Petistas não cessam de apontar o risco de autoritarismo associado à candidatura do hoje principal rival de Lula nas pesquisas, o deputado Jair Bolsonaro, um apologista da tortura e da ditadura militar. É um risco real. Poucos, contudo, têm prestado atenção ao risco de ruptura democrática derivada do próprio PT. “As inovações políticas do Brasil republicano parecem mais governadas pelas rupturas inesperadas ou inevitáveis do que por decisões efetivamente políticas e democráticas”, escreve o sociólogo José de Souza Martins num dos artigos da coletânea Do PT das lutas sociais ao PT do poder, lançada no início do ano passado. Sem abandonar sua visão de esquerda, Martins decifra a alma petista e condena a transformação do partido no governo. “O PT é um partido monolítico e em certo sentido autoritário. Ele não convive com o dissenso nem pode fazê-lo”, diz Martins. Para manter o poder, adotou as práticas corruptas e patrimonialistas que condenava. “Tudo que o PT faz passou a ter justificativa, mesmo as coisas mais injustificáveis. O que era feio no adversário passou a ser bonito no PT.” Martins destaca a ambiguidade essencial ao projeto petista de poder: a oposição entre legitimidade e legalidade. “Militantes julgaram lícito o ilegal, em nome do que consideravam legítimo, o poder a ser conquistado e mantido”, escreve. “Enveredaram pelo caminho do que, à luz da lei, é corrupção, supondo que não o seria se em nome da legitimidade da revolução, na conquista da equivocada eternidade do poder.”
O livro termina antes do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, que petistas classificaram como “golpe”. Em artigo posterior, Martins condenou o uso desse tipo de rótulo para negar a legitimidade do impeachment. “Há uma mentalidade ditatorial subjacente a palavras de ordem desse tipo”, escreveu. A própria Dilma compareceu a seu julgamento no Senado, num ato que contradizia suas palavras. De que serviria qualificar de “golpe” um processo constitucional referendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que o PT sempre defendeu contra seus adversários, e lançar sobre eles a pecha de “golpistas”? Não seria a estratégia natural para quem quer encetar algum tipo de “contragolpe”?
A “mentalidade absolutista e arcaica” que Martins diagnostica no PT está presente no apoio à ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela e em afagos recorrentes, em nome de uma hipotética solidariedade à esquerda continental, a regimes de exceção, como os de Raúl Castro em Cuba ou dos sandinistas na Nicarágua. Verdade que, aqui no Brasil, o PT sempre disputou o poder dentro das regras da democracia, e as alas autoritárias e radicais do partido sempre saíram derrotadas. Mas isso acontecia num tempo em que Lula tinha a certeza de ser maior que o PT. Os escândalos de corrupção o tornam mais dependente do partido, de um discurso mais radical e de uma relação direta com o povo. O quadro de tensão institucional e polarização abre uma brecha ideológica para justificar atos de ruptura como os que Maduro pratica na Venezuela. Lula preso ou apenas condenado, ausente ou presente na cédula eleitoral, é a vítima ideal para mobilizar movimentos de massa. “Somos uma nação tardia em relação aos parâmetros da democracia, aos valores republicanos e à própria concepção de povo como sujeito de direitos políticos e de soberania”, diz Martins. “Não é, portanto, surpresa que o povo brasileiro seja tão acentuadamente desajeitado no fruir dos direitos decorrentes dessa modernidade política cambaleante, incerta, insegura, manipulável.” O autoritarismo não está menos presente numa organização disciplinada e monolítica como o PT do que nas bravatas de Bolsonaro.
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