Entre as 20 categorias às quais Bolsonaro concedeu o direito de possuir e usar armas aparecemos, por sinal, até mesmo nós, jornalistas. Um curioso paradoxo, já que a nossa única arma é a da palavra escrita ou oral para contar à sociedade o que o poder tenta esconder, para denunciar os abusos dos poderosos aos fracos, para desmascarar as fake news em que os políticos costumam se esconder. Nunca vi um repórter, nem de guerra, fazer seu trabalho com uma arma no bolso. Eles são mortos desarmados.
No entanto, o presente que Bolsonaro ofereceu aos menores é uma das aberrações da sua paixão desenfreada por criar, enquanto difame a cultura e o pensamento, um mundo em que as armas sejam a bandeira e a insígnia da idiossincrasia de um país que nem se lembra de quando foi seu último conflito armado com o mundo exterior.
O decreto permite que menores de 18 anos possam ir a clubes de tiro para treinar o uso de armas letais. Menores até que idade? Até 16 anos, 14, 12, 10 anos? Ou até mesmo aquela garotinha de cinco anos a quem, durante sua campanha eleitoral, o então candidato à presidência Bolsonaro tentou, tomando-a nos braços, ensinar o gesto de disparar um revólver? Na foto, que percorreu o mundo, o futuro presidente ri feliz, enquanto a menina parece perplexa com o que estão fazendo com suas mãos.
Ao lado da foto icônica de ensinar à pequena o gesto de disparar uma arma com os dedos de suas mãos, existe no repertório gráfico do então candidato outras fotos emblemáticas, como a do hospital de São Paulo onde, vítima de um atentado que poderia ter sido fatal, tinha acabado de ser operado com sucesso. Nem naquele momento, em que celebrava o milagre de ter a vida salva, foi capaz de se despojar daquela mímica da violência, e voltou a imitar de seu leito de enfermo, desta vez com as duas mãos, o gesto de disparar um rifle (contra quem?), em vez de ter enviado à nação um abraço de paz e harmonia.
Agora, os menores de idade podem trocar as academias de ginástica, centros esportivos ou institutos de idiomas pelos clubes onde treinarão para matar. O decreto exige que o menor tenha a permissão de um dos pais. Certamente será a de seus pais, pois duvido que as mães que os engendraram com amor e dor, estejam de acordo que as mãos de seus pequenos cheirem à pólvora tão cedo.
Bolsonaro, não sei se por medo ou paixão, admitiu que não consegue dormir nem no palácio presidencial sem uma arma ao lado de sua cama. Não sei se, como tantos outros pais, ele e sua mulher praticavam algum ritual para que os filhos pequenos dormissem sem pesadelos. Minha filha, antes de dormir, gostava que lêssemos alguma fábula com um final feliz. Não posso imaginar ajudar uma criança a ter sonhos de paz acariciando-a com a coronha fria de um revólver.
Não sei que ideias Bolsonaro cultivava quando abriu as portas para que crianças possam tão cedo aprender a usar armas de morte. O Brasil não é um desses países em guerra, onde até crianças são treinadas para lutar contra os inimigos. Estamos em um país, claro, onde a violência institucional e do narcotráfico transborda, e os jovens são as mais numerosas vítimas dessa violência.
Os mortos por balas perdidas, sobretudo no inferno das periferias pobres e violentas das grandes cidades, são as crianças quando brincam na rua, saem da escola ou se refugiam nos braços dos adultos. Algumas são atingidas por aquelas balas ainda no ventre das mães. Armar crianças, introduzi-las nos ritos da morte antes mesmo de terem desfrutado da alegria de viver, em vez de protegê-las como nosso melhor futuro de paz, soa como blasfêmia e derrota de um Estado incapaz de proteger os inocentes.
É verdade que o Brasil é um dos países com as maiores taxas de violência no continente e talvez no mundo. Querer, no entanto, preparar para a guerra até mesmo suas crianças, na flor das ilusões, é aceitar que o Brasil é um país perdido para a paz, no qual até as crianças devem se preparar para um futuro sombrio de violência, como uma fatalidade.
A não ser que Bolsonaro considere os rituais de armas e violência como a alma do novo Brasil sonhado por ele. Esquece-se de que se trata de um povo cuja bandeira não inclui, como em muitos outros no mundo, a cor vermelha do sangue e da violência, e sim as cores luminosas da beleza da natureza e do amor que o marca como buscador da paz e não da guerra.
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