Se havia um lugar do país onde a perspectiva de racionar água parecia irreal há alguns anos, esse lugar era Brasília. A capital do país está sentada no divisor de águas das bacias do Paraná, do Tocantins e do São Francisco. E temos um parque nacional criado de forma presciente para proteger nosso segundo maior reservatório, a barragem de Santa Maria (que está com 41% do volume).
Para mim, que escrevo sobre mudanças climáticas há mais tempo do que seria saudável, o racionamento e outros eventos recentes marcam uma alteração de pronome. Sai o “eles” solidário, mas condescendente, com que tenho tratado até aqui as vítimas do clima, e entra o “nós”. O aquecimento global bateu à minha porta. E não está sendo nada divertido.
É nítido para qualquer brasiliense, em especial os que passaram muito tempo fora e voltaram, que algo mudou por aqui. Para nossa infelicidade, a ciência corrobora essa impressão. Você não consegue mais dormir à noite sem ventilador? Pois saiba que o número de noites quentes no DF – nas quais a mínima da madrugada é superior a 20oC – decuplicou em 2000-2010 em relação a 1962-1970, segundo dados compilados pelo meteorologista Francisco de Assis Diniz, do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia).
Torrou na primavera nos últimos anos? Pois extremos de temperatura também estão mais frequentes: Brasília bateu seis recordes históricos de calor nos últimos nove anos – dois deles em apenas uma semana, no bizarro outubro de 2015. (Muito a propósito, a primeira quinzena de janeiro de 2017 registrou temperaturas máximas quase 4oC superiores à média.)
Aprendeu na escola que Brasília tem a tal “amplitude térmica de deserto”? Reveja: a diferença entre a mínima e a máxima no inverno caiu 2,1oC e, no verão, 2,25oC.
Informações sobre mudança do clima na cidade são escassas. O único trabalho completo já publicado foi feito pela meteorologista paraibana Morgana Viturino de Almeida, também do Inmet, em 2012. Algumas de suas conclusões principais estão num relatório que a Sema (Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos) do GDF produziu em dezembro, que será publicado nos próximos dias na página da secretaria na internet.
“A população ainda não consegue fazer a ligação entre os extremos, as enxurradas como a que atingiu Samambaia [cidade-satélite, no fim do ano passado], ondas de calor ou a situação de água que temos agora e a mudança do clima”, diz Leila Soraya Menezes, chefe da Unidade Estratégica de Clima da Sema e coautora do relatório. “As políticas públicas são baseadas ainda em séries históricas, só que as médias históricas não significam muita coisa mais na atual realidade do clima.”
Em seu trabalho, Morgana de Almeida analisou 26 parâmetros climatológicos em todo o Centro-Oeste. O que ela viu foi uma tendência semelhante em quase todas elas: noites mais quentes, maior número de dias secos consecutivos, maior frequência de ondas de calor. Na capital, as temperaturas mínimas médias subiram 1,85oC e as mínimas mínimas, ou seja, as menores temperaturas do ano, subiram 2,6oC desde 1961. O número de dias com umidade do ar abaixo de 30% cresceu 50%, e o número de períodos com baixa umidade quase dobrou. Em 2010 havia 48 dias a mais no ano com temperaturas máximas acima de 25oC do que em 1961.
Curiosamente, as máximas temperaturas máximas cresceram bem menos – 0,85oC no período. E as máximas médias tiveram uma diminuição, embora esta não seja estatisticamente significante.
Tampouco é possível ver mudanças expressivas na quantidade total de chuvas no DF até 2010. Não há informação sobre violência das chuvas, mas elas têm feito mais estragos – por consequência da urbanização. No entanto, em novembro de 2014, a capital registrou seu primeiro tornado.
Almeida pede cautela na interpretação dos dados, dizendo não ser possível separar o efeito da mudança climática do da ilha de calor urbana – o mais provável é que haja sinergia entre ambos. Outros lugares do Centro-Oeste que observaram tendência semelhante à de Brasília passaram por desmatamento nas últimas décadas, o que pode ter influenciado os índices. Mas o fato permanece que o sinal de aquecimento e aumento de dias com baixa umidade relativa do ar é nítido em toda a região.
E esta é só a primeira gongada: vem muito mais por aí.
O relatório da Sema também traz projeções regionais de temperatura e precipitação para o DF, feitas pelo grupo de Sin Chan Chou, do Inpe. O estudo considera dois modelos climáticos, um mais “seco” e um mais “úmido”, e dois cenários de emissões de CO2, um moderado e um alto. A depender co cenário, o aquecimento adicional no DF entre 2011 e 2040 vai de 1oC a 3oC. No fim do século, pode chegar a 6o C. Já a precipitação, que hoje não aparece com um sinal claro nas observações, ganha um imenso viés de baixa em todos os cenários, em especial de dezembro a fevereiro, auge da chuva. A anomalia que fez o DF escorregar na crise hídrica pode ser, portanto, um aperitivo das próximas décadas.
Como disse de maneira célebre o climatologista americano John Holdren, só há três coisas a fazer a respeito da mudança climática: mitigar, adaptar e sofrer. O GDF parece pelo menos disposto a discutir as duas primeiras. No ano passado, iniciou a discussão para a criação de um fórum de mudanças climáticas distrital, a ser lançado em julho.
Na população, quem pode vai se adaptando. Eu comprei um aparelho de ar-condicionado logo após a onda de calor de 2015 e instalei telas mosqueteiras em todas as janelas (afinal, com o calor vêm os mosquitos, que também estão mais numerosos).
O problema é como fica a maior parte dos moradores do DF e entorno, que tem menos recursos para se adaptar. A essas pessoas parece estar reservada uma fatia desproporcional do sofrimento.
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