segunda-feira, 19 de junho de 2017

Aulas em meio à guerra no Rio: 'Ele se jogou sobre as crianças para protegê-las'

De sua carteira, Renan, de 13 anos, não consegue enumerar mais de três países sem travar – “Brasil, humm... Argentina, México, ah...” –, mas diz de cabeça nove tipos de armas: “Snipe, AK-47, 7.65, AR-15, Bazuca, calibre .50, calibre 12, Glock, giratória...”. Na classe ao lado, Guilherme, de 14 anos, também é capaz de imitar o som dos tiros: a rajada espaçada do AK-47, o eco seco da pistola e o estrondo de um lança-granadas. “É o que escutamos todos os dias”, justificam. Os dois, garotos negros e pobres, são alunos de uma escola municipal do Rio de Janeiro encravada em um complexo de favelas dividido por um rio fétido, uma linha de trem e a guerra entre três facções de traficantes, a apenas 36 quilômetros do Cristo Redentor.

Dezenas de milhares de crianças no Rio estudam em colégios de áreas de conflito, dominadas pelos traficantes e submetidas às frequentes incursões da polícia. São bairros em guerra. Os tiroteios são quase diários, mortos, balas perdidas e os garotos crescem aprendendo protocolos para sobreviver em casa, mas também nas aulas. A crise econômica pela qual atravessa o Rio aumentou todos os índices de violência, a polícia sofre com falta de recursos e o tráfico de drogas intensificou suas atividades criminosas e suas disputas: a escola já não é um lugar seguro. Nos primeiros 82 dias letivos de 2017, só houve sete dias de paz em que nenhum dos mais de 1.500 colégios municipais precisou fechar suas portas, foram quase 120.000 crianças sem aulas, segundo a secretaria municipal de Educação.

Quando o fogo cruzado surpreende as crianças na sala de aula os professores já sabem o que fazer. Todos correm aos corredores e deitam no chão esperando o silêncio voltar. Foi o que aconteceu em 31 de março na escola de Renan e Guilherme quando a polícia entrou na rua do colégio em pleno horário escolar. Dois traficantes foram atingidos e depois executados diante do muro da escola e Maria Eduarda, de 13 anos, que estava na aula de educação física no pátio, não teve tempo de se esconder. Vários tiros de fuzil a atingiram enquanto bebia água e pelo menos um deles saiu da arma de um policial. O muro do colégio, com mais de 20 perfurações de fuzil, era a imagem da barbárie.

“Morreu na frente de todo mundo. Tinha acabado de dizer o quanto nos amava. É desumano”, lamenta Fábio, de 15 anos, amigo de Maria Eduarda. O professor de educação física, “um negão enorme”, como todos os colegas o descrevem, está de licença desde então. “Naquele dia ele se jogou por cima de um monte de crianças para protegê-las das balas. Ainda não consegue entrar na escola sem chorar”, conta o diretor, Luiz Menezes, que ainda parece estar em estado de choque.


Após quase um mês sem aulas, dedicado ao cuidado psicológico de alunos e professores e atividades lúdicas para aliviar o trauma, a escola voltou à rotina. Tem pela frente o desafio de recuperar o conteúdo atrasado, mas também apagar as marcas da tragédia. O muro já não é branco e os sinais da perícia policial que circulou com uma caneta marca-texto cada impacto de tiro foram substituídos por um mural de um céu azul em que voam pássaros e peixes coloridos feitos com pneus. Plantas crescem, pintaram a palavra "paz" em letras grandes e coloridas e um eletrocardiograma com 23 corações intercalados percorre a extensão da parede. Um para cada bala. “Foi nossa forma de recomeçar, tentando apagar as marcas da violência, que nunca pensamos que chegaria aqui dentro. Todos pensávamos que, apesar de tudo, esse era um lugar seguro”, diz Menezes.

Virar a página não está sendo tão fácil, pois nada mudou. Ao se dobrar a esquina continua no mesmo lugar um ponto de venda de drogas protegido por adolescentes com fuzis nos ombros e os arredores da escola continuam sendo o lugar ideal para que os criminosos retirem a carga dos caminhões roubados, uma de suas atividades mais lucrativas, intensificada com a crise, e que age como um imã para as operações policiais. Se perguntarmos em uma das salas de aula quantos já perderam um parente por culpa da violência, 17 de 22 alunos levantarão as mãos. “O maior impacto dessa violência é que os alunos ficam tão próximos dela que não veem que há alternativa, não cultivam expectativas”, opina o professor de História, Leonardo Bruno da Silva.

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