sábado, 23 de fevereiro de 2019

Crianças condenadas ao fogo e ao descaso

Foi cobrindo o massacre de Janaúba, que deixou 10 crianças mortas e outras dezenas de feridas, que aprendi uma lição elementar em cobertura de tragédias. Ao chegar à cidade do Norte de Minas, logo percebi que a comoção generalizada por tamanho estrago atribuía o acontecimento ao imponderável, presente no discurso das autoridades como uma fatalidade – ou aquilo que não se pode prever nem remediar. Afinal, não é todo dia que um vigia incendiário entra numa creche ateando fogo a seu corpo, a tudo e a todos que vê pela frente. Assim eu também fui condicionado a enxergar o fato, até conversar com uma das colegas da professora Heley de Abreu, que se esforçou para salvar seus alunos, mas não conseguiu escapar com vida. “Incêndio que mata crianças não é acidente.”

Seu nome é Maria José. Ela me contou que creches e escolas da cidade não tinham extintor de incêndio nem segurança na portaria. Mais tarde, nós, jornalistas que cobríamos a tragédia, apuramos que a creche incendiada também não tinha certificação do Corpo de Bombeiros, muito menos um plano de evacuação em caso de fogo. Por fim, assimilamos a advertência ao jornalismo por trás do desabafo de Maria José. “Incêndio acidental” é expressão adequada apenas para afastar responsabilidades de quem não zela pela vida dos outros, especialmente a de crianças.


Há duas semanas, me veio a lembrança de Heley, Maria José e os meninos de Janaúba diante do impacto da tragédia no Ninho do Urubu, que matou 10 garotos das categorias de base do Flamengo. No dia seguinte ao incêndio, o CEO rubro-negro, Reinaldo Belotti, se apressou em descrever o ocorrido como “acidente”, afastando a possível relação de suas causas com “multas, licenças e alvarás”. O centro de treinamento não tinha alvará de funcionamento nem certificado do Corpo de Bombeiros. A estrutura que pegou fogo não constava no projeto enviado à prefeitura para o licenciamento de edificações. Além disso, o clube já havia sido multado 31 vezes pelo poder municipal por manter o CT aberto de forma irregular.

Enquanto a perícia não determina a causa do incêndio, a diretoria encabeçada pelo presidente Rodolfo Landim prometeu assumir a responsabilidade pela reparação aos familiares das vítimas e pagar indenizações o mais rápido possível. A primeira tentativa de acordo, mediada por Ministério Público, Ministério Público do Trabalho e Defensoria Pública, fracassou. O Flamengo rejeitou a proposta da câmara de conciliação, que estipulou indenização de 2 milhões de reais para cada família e pensão de 10.000 reais mensais até 45 anos completados pelas vítimas caso estivessem vivas. Para os órgãos que tentavam costurar o acordo, os valores oferecidos pelo clube (cerca de 400.000 reais de indenização e pensão de um salário mínimo por 10 anos) “estão aquém daquilo que as instituições entendem como minimamente razoável diante da enorme perda das famílias e demais envolvidos”.

Ao prolongar a agonia partindo para propostas de acordo individuais – agora via Tribunal de Justiça – com as famílias, que, na maioria dos casos, depositavam nos pés dos garotos a esperança para sair da pobreza, o Flamengo estende por tabela o desgaste a sua imagem. Para os dirigentes do clube com orçamento de 750 milhões de reais, a vida de um garoto da base vale menos que a metade do salário mensal de um craque do time principal. Quase 15 dias depois do incêndio, eles ainda não se sentem seguros para responder perguntas da imprensa, mas decidiram comparar o clube à Boate Kiss, batendo na tecla de que as indenizações propostas são maiores que as do episódio que se arrasta pelos tribunais após 242 mortes no incêndio em Santa Maria.

O Flamengo difere bastante da Kiss, da Vale ou de qualquer empresa que prefere acionar os advogados mais caros do mercado a bancar a conta das tragédias que protagonizaram. Pelo peso de uma instituição centenária, que não tem a geração de lucro para acionistas como atividade-fim, a conduta do clube em meio ao maior revés de sua história merece um desfecho distinto das batalhas judiciais que prorrogam o sofrimento de famílias em luto. Famílias que não têm torcedores para apoiá-las depois que a comoção pública arrefece, tampouco conselheiros influentes dispostos a defendê-las com unhas e dentes. Um clube como o Flamengo, que investe 100 milhões de reais em contratações, mas se apega à minúcia dos cálculos na hora de fixar indenizações, pode fazer mais. Um clube que investia quase 20 milhões de reais na formação de atletas, mas nem assim se cercou de todas as garantias e cuidados básicos para proteger jovens talentos, tem obrigação de fazer mais pelos que choram as vidas perdidas em suas dependências.

Há alguns anos apurando casos de abuso sexual no futebol, mantenho contato com muita gente ligada ao sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes, que vem se esforçando em chamar a atenção das autoridades para o modelo aplicado por boa parte dos grandes clubes brasileiros em categorias de base, onde não raro os garotos movidos pelo sonho da bola são tratados como mercadorias. Passada a tragédia no Flamengo, o sentimento dessas pessoas é de desconsolo, impotência e apreensão. O que aconteceu no Ninho do Urubu poderia ter acontecido – ou pode se repetir – em qualquer outro CT, sobretudo em espaços geridos por equipes de realidades financeiras distantes da que o time rubro-negro ostenta atualmente.

A reboque dos desdobramentos do incêndio, Governo e prefeitura do Rio de Janeiro informaram que alojamentos de base dos outros três grandes clubes da cidade (Botafogo, Fluminense e Vasco), assim como o do Flamengo, estão pendentes de regularização. Uma varredura pelos principais centros de formação do país constata que a situação não é diferente do panorama carioca, onde autoridades se omitiram de interditar instalações autuadas por irregularidades. O descaso pelos direitos de jogadores jovens se estabelece como regra num meio que movimenta cifras milionárias e crescentes ano após ano.
Omissões aplicáveis, ainda, à CBF e suas federações, que concedem Certificado de Clube Formador às equipes filiadas, mas, tal qual Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, não fiscalizam o cumprimento de exigências para abrigar atletas. Uma espécie de autorregulamentação semelhante à das empresas de mineração que constroem barragens e, ao mesmo tempo, são encarregadas de contratar as empresas que vão atestar os parâmetros de segurança. Numa audiência pública no Congresso Nacional em 2018, o secretário-geral da CBF, Walter Feldman, admitiu que “a situação das categorias de base no Brasil é dramática”. Nem assim a confederação tomou providências para vistoriar seus clubes formadores. A presença do secretário na audiência se devia ao descumprimento de um pacto firmado pela CBF, em que a entidade se comprometia a adotar medidas para garantir a efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente nos clubes de futebol. Quatro anos depois da assinatura do documento, o Congresso resolveu cobrar a confederação. Feldman optou por se esquivar da obrigação de vistoriar instalações em categorias de base, destacando, na ocasião, que “a CBF é um exemplo de gestão para o mundo”.

No alto circuito da bola, a vida corre normalmente. O Flamengo ignorou o pedido de interdição do CT, onde apenas jogadores do time principal continuam treinando, em preparação para o segundo turno do Campeonato Carioca e a estreia na Copa Libertadores. Recebeu a solidariedade de vários clubes, inclusive do rival Vasco, que estampou uma bandeira rubro-negra em seu uniforme na semana passada. O clube de São Januário também viveu uma tragédia na base. Wendel Junior Venâncio da Silva, de 14 anos, morreu durante a realização de um teste. O Vasco não contava com médicos de prontidão e, segundo vistoria realizada nas instalações, abrigava garotos em dormitórios precários. Até hoje a família de Wendel briga na Justiça para receber indenização.

O incêndio no Flamengo fez mais vítimas. Seria um gesto de mínima grandeza acatar o acordo proposto pela câmara de conciliação, que, mesmo se fosse pago à vista, não comprometeria nem 10% do orçamento anual do clube. Além da sinalização de boa vontade e envolvimento, pouparia os familiares do martírio vivido pelos pais de Wendel na longa contenda com o rival. Pela discrepância de valores, MP e Defensoria Pública solicitaram o bloqueio de 57 milhões de reais nas contas rubro-negras, destacando que “a omissão do clube, aliada ao grave acidente ocorrido, demonstra um desrespeito reiterado às determinações de interdição das referidas instalações”. Torcedores que, neste momento, entendem que a razão deve se sobrepor à paixão certamente esperam uma resolução menos traumática em nome de Arthur Vinicius, Áthila Paixão, Bernardo Pisetta, Christian Esmerio, Gedson Santos, Jorge Eduardo, Pablo Henrique, Rykelmo Viana, Samuel Thomas e Vitor Isaías, seus garotos do Ninho.

Para honrar a memória dos meninos, o futebol brasileiro precisa de um pacto – que não seja esquecido pelo caminho – entre clubes, federações e órgãos públicos por um acolhimento mais humanizado a crianças e adolescentes em categorias de base. A lição não aprendida pelo Rio de Janeiro pode servir como baliza para estabelecer medidas de proteção em todo o país. Em menos de cinco meses, a cidade viu arder em chamas dois patrimônios de valores inestimáveis: o maior acervo de história natural da América Latina e o sonho de meninos que almejavam se tornar ídolos do clube mais popular do Brasil. Acidente, fatalidade, incidente, contratempo, imprevisto... Sobram eufemismos para atenuar tragédias evitáveis, faltam rostos sensíveis para assumir responsabilidades. Os incêndios que devastaram a creche em Janaúba, o Museu Nacional e os garotos do Ninho são retratos de uma nação que queima o passado com a mesma passividade que destrói suas perspectivas de futuro.

Breiller Pires

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