O asfixiamento da Fundação Nacional do Índio (Funai) pode ser o prenúncio de uma verdadeira calamidade para os povos indígenas e suas terras, que há tanto resistem ao assédio e à voracidade dos brancos.
A “crise” na Funai - entre aspas, porque não fortuita - está impondo a suspensão das atividades de 5 das 19 bases de proteção do órgão a povos indígenas isolados e de recente contato. Os cortes, sob um verniz político-administrativo, expressam a velha política do Estado brasileiro de extermínio, de forma direta ou por omissão, dos povos indígenas.
Como nas regiões do rio Envira (AC) e do Vale do Javari (AM), a região do médio rio Purus, no sul do Amazonas, sofre igualmente os efeitos dos cortes e do não repasse dos recursos em âmbito local. Sem quaisquer condições logísticas e operacionais, a Base de Proteção (Bape) Piranha foi fechada na última leva de cortes enquanto as bases Canuaru e Suruwaha operam de forma precária e estão ameaçadas de ter o mesmo destino nos próximos dias, colocando em risco a sobrevivência dos povos isolados e de recente contato da região.
Até poucos anos atrás, a região da base Piranha, que protegia o território dos isolados Himerimã, era intensamente invadida e explorada por não indígenas. A presença dos brancos gerou inúmeros conflitos nos quais estima-se que parte considerável dos indígenas tenha sido assassinada e os sobreviventes, em virtude da violência do contato, tenham se refugiado no isolamento. A ameaça de invasão também permanece na região do Canuaru, território compartilhado entre os Himerimã e seus vizinhos Jamamadi. Além da destruição causada pela caça, pesca e extração ilegal de madeira, os invasores trazem consigo a ameaça de epidemias que, como ocorreu diversas vezes ao longo da história, dizimaram povos inteiros.
Já na base que protege o território suruwaha, povo de recente contato, a situação é particularmente delicada, pois, ao impedir o ingresso não autorizado na terra, a base garante a segurança para que os Suruwaha voltem a utilizar áreas de ocupação tradicional antes evitadas por medo dos brancos e suas doenças. A pesca, a caça e a extração de materiais somente disponíveis nessa parte do território tornaram-se, desde então, corriqueiras, de modo que sem a presença da Funai para coibir a entrada dos invasores, os Suruwaha acabam expostos à iminência de encontros catastróficos.
Cabe ressaltar que a região é alvo, há muitos anos, de intenso assédio de missões evangélicas, algumas condenadas pela Justiça a se retirarem das áreas indígenas por prática de proselitismo religioso.
O fechamento das bases, além de colocar em risco a existência física desses povos, torna-os ainda mais vulneráveis àqueles que desrespeitam sua recusa voluntária de se relacionar com a sociedade nacional e tentam incansavelmente impor-lhes outro modo de vida.
Também estão sendo abandonados os servidores do órgão, incluindo os que atuam na CR (Coordenação Regional) e CTLs (Coordenações Técnicas Locais) que, à revelia das ameaças políticas, têm se dedicado a proteger as terras e manter as políticas de atenção aos indígenas mesmo em condições adversas. Basta o exemplo dos coordenadores das Frentes de Proteção Etnoambiental do Madeira-Purus e Uru-eu-wau-wau, que, sem outra alternativa, deixaram os escritórios regionais e fizeram das bases ameaçadas de fechamento suas casas.
A desinformação generalizada sobre a existência de povos que, por conhecerem os brancos e o mundo que os cerca, rejeitam autonomamente o contato conosco, contribuem igualmente para a marcha de seu genocídio silencioso. Hoje a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) ostenta o menor orçamento da Funai e já não tem condições de manter as ações técnicas especializadas que sustentam a metodologia de proteção aos povos indígenas, fundamentada na premissa do não contato, por meio da vigilância e fiscalização de seus territórios.
Curiosamente, esta coordenação, junto com aquela responsável pela proteção territorial e licenciamento ambiental (vinculadas à Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável), foram duramente afetadas pelos cortes, possivelmente para agilizar a liberação de empreendimentos do agronegócio e das mineradoras, petroleiras e empreiteiras nas terras indígenas e para estancar de vez a conclusão dos processos de demarcação.
Oxalá os povos indígenas, reunidos em Brasília, na semana anterior, no maior Acampamento Terra Livre da história para lutar contra os ataques a seus direitos, possam evitar que tais golpes sejam fatais.
Karen Shiratori, doutora em Antropologia Social no Museu Nacional/UFRJ.
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