Se estivesse em órbita, no passado dia doze, Kornienko poderia ter visto um gigantesco iceberg, com um trilhão de toneladas e 5.800 quilômetros quadrados, se desprendendo da Antártida. O cataclismo em curso foi noticiado por jornais do mundo inteiro, mas não parece ter inquietado muita gente. No Brasil, há mais pessoas assustadas com a possibilidade de serem assaltadas, ao anoitecer, enquanto regressam a casa; em Portugal, a eventualidade de novos incêndios nos eucaliptais certamente apavora mais gente; nos Estados Unidos, haverá quem se inquiete com a febre dos estudantes que entram atirando nas respectivas salas de aula, enquanto na Suécia a preocupação maior é com o assédio sexual nos shows de rock. Serão preocupações legítimas, não pretendo diminuir nenhuma delas, mas o que se passou a semana passada na Antártida deveria sobrepor-se a todas.
Ainda estão por avaliar as consequências imediatas e a médio prazo — para o clima, para a vida e para as atividades humanas — da diluição do imenso bloco de gelo no oceano. Mais importante, contudo, é o que esse desastre significa, ao demonstrar, de forma dramática, as consequências imediatas do aquecimento global.
Na fase em que estamos, negar o aquecimento global, insistindo em políticas energéticas que favorecem, no imediato, meia dúzia de grandes indústrias e corporações, mas que, a médio prazo, trarão terríveis consequências ambientais, deveria ser considerado um crime contra a humanidade.
O presidente norte-americano, Donald Trump, arrisca-se a enfrentar, nas próximas semanas, acusações de traição à pátria, devido a eventuais ligações que terá estabelecido, no decurso da campanha eleitoral, ao regime russo. Parece-me uma acusação menor, até irrelevante, em comparação com aquela que lhe deveria ser imputada se houvesse justiça no mundo: a de traidor da humanidade. A de traidor da vida.
Infelizmente, não seria o único líder mundial a ter de se sentar no banco dos réus. O (ainda) presidente Michel Temer, por exemplo, teria de responder pelas recentes cedências aos interesses da bancada ruralista, favorecendo a grilagem de terras e enfraquecendo as instituições governamentais ligadas à proteção do meio ambiente e dos povos indígenas.
Flutuando a 350 quilômetros da superfície terrestre, Mikhail Kornienko testemunhou com infinita tristeza a destruição da Amazônia e o desaparecimento dos gelos, ainda há poucos anos considerados eternos, no pico do grande e sagrado Kilimanjaro. Não terá sido por acaso que Kornienko se referiu aos dois eventos na mesma frase: afinal de contas, um decorre do outro.
A vida inteira escutei frases como, “é preciso proteger a Terra hoje, como herança para os nossos filhos”. Há trinta anos, enquanto estudava silvicultura em Lisboa, participei em diversos encontros e manifestações de movimentos ecologistas, em várias cidades do mundo, alertando para o aquecimento global e as suas consequências. A maioria das pessoas não nos levava a sério. Algumas até concordavam conosco, mas achavam esse perigo tão remoto que lhes parecia um combate algo fútil — como lembrar que precisamos proteger as abelhas para que a humanidade sobreviva (a frase é de Einstein).
O rápido desmoronamento da Antártida, que acontece diante do olhar estupidamente apático da maior parte de nós, mostra-nos que não se trata apenas de assegurar um mundo intacto para os nossos filhos: trata-se de assegurar a nossa própria sobrevivência e a integridade da civilização em que nos movemos.
Kornienko defendeu, no mesmo encontro, em Coimbra, a colonização de Marte. Porém, ao contrário de Stephen Hawking, que vê a colonização humana de outros planetas como uma alternativa à inevitável degradação do nosso, o astronauta russo entende que não devemos nunca deixar de olhar e proteger a Terra. Ainda assim, não concordo com ele. Antes de pensarmos em colonizar Marte, deveríamos investir toda a nossa inteligência na tarefa de manter viável a colonização da Terra.
O mundo começa na Antártida. O fim do mundo também.
José Eduardo Agualusa
Ainda estão por avaliar as consequências imediatas e a médio prazo — para o clima, para a vida e para as atividades humanas — da diluição do imenso bloco de gelo no oceano. Mais importante, contudo, é o que esse desastre significa, ao demonstrar, de forma dramática, as consequências imediatas do aquecimento global.
Na fase em que estamos, negar o aquecimento global, insistindo em políticas energéticas que favorecem, no imediato, meia dúzia de grandes indústrias e corporações, mas que, a médio prazo, trarão terríveis consequências ambientais, deveria ser considerado um crime contra a humanidade.
O presidente norte-americano, Donald Trump, arrisca-se a enfrentar, nas próximas semanas, acusações de traição à pátria, devido a eventuais ligações que terá estabelecido, no decurso da campanha eleitoral, ao regime russo. Parece-me uma acusação menor, até irrelevante, em comparação com aquela que lhe deveria ser imputada se houvesse justiça no mundo: a de traidor da humanidade. A de traidor da vida.
Infelizmente, não seria o único líder mundial a ter de se sentar no banco dos réus. O (ainda) presidente Michel Temer, por exemplo, teria de responder pelas recentes cedências aos interesses da bancada ruralista, favorecendo a grilagem de terras e enfraquecendo as instituições governamentais ligadas à proteção do meio ambiente e dos povos indígenas.
Flutuando a 350 quilômetros da superfície terrestre, Mikhail Kornienko testemunhou com infinita tristeza a destruição da Amazônia e o desaparecimento dos gelos, ainda há poucos anos considerados eternos, no pico do grande e sagrado Kilimanjaro. Não terá sido por acaso que Kornienko se referiu aos dois eventos na mesma frase: afinal de contas, um decorre do outro.
A vida inteira escutei frases como, “é preciso proteger a Terra hoje, como herança para os nossos filhos”. Há trinta anos, enquanto estudava silvicultura em Lisboa, participei em diversos encontros e manifestações de movimentos ecologistas, em várias cidades do mundo, alertando para o aquecimento global e as suas consequências. A maioria das pessoas não nos levava a sério. Algumas até concordavam conosco, mas achavam esse perigo tão remoto que lhes parecia um combate algo fútil — como lembrar que precisamos proteger as abelhas para que a humanidade sobreviva (a frase é de Einstein).
O rápido desmoronamento da Antártida, que acontece diante do olhar estupidamente apático da maior parte de nós, mostra-nos que não se trata apenas de assegurar um mundo intacto para os nossos filhos: trata-se de assegurar a nossa própria sobrevivência e a integridade da civilização em que nos movemos.
Kornienko defendeu, no mesmo encontro, em Coimbra, a colonização de Marte. Porém, ao contrário de Stephen Hawking, que vê a colonização humana de outros planetas como uma alternativa à inevitável degradação do nosso, o astronauta russo entende que não devemos nunca deixar de olhar e proteger a Terra. Ainda assim, não concordo com ele. Antes de pensarmos em colonizar Marte, deveríamos investir toda a nossa inteligência na tarefa de manter viável a colonização da Terra.
O mundo começa na Antártida. O fim do mundo também.
José Eduardo Agualusa
Nenhum comentário:
Postar um comentário