Veja-se o caso amazonense. Falar em queimadas numa área na qual “derrubar e queimar” foi parte de uma milenar agricultura —sem tomar contato com as obras de gente como Artur César Ferreira Reis e, principalmente, com o trabalho de Charles Wagley e de Eduardo Galvão, que estudaram a Amazônia — é um erro, já que — desde a Fordlândia e outros empreendimentos — a floresta não homogênea sempre foi vista como um obstáculo para a ambição dos que confiaram na ignorância, como um meio para domesticá-la ou destruí-la, como estamos testemunhando.
Os livros “Uma comunidade amazônica” e “Santos e visagens” — escritos, respectivamente, por Wagley e Galvão no curso de uma investigação pioneira baseada no método que os antropólogos chamam de “observação participante” — são imprescindíveis. Eles mostram como o estudioso, paradoxalmente, combina o olhar distanciado da observação com a visada íntima da participação. Algo difícil sem cometer os enganos constitutivos de toda ponderação humana, essas apreciações são sujeitas aos erros somente descobertos depois de um certo tempo. O que foi virtude numa etapa ou lugar, torna-se vício quando lido com outras lentes...
O primitivismo de assumir que os “índios” não cabem no mundo moderno porque têm muita terra e não dão lucro tornase uma prova de desumanidade diante da devastação que a cobiça como valor produz numa região que, por culpa nossa, é tão imensa quanto desconhecida. E que, ironicamente, não foi incendiada justamente porque foi habitada por povos tribais —pelos “índios”.
Com efeito, quando Wagley publicou seu livro, em 1953, sabia-se mais de melanésios, nativos do noroeste da América no Norte e de sociedades africanas do que sobre o Amazonas. Somente os latifundiários podem ser poucos com muita terra — aos índios, nativos e donos de direito dessas florestas caberia o ralo da história. Cândido Mariano da Silva Rondon, reitero, foi esquecido e lembrado por Larry Rohter, um jornalista americano que correu o risco de ser expulso do Brasil por uma reportagem que falava dos abusos etílicos de um ex-presidente da República!
Apoiado nesses livros, escrevi sobre uma noção amazônica intrigante. Um caçador ou pescador que vai além de um certo limite e tira muito do rio ou da floresta acaba ficando azarado ou “panema”. Ou seja, o sucesso exagerado leva ao infortúnio: a uma temporada na qual a atividade do intruso é marcada pelo azar.
Alfredo Augusto da Matta, meu ilustre tio-avô paterno, senador e médico pioneiro no estudo e tratamento de doenças tropicais, indexou a expressão no seu “Contribuição ao estudo do vocabulário amazonense”, publicado em 1931 em Manaus. Se fosse etnólogo, iria atinar ao conceito que liga o que a nossa onipotente pós-modernidade tecnóloga e consumista desligou: a ideia de limite na relação entre a sociedade com seus interesses e a “natureza” concebida como igualmente viva e dotada de um agenciamento capaz de vingar-se de quem caçava ou pescava mais do que seria preciso para a sua manutenção. E, além disso, não cuidando do destino final da transformação de caça e peixe em comida. Caso esses produtos fossem consumidos por invejosos, a “mãe” daqueles seres fariam com que o abusado ficasse “panema”.
É irônico que justo nessa Amazônia —na qual a tradição faz um enlace entre os seres vivos, todos merecedores de compaixão e solidariedade —, os agentes do progresso tenham optado pela devastação incontrolada, correndo o risco de ficar “panema”. Aqui, como depois aprendi com Eduardo Viveiros de Castro e seus seguidores, a humanidade engloba o que chamamos de “natureza”. Meu estudo, um exemplo modesto de análise estrutural, foi publicado na revista francesa de antropologia “L’Homme”, em 1967, graças à generosidade de Claude Lévi-Strauss e reproduzido no meu primeiro livro, “Ensaios de antropologia estrutural”.
Anotem: qualquer coisa em demasia produz “panema”. Tudo tem, como aprendi com um mestre apinajé, o seu contrário.
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