Os fatos vistos no atacado têm feição mais clara: na grande fotografia da política nacional, pode-se dizer que o sistema ruiu: os partidos se desintegram à luz do dia, a liderança escafedeu-se na confusão e na grande divergência; a modernidade líquida fez, por aqui, um tremendo pântano de descrédito. As pesquisas e abordagens estatísticas demonstram isto: no quesito confiança nos políticos — num ranking de 137 países, organizado pelo Fórum Econômico Mundial — o Brasil ocupa exatamente o último lugar.
No Barômetro Político, do Instituto Ipsos, a desaprovação aos políticos brasileiros é estratosférica. A rigor, ninguém se salva: mesmo quem não é formalmente político e caiu nas graças da galera, como o juiz Sérgio Moro, tem índices elevadíssimos de desaprovação (45%); novidades de ontem, como o prefeito de São Paulo, João Doria, tampouco, ficam para trás (58%). Jair Bolsonaro, Geraldo Alckmin e o recordista Michel Temer, ninguém expressa confiança e passa pelo crivo da maioria. O governo Temer, aliás, pelo Ibope/CNI, é aprovado por rastejantes 3% dos pesquisados.
Claro que os dados colhidos por abordagens desse tipo partem de observações subjetivas, mas, concretamente, há razões mais que justificadas para estes resultados. A promessa da Política — entregar ao cidadão segurança, justiça e bem-estar — não se realiza; há medo no presente e insegurança quanto ao futuro. A frustração é evidente.
Neste momento, o analista precisa sair do atacado, voltar ao varejo: Lula é de fato um fenômeno político e social e, na verdade, deve ser entendido como um caso particular. Mas, está aquém da condição de ''acima do bem e do mal'' que seus apóstolos proclamam. Sua situação emana menos de si próprio do que da parcela do eleitorado que realmente se seduz pelos símbolos que em Lula se encerram — trata-se de uma parcela significativa, grande; evidentemente, considerável. Mas, pelo menos por enquanto, ainda bem distante de formar a maioria da sociedade.
De um modo amplo e bastante generoso, pode-se dizer que Lula tem o apoio de 1/3 do eleitorado. Quem o aprova o faz quase por veneração — alguns com motivos justificados para isso, dadas as políticas sociais de seus mandatos; outros, pelas condições e interesses corporativos que Lula e o PT de algum modo encarnam. E uns outros por considerações ideológicas que, numa sociedade democrática, também são legítimas. No mundo, tudo tem razão de ser.
O fato é que quem o aprova, o adora — há muito tempo. É um eleitorado tradicional de Lula e do PT, que existia desde antes da experiência dos governos petistas. Contudo, quem o desaprova, por outro lado, hoje é maioria. À parte daqueles que o detestam com todas suas forças — o que deve ser algo em torno de um terço também; há uma grande parcela do eleitorado que simplesmente deixou de confiar e não gostaria de repetir a experiência petista, mostram as pesquisas. Voltamos à teoria dos três terços, que Duda Mendonça — o marqueteiro da primeira vitória — explicava em 2002: o desafio era conquistar um terço dos indiferentes a Lula.
Acontece que esses casos intermediários — nem adora, nem detesta — parecem ser hoje pouco expressivos; o Lula de 2017 desperta quase tudo que um fenômeno político-emocional é capaz de despertar: amor e ódio, menos indiferença. Na história política nacional, é pouco provável que tenha havido personagem capaz de fazer aflorar no eleitor sentimentos tão fortes e contraditórios assim — talvez nem mesmo Getúlio Vargas.
Isto, no entanto, se traduz como uma grande questão para a democracia brasileira, nestes tempos difíceis: a emoção desmedida tende a recusar fatos objetivos e dados de realidade; tende a contestar decisões formais das instituições; tende a incentivar conflitos, agudizar as disputas políticas e dramatizar as eleições.
Um exemplo: parte expressiva de seus apoiadores ficará muito, mas muito, contrariada caso o ex-presidente seja impedido pela justiça de disputar a eleição do ano que vem. Todavia, sua presença no pleito também tende a instigar, e muito, parcela da sociedade que o rejeita. Em outras palavras: a eventual condenação de Lula teria evidentes implicações políticas; mas sua absolvição tampouco seria assimilada com naturalidade.
É interessante ouvir os dois lados afirmarem que o ''outro'' terá que se submeter a uma decisão contrária quando ele mesmo não admite faze-lo se a decisão for em seu dissabor. Acima da figura, do ex-presidente, o que poderá ser colocado à prova será a credibilidade da Justiça e sua aceitação por esses setores da sociedade. A eventual prisão (ou não) de Lula não teria o mesmo significado que o impeachment de Dilma e, talvez, nem o mesmo tipo de reação.
Exatamente por isso, a atual presidente do PT, Gleisi Hoffmann, chegou a afirmar que os petistas deveriam boicotar a eleição, denunciando o que chamam de ''consumação do golpe'', caso Lula não esteja na cédula eleitoral, impedido pela Justiça. Gleisi, é claro, causou mal-estar até em parlamentares da legenda que pretendem disputar novos mandatos à parte de qualquer coisa e acima de tudo. Mas, sua manifestação encontra eco na militância e em boa parte da população que aprova o ex-presidente.
É pouco provável que manifestações como a carta recentemente publicada por Antônio Palocci venha a alterar significativamente este quadro. A manifestação do ex-ministro de Lula e Dilma é sumariamente desqualificada pela militância — delação boa, já disse aqui, é só a que arde no circulo íntimo do adversário. Mas, tampouco, um hipotético desmentido de Palocci alteraria a convicção dos que já condenaram Lula. Não há deus ou diabo que resolva essa desinteligência. As posições são irredutíveis e estancou as possibilidades de diálogo. É evidente que um ambiente assim não é nada saudável; pode, aliás, ser até bastante perigoso.
Carlos Melo
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