sábado, 9 de março de 2019

Quando a violência vira rotina, tendemos a ignorá-la

Sábado passado acordei em Nantes, na França, para participar de um festival literário. Passei a manhã fechado no meu quarto, no hotel, a trabalhar num novo romance. Saí por volta do meio-dia, para almoçar com uma das voluntárias da organização, Cristiane, uma simpática catarinense radicada em França. Após o almoço, já no regresso ao hotel, fomos surpreendidos por policiais, todos vestidos de negro, com escudos e bastões, que corriam na nossa direção. “Não se preocupe”, disse Cristiane, enquanto me arrastava ao longo de ruelas cada vez mais estreitas: “Todo o sábado tem manifestações dos coletes amarelos. Esta é a 16ª”.

Acabamos emergindo numa avenida larga, exatamente diante dos manifestantes e dos policiais. Escutei explosões e vi, a poucos metros, erguerem-se as nuvens de gás lacrimogêneo. Cristiane não prestou a menor atenção. À nossa volta havia casais se beijando e doces velhinhas passeando os cachorros. Nenhum deles se voltou para observar os confrontos. Nessa tarde participei de uma sessão de autógrafos. Ao regressar ao hotel, sozinho, voltei a deparar-me com os manifestantes, os policiais, as explosões e o gás lacrimogêneo. Entrei numa "boulangerie", comprei um croissant recém-saído do forno, e voltei a sair, esquivando-me dos policiais e dos manifestantes, com a mesma distraída elegância dos franceses legítimos.

As primeiras manifestações dos coletes amarelos na França agitaram a sociedade e mereceram cobertura internacional. Agora já só inquietam os turistas desavisados.

Habituamo-nos a tudo. Quando a violência se transforma numa rotina, tendemos a ignorá-la. Se acordar a meio da noite, em Luanda ou no Rio de Janeiro, com o pipocar de uma arma automática, viro na cama e volto a dormir. Se isso acontecer em Lisboa, contudo, já não durmo mais. Telefono aos amigos. Ligo a televisão para saber se está em curso um golpe de Estado.

É porque nos habituamos à violência — em todas as suas múltiplas formas, da pobreza à destruição do patrimônio natural, passando pelo machismo, o racismo, a estupidez de alguns políticos ou a deselegância arquitetônica — que esta se torna tão difícil de vencer.

Pensemos em Donald Trump, por exemplo. Os americanos habituaram-se aos disparates do seu presidente, tolerando nele afirmações e comportamentos que teriam ferido de morte política, e atirado para o mais remoto dos degredos, qualquer um dos seus antecessores. Conseguem imaginar George H. W. Bush ou Barack Obama a proferir uma daquelas frases inacreditáveis sobre a relação entre homens e mulheres com as quais Trump se imortalizou? Pois é, eu também não consigo.

E é este o perigo: terminarmos aceitando o inaceitável, pela força do hábito. Porque a princípio Donald Trump até era engraçado. Porque um palhaço é inofensivo. E depois, porque é o estilo dele, um tanto rude, mas direto; porque fala a linguagem do povo; porque uma vez no poder irá moderar a linguagem e rodear-se de conselheiros sábios etc...

Só há uma alternativa: a revolta. Isso, contudo, implica repensar utopias, criar redes de pensamento e de debate, ocupar as ruas. Bem sei, defender a democracia dá uma trabalheira danada. Mas, se não for agora, amanhã pode ser demasiado tarde. 

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