Reconhecida por grandes empresas brasileiras e europeias como uma iniciativa voluntária de sucesso para reduzir o desmatamento, a chamada moratória da soja foi estabelecida para atender a uma pressão de consumidores críticos a produtos que pudessem estimular a derrubada de floresta na região amazônica.
Para evitar danos de reputação e assegurar a entrada da soja em mercados exigentes, especialmente o europeu, as empresas que compram o grão dos produtores brasileiros e o processam e exportam, como Amaggi, Cargill e Bunge, se juntaram a entidades da sociedade civil. Com o objetivo de estabelecer um mecanismo de monitoramento, as empresas se comprometeram a não comprar soja de áreas da Amazônia desmatadas após julho de 2008, data limite para anistia de desmatamentos ilegais estabelecida pelo Código Florestal.
Agora, parte dos produtores de soja contrários à moratória articulam uma forma de derrubá-la, com o aval de membros do alto escalão do governo Bolsonaro. Eles são representados pela Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil).
No início do mês, o presidente da entidade, Bartolomeu Braz Pereira, anunciou em entrevista ao jornal Valor Econômico que sua entidade apresentaria uma reclamação ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão de defesa da concorrência, alegando que a moratória era um mecanismo de reserva de mercado e que deveria ser revogada.
O Código Florestal autoriza proprietários de áreas na Amazônia legal a desmatarem até 20% de suas propriedades. Os produtores argumentam que a moratória impede que aqueles que plantam soja em áreas desmatadas legalmente a coloquem no mercado.
Braz se reuniu em 11 de setembro com o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e no mês seguinte o secretário-especial de relacionamento externo da pasta, Abelardo Lupion, declarou, em entrevista ao site Notícias Agrícolas, que as grandes exportadoras de soja que patrocinam a moratória "cometem um crime quando fazem distinção entre produtores rurais" e que o governo iria "jogar muito pesado" para reverter o instrumento.
A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, informou em nota à DW Brasil que a moratória da soja é uma questão entre entes privados, mas que pessoalmente, a considera um "absurdo".
"O produtor brasileiro cumpre o Código Florestal, que, no caso da Amazônia, determina a proteção de 80% da área da propriedade", afirmou. Até o momento, porém, o governo ainda discute o tema e não anunciou medida concreta a respeito.
Uma das dificuldades de atender à demanda da Aprosoja é que, hoje, não há instrumentos para exportadores e compradores avaliarem se um determinado produtor agrícola está em terras da região amazônica desmatadas regularmente.
O outro empecilho é que há uma demanda consolidada, especialmente em países europeus, por soja que não seja ligada a qualquer tipo de desmatamento na Amazônia, mesmo que autorizado pela lei.
"Não há como comprovar nem demonstrar para nossos compradores se houve desmatamento seguindo ou não o rito legal", afirmou à DW Brasil André Nassar, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), uma das signatárias da moratória da soja. Mesmo que um instrumento desse tipo seja estabelecido, a Abiove diz que seguiria com o monitoramento da moratória para atender aos consumidores que desejam a soja livre de desmatamento.
Segundo Paulo Adário, estrategista sênior de florestas do Greenpeace, o critério temporal, que autoriza a compra de soja de áreas desmatadas antes de julho de 2008, é benéfico para muitos produtores. "Há uma barafunda legal. Se a moratória fosse discutir legalidade, muitos produtores que não conseguem comprovar que estão em áreas legais ou em dia com suas obrigações de reflorestamento ficariam de fora", afirma.
De 2006 a 2018, a área de soja plantada na região da Amazônia subiu de 1,4 milhão de hectares para 5 milhões de hectares, mas apenas 2% dessa área foi desmatada com esse fim após julho de 2008. "A moratória foi um sucesso, a área plantada aumentou, a produção aumentou, e o desmatamento caiu", diz Adário.
Compradores internacionais têm a preocupação de verificar se a soja foi plantada em área desmatada na Amazônia porque o desmatamento é um vetor do aquecimento global, por meio da queima ou decomposição de material vegetal, no alvo do Acordo de Paris.
Nassar, da Abiove, afirma que, caso o Cade aceite abrir uma investigação sobre a moratória, haverá "preocupação enorme" no setor. "Quem importa e não quer comprar soja de área desmatada vai atribuir maior risco de isso ocorrer com a soja brasileira, e vai aumentar a exigência de garantias", diz, apontando que a derrubada da moratória traria prejuízo não apenas aos que hoje plantam na Amazônia, mas aos produtores de todo o país.
Segundo ele, 50% do farelo de soja exportado pelo Brasil vai para a Europa. Somadas, as exportações de farelo e do grão cru representam 12,5% da produção de soja brasileira. Caso o Brasil perca esse mercado, Nassar aponta que haveria um aumento dos estoques de soja no país e uma queda do preço.
"Essa iniciativa dos produtores conspira contra os interesses do próprio agronegócio. A moratória é uma guardiã de um mercado para soja. Esses produtores não conseguem entender a máxima de que o consumidor tem sempre razão", diz Adário, do Greenpeace.
A soja na Amazônia representa 13% da soja plantada no país. A maior parte da produção do grão ocorre hoje no Cerrado, que não é abrangido pela moratória. Organizações ambientalistas estão pressionando os grandes exportadores a aplicarem a mesma regra a esse bioma, mas não há consenso no setor. Segundo Adário, a iniciativa da Aprosoja seria também uma estratégia preventiva para se opor à aplicação da moratória no Cerrado.
Nathalie Lecocq, diretora geral da Fediol, que representa a indústria europeia de óleos vegetais e de proteína animal, afirmou à DW Brasil que a entidade recebeu com preocupação a proposta de acabar com a moratória da soja, "atualmente o único instrumento que oferece garantias de que não há desmatamento no bioma amazônico".
Segundo ela, empresas europeias importam e processam soja do Brasil no valor de 4,2 bilhões de euros por ano (cerca de 20 bilhões de reais), que seriam "colocados em risco' com o fim da moratória.
"As exigências ambientais se tornaram mais importantes para as companhias, e o consumidor europeu espera que a União Europeia aja para enfrentar o desmatamento no fornecimento [de matérias-primas]", diz Lecocq.
Ela aponta que os últimos dados sobre o aumento do desmatamento na Amazônia, associados ao debate sobre o fim da moratória, podem levar consumidores europeus a aumentarem sua rejeição a produtos que possam conter desmatamento e forçar legisladores e governos a adotarem medidas para evitar que esses produtos entrem no mercado europeu.
A DW Brasil tentou ouvir um representante da Aprosoja Brasil desde o dia 19 de novembro, sem sucesso.
Deutsche Welle
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