quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O direito ao delírio

Que tal se começássemos a pensar no nunca proclamado direito de sonhar? Que tal se delirássemos um pouquinho? Vamos definir nossa visão para além das abominações de hoje para adivinhar outro mundo possível:

– O ar estará limpo de todos os venenos que decorram dos medos e das paixões humanas;

– Nas ruas, os carros serão esmagados pelos cães;

– As pessoas não serão conduzidas por um automóvel, ou programadas por um computador, ou compradas pelo supermercado, nem vistas pela televisão;

– A televisão deixará de ser o membro mais importante da família e será tratada como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupa;

– As pessoas trabalharão para viver em lugar de viverem para trabalhar;

– Será incorporado no código penal o crime de estupidez para aqueles que vivem somente para ter ou para ganhar, em vez de viver, simplesmente, por viver como canta o pássaro sem saber que canta e brinca uma criança sem saber que brinca;

– Em nenhum país serão presos os meninos que se recusarem a cumprir o serviço militar, senão os que querem cumpri-lo;

– Os economistas não chamarão padrão de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas;

– Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas gostem de ser fervidas vivas;

– Os historiadores não acreditarão que os países gostem de ser invadidos;

– Os políticos não acreditarão que os pobres gostem de comer promessas;




– A falsidade deixará de ser uma virtude e ninguém levará a sério alguém que seja capaz de enganar uma pessoa;

– A morte e o dinheiro perderão seus poderes mágicos, e nem o falecimento e nem a fortuna converterá um desonesto em um virtuoso;

– Ninguém será considerado um herói ou um tolo por fazer o que ele acredita que é certo em vez de fazer o que lhe é mais conveniente;

– O mundo já não estará mais em guerra com os pobres, mas com a pobreza, e a indústria militar não terá escolha a não ser a de declarar-se em falência;

– A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos;

– Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão;

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– As crianças de rua não serão tratadas como lixo, porque não haverá meninos de rua;

– As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá meninos ricos;

– A educação não será privilégio daqueles que podem pagá-la;

– A polícia não será a maldição de quem não pode comprá-la;

– A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viverem separadas, voltarão a se unir, muito de perto, costas com costas;

– Uma mulher negra será presidente do Brasil e outra mulher negra será presidente dos Estados Unidos da América; uma mulher indiana governará a Guatemala e outra o Peru;

– Na Argentina, as loucas da Praça de Mayo serão um exemplo de saúde mental, porque se negarão a esquecer os tempos de amnésia obrigatória;

– A Santa Madre Igreja corrigirá os erros das tábuas de Moisés, e o sexto mandamento ordenará festejar o corpo;

– A Igreja também ditará outro mandamento, o qual se esqueceu Deus: “Amarás a natureza de que fazes parte “;

– Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma;

– Os desiludidos serão bem vindos e os abandonados serão encontrados, porque foram aqueles que perderam a esperança de tanto esperar e os que ficaram abandonados de tanto procurar;

– Seremos compatriotas e conterrâneos de todos aqueles que têm vontade de justiça e de beleza, que nasceram onde nasceram e viveram onde viveram, sem ter importância as fronteiras do mapa e do tempo;

– A perfeição continuará a ser o tedioso privilégio dos deuses; mas neste mundo torpe e decadente cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro.
Eduardo Galeano 

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