutenção de um grupo político no poder, com beneplácito das instituições. Se isso acontecer, não podemos ficar surpresos, os indícios que vemos aqui são muito parecidos com indícios que países hoje autoritários apresentaram depois de um ano de Governo.
Pedro Abramovay

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