Crônica do autoritarismo anunciado
O geógrafo David Harvey, o sociólogo Wolfgang Streeck e o jornalista Raúl Zibechi, entre outros, têm escrito, com maestria, sobre a intensificação do controle militarizado e da democracia totalitária, que, mundo afora, já estamos vivendo há algum tempo. É a marca registrada do capitalismo contemporâneo. No Brasil, território periférico dessas tramas, essa realidade é lamentavelmente mais aguda. Podemos fixar, simbolicamente, nas penumbras do tempo, um termo inicial para a aceleração da repressão consentida que caracteriza o período que estamos atravessando: 18 de outubro de 1985. Naquela data, consolidou-se, como dizia Francisco Weffort, a “transição pactuada” do regime autocrático de 1964 para a Nova República. Estabeleceu-se uma concertação conservadora, segundo a qual as Forças Armadas recuariam de seu protagonismo e passariam a assumir o papel de tutela das instituições ditas democráticas, como garantidoras da lei e da ordem interna. As elites acreditavam, com reservas, na convivência entre o regime democrático e a economia de mercado. Daí a necessidade de medidas cautelares a conferir, em última instância, aos militares um poder moderador.
Precisamente naquele dia, sob os auspícios de Ulysses Guimarães, uma comissão mista do Congresso Nacional derrotou o substitutivo do deputado Flávio Bierrenbach (PMDB-SP) à proposta de emenda constitucional oferecida pelo então presidente José Sarney, pela qual a legislatura ordinária que seria instalada em 1987 estaria investida de poderes constituintes. Deputados e senadores que viessem a ser eleitos em novembro de 1986, aos quais se somariam os membros do Senado Federal já sufragados em 1982, reunidos em Assembleia unicameral e pelo voto da maioria absoluta desse colegiado, elaborariam um novo texto constitucional para o país. Bierrenbach foi derrotado ao propor, antes disso, a convocação de um plebiscito a fim de que o povo, soberanamente, decidisse se queria uma Assembleia Constituinte exclusiva – que se dissolveria após concluir seus trabalhos – ou se conferiria poderes constituintes ao futuro Congresso Nacional ordinário. Com isso, tivemos um arremedo de Constituinte “soberana”, cujos trabalhos teriam culminado na promulgação de uma Constituição “dogmática”, como, via de regra, exaltam os mais corriqueiros manuais de direito constitucional. Só para lembrar: os “constituintes” de 1986 foram eleitos sem praticamente tocar no tema da nova Constituição durante a propaganda eleitoral. O que importava era elogiar o Plano Cruzado de Sarney – que, aliás, foi revogado logo após passadas as eleições –, e não a Constituição que deveriam escrever.
Bierrenbach ousou desafiar a máxima de Lampedusa: “É preciso mudar para que tudo continue como está”. Foi trucidado. Excelente parlamentar, não conseguiu reeleger-se. Por ironia do destino, foi nomeado, em 1999, por FHC, ministro do Superior Tribunal Militar. Hoje, dedica-se a pregar a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte livre, soberana e democrática.
O tempo lhe deu razão.
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