quinta-feira, 17 de outubro de 2019

A guerra fria de Bolsonaro

“Temos inimigos dentro e fora do Brasil. Os de dentro são os mais terríveis”. Foi com esse espírito que o presidente Jair Bolsonaro participou de cerimônias no Rio de Janeiro e em São Paulo na última sexta-feira. No sábado foi a vez de seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, se manifestar durante a 1ª edição do CPAC, uma conferência organizada em parceria com a União Conservadora Americana, com críticas à mídia e ao “domínio cultural marxista”.

Atribui-se ao general Golbery de Couto e Silva a autoria da doutrina de Segurança Nacional, segundo a qual era preciso povoar o centro-oeste e o norte do país e se aliar aos Estados Unidos como garantia da nossa soberania. Essa doutrina, formulada em plena Guerra Fria, trabalhava com o conceito de inimigos externo e interno.

O primeiro era o comunismo internacional, liderado pela União Soviética, e que tinha em Cuba a sua plataforma de exportação para os países latino-americanos. No plano interno, a chamada subversão era o inimigo a ser vencido. Esses eram os agentes da infiltração comunista em nosso país.

A ocupação da Amazônia se deu a partir desse figurino. Era preciso integrar para não entregar a região a interesses escusos.

Havia os inimigos internos. Desde a esquerda que combatia o regime de armas nas mãos até a oposição legal e democrática, passando pela área da cultura e por entidades da sociedade civil, como OAB, CNBB, ABI, SBPC, entre outras. Em particular, o regime via a Igreja Católica como foco de subversão e enxergava como “maus brasileiros” todos os que criticavam o governo no exterior.

Jair Bolsonaro e muitos de seu núcleo militar vieram dessa época. Isso explica em grande medida o fato do presidente trabalhar com as mesmas categorias mentais, apesar de viver em outros tempos. Mudaram os atores e a conjuntura, mas a concepção é a mesma.

O conceito do inimigo externo foi adaptado aos tempos atuais. Não é mais o comunismo internacional, ainda que o presidente e seu governo façam do anticomunismo uma peça de coesão ideológica do seu campo. Em sua ótica, a ameaça à soberania nacional vem do globalismo inspirado no “marxismo cultural”, que quer destruir a sociedade judaico-cristã do mundo ocidental.

Assim, por trás das críticas ao seu governo à crise amazônica estariam os interesses escusos do globalismo de se apropriar das riquezas da região, em especial dos minérios: "O interesse na Amazônia não é no índio, nem na porra da árvore. É no minério.”

As ONGs, os indígenas como Raoni, a imprensa, os órgãos públicos como INPE, e todos que denunciam o desmatamento da Amazônia são vistos como infiltrados de um globalismo que vai de Emmanuel Macron a George Soros, passando pela ONU, a União Europeia e outros fóruns internacionais.

A política externa também é ditada pela geopolítica bolsonariana e por uma ótica fundamentalista que vê nos Estados Unidos de Donald Trump os novos cruzados que vão salvar a civilização ocidental. A aliança com países de governo “soberanistas”, como a Hungria de Victor Orbán também decorre da mesma visão apocalíptica do globalismo.

Internamente, há um rol infindável de inimigos. Os professores que fazem lavagem cerebral nos alunos, os críticos de sua política externa, a área cultural, a OAB, a imprensa, e, não poderia faltar, a Santa Madre Igreja, que ousa organizar um sínodo para discutir a Amazônia.

A geopolítica dos militares do passado tinha sua explicação. O mundo dividia-se em dois blocos, havia uma corrida nuclear, guerras regionais, como a da Coreia e do Vietnã, e o fantasma de uma terceira guerra mundial quase se materializou na crise dos mísseis em Cuba. Tínhamos espaçonaves e guerrilhas, com Guevara na Bolívia, Lamarca e Marighela no Brasil.

As batalhas de Bolsonaro se dão em um mundo inteiramente diferente, de economia globalizada e movimentos sociais complexos, no qual a grande corrida para definir as potências é a tecnológica.
Bolsonaro trava a guerra do passado em vez de se dedicar à guerra do futuro.

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