O brasileiro que está em dia com o Fisco e tem fome de limpeza precisa se benzer. Há no Planalto um inquilino de comportamento esquisito. Acha natural mobilizar um helicóptero da FAB para levar amigos e parentes ao casamento do filho. Considera normal quebrar lanças para dar ao mesmo filho o "filé mingnon" da embaixada em Washington. Se as luzes acendem sobre a movimentação bancária de outro filho, acha correto desligar o interruptor do Coaf. Ministro investigado? Normal. Ministro condenado? Nada de mais.
Foi nesse contexto que sobreveio a carona da mulher do chanceler. "Se um avião presidencial nosso vai para algum lugar a serviço, não vejo nada de mais levar alguém no avião. Não vejo nada de mais nisso aí", afirmou o capitão, antes de fazer uma concessão à dúvida: "Se está errado, se tiver alguma norma dizendo o contrário, eu vou conversar com ele".
Afora as regras do bom senso, há as normas contidas nos regulamentos da FAB (decreto 4.244/2002) e numa cartilha que o próprio Bolsonaro mandou distribuir dias antes da posse. Nela, está escrito que apenas ministros e membros do seu staff poderiam voar nas asas da Força Aérea.
Ernesto viajou em missão oficial. Sua mulher foi a passeio. Além da aeronave, Maria Eduarda dividiu com o marido, entre 20 e 25 de maio, o quarto de hotel. Tudo às expensas do erário. Assegura-se que madame tirou da própria bolsa a verba para a alimentação. Não há, por ora, vestígio de comprovantes.
Cabe perguntar:
1) Num instante em que as finanças públicas se encontram no brejo, Ernesto não poderia ter embarcado num voo de carreira?
2) Considerando-se que pernoitou numa hospedaria em que os preços variam conforme o número de ocupantes e as diárias oscilam de R$ 734 a R$ 2.250, Ernesto não teria molestado menos o bolso do contribuinte se estivesse sozinho?
Por um instante, Bolsonaro colocou-se dentro dos sapatos de Ernesto. Recordou o casamento do filho: "É a mesma coisa quando uma irmã minha, um primo, uns três ou quatro entraram em um helicóptero no Rio de Janeiro. Eu estava indo a um casamento e o helicóptero estava vazio. Eu apanhei para caramba de vocês. E o gasto ia ser feito". Meia verdade. O capitão foi num helicóptero. Os convidados, noutro. O gasto não deveria ter sido feito.
O capitão costuma fazer cara de enfado sempre que os repórteres desperdiçam o seu tempo com miudezas. "Nada de mais&..." "de novo?"; "se continuar, acaba a entrevista!" É como se dissesse: "Eu livrei o país da roubalheira do PT! Isso não basta?"
Se Bolsonaro ainda fosse um mero deputado do baixo clero, certos assuntos iriam para o gavetão das pequenas causas, repleto de velhas pendências. Por exemplo: a Wal do açaí, o auxílio-moradia para quem dispunha de imóvel próprio, a "rachadinha" na folha do gabinete do filho, as traficâncias radioativas do Queiroz...
O problema é que Bolsonaro agora é presidente da República. Seu comportamento diante de desvios hipoteticamente menores sinaliza o que será capaz de fazer diante de grandes escândalos. Presidente que não consegue enxergar essa obviedade costuma se deparar com uma grave incongruência: acha que é uma coisa e não se dá conta de que sua reputação é outra.
Bolsonaro imagina que chegou ao Planalto como exemplo. Falta esclarecer de quê. O capitão demora a notar. Mas a esperança que despertou na campanha presidencial é de vidro. E as pesquisas indicam que ela já trincou.
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