segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Meritocracia e desigualdades sociais

As causas das grandes manifestações populares, recentemente, no Equador, no Chile, no Líbano, no Iraque, na Checoslováquia e em Hong Kong, que abalaram governos e instituições, são complexas, mas não há dúvida de que boa parte dos protestos se origina no aumento da desigualdade de renda que está ocorrendo no mundo todo.

Esse é também um dos temas centrais das eleições presidenciais dos Estados Unidos no próximo ano. Apenas 0,1% dos americanos – cerca de 300 mil pessoas, numa população de mais de 300 milhões – controlam 20% da riqueza nacional. A renda dessas pessoas nos últimos 40 anos cresceu muito mais rapidamente que a renda do restante da população.


O fosso entre ricos e pobres está aumentando não apenas nos Estados Unidos, como também no Chile, na Argentina, entre outros países, como o Brasil, conforme mostram dados recentes do IBGE. A desigualdade econômica, porém, é apenas parte do problema: desde os primórdios da civilização, 10 mil anos atrás, existem aristocracias que governam e se beneficiam do trabalho da população: as famílias imperiais da Antiguidade, os senhores feudais da Idade Média e o sistema colonial vigente até o século 20. Em todos esses sistemas, o mérito foi uma consideração secundária diante das relações de sangue, favoritismo e corrupção.

A Revolução Francesa, de 1789, extinguiu a monarquia e implantou o regime republicano, que abriu caminho para a emergência dos mais capazes, escolhidos pelo mérito. As vantagens da meritocracia foram compreendidas pelo rei Luís XV, da França, antes da revolução. Ele criou, em 1760, uma escola militar para treinar oficiais oriundos de famílias que não pertenciam à nobreza. Foi nela que Napoleão Bonaparte, vindo de uma província secundária como a Córsega, se distinguiu e iniciou sua meteórica carreira militar, o que então era raro.

A meritocracia para o serviço público foi introduzida na Inglaterra em 1830 e um dos sucessos indiscutíveis da colonização da Índia pelos ingleses foi a organização de um excelente serviço público, que dura até hoje.

Surgiram, contudo, recentemente nos Estados Unidos teorias de que a causa dos problemas da desigualdade de renda é a nova aristocracia de superdotados e supercapacitados, que substituiu a velha aristocracia do “sangue”, isto é das grandes famílias do passado, como Vanderbilt, Carnegie e Rockefeller. Os novos bilionários, como Bill Gates (Apple), Mark Zuckerberg (Facebook), Jeff Bezos (Amazon) e outros, passaram a ser membros da aristocracia do país. As universidades de elite como Stanford, Harvard, MIT, nas quais estudaram, estariam, portanto, alimentando a concentração de fortunas.

Mais ainda, os filhos desta nova aristocracia, que são excepcionalmente bem preparados para a corrida da meritocracia, reproduzem o que se chama de “casta hereditária”. Nessas universidades, a maioria dos estudantes vem efetivamente de famílias ricas.

Essas ideias se originaram na noção de que na Inglaterra o sistema educacional perpetuava o domínio da aristocracia nas posições do governo por meio dos egressos das grandes universidades, como Oxford e Cambridge, às quais as classes menos favorecidas não tinham acesso.

Um educador inglês de tendência socialista, Michael Young, escreveu em 1958 uma sátira sobre os efeitos que o sistema educacional vigente poderia ter no futuro. Na época os jovens de 11 anos eram submetidos a exames que mediam o seu QI (quociente de inteligência) e de acordo com seu desempenho eram encaminhados para os diferentes tipos de escolas: os melhores para as universidades, os piores para escolas profissionais para a indústria, o comércio e a agricultura.

A tese fundamental de Young é que faz sentido escolher pelo mérito as pessoas mais adequadas a uma atividade específica (como pilotar aviões ou dirigir uma empresa de energia), mas permitir que elas constituam uma nova classe social que não deixa espaço para outros é um absurdo.

A sátira de Young faz uma caricatura do que poderia acontecer no futuro: uma revolução populista que destrói o governo aristocrata criado pela meritocracia. Seu livro é da categoria das “distopias”, como o filme Metrópolis, de Fritz Lang, os livros Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, que imaginaram um futuro em que elites privilegiadas controlavam completamente a sociedade e exploravam o resto da população.

É evidente, hoje, que as previsões da distopia de Young não se concretizaram. O controverso QI como único critério para alocação de crianças em escolas foi abandonado, já que é obvio que ele poderia variar ao longo do tempo, bem como as qualificações e predicações das pessoas. Competição e esforço individual têm papel importantíssimo no sucesso das pessoas, e não apenas o seu QI.

Outras experiências de “engenharia social” foram tentadas, também sem sucesso: os comunistas, após a revolução russa de 1917, aboliram os exames de seleção (vestibulares) nas universidades, abrindo suas portas aos “filhos dos trabalhadores”. Passados alguns anos o próprio Lenin se deu conta de que a construção do socialismo precisava de técnicos competentes e reintroduziu a meritocracia.

Meritocracia não é a causa das desigualdades econômicas que existem atualmente em muitos países, o que pode e deve ser resolvido pelo sistema de taxação das grandes fortunas. Os problemas que enfrentamos hoje se originam das características do capitalismo do século 21: a tecnologia moderna, largamente baseada na informática, depende muito mais de pessoal superqualificado do que o sistema industrial do passado – mineração, siderurgia, transporte e produção de bens de consumo –, que exigia grande quantidade de mão de obra e de materiais, ao passo que a informática depende fundamentalmente da inteligência que se cultiva e desenvolve nas universidades.

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