terça-feira, 13 de dezembro de 2016

A inútil beleza das girafas

30 Incredible and Award Winning National Geographic Animal Photography examples…:
Há alguns anos fui visitar o Kruger Park, na África do Sul, na companhia de Mia Couto. Fomos de carro desde Maputo, a capital de Moçambique, que fica a pouco mais de duas horas do Kruger. Mia, que além de escritor é biólogo, sempre trabalhou na área do ambiente e conhece bem o parque. Em determinada altura vimos duas girafas namorando. Gosto das girafas porque são uma improbabilidade elegante. Seres improváveis há muitos, mas quase todos parecem um tanto desajeitados, como os ornitorrincos ou os cangurus, lembrando o que se costuma dizer acerca do camelo: que é um cavalo desenhado por um comitê.

As girafas enrolavam os intermináveis pescoços uma na outra, numa lenta e amável brandura, fazendo com que qualquer outro bailado nupcial, por comparação, parecesse rústico e sem graça. Todos nós guardamos uma caixinha cheia de memórias felizes, às quais recorremos nos dias escuros para nos reconciliarmos com a vida. Na minha caixinha de memórias felizes haverá sempre essa imagem das girafas dançando. Lembrei-me dela, há dias, ao ler um alerta da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em inglês) para a drástica redução da população de girafas. Em 1985 haveria cerca de 155 mil; no ano passado foram contabilizadas apenas 97 mil. Esses números colocam pela primeira vez a possibilidade de que a espécie se venha a extinguir dentro de poucas décadas. A destruição do habitat natural das girafas, bem como a caça furtiva, explicam, segundo a IUCN, os números agora divulgados.

Em 1962, Rachel Carson publicou “Silent spring” (“Primavera silenciosa”, disponível no Brasil com a chancela da Gaia Editora), um livro que abriu caminho ao movimento ecologista global. O título é uma referência à extinção em massa de muitas espécies de aves, como resultado do triunfo da agricultura industrial e da generalização dos pesticidas. No livro, Carson acusa a indústria química de ocultar os danos causados ao ambiente pelos pesticidas, em particular o DDT, veneno que, anos depois, viria a ser proibido em quase todo o mundo.

O negacionismo da indústria dos pesticidas, nessa época, em nada difere do atual negacionismo das indústrias poluentes, responsáveis pelo incremento do efeito de estufa. O enredo é o mesmo, apenas mudam (quando mudam) os nomes das empresas envolvidas.

O recente convite de Donald Trump a Scott Pruitt para chefiar a Agência de Proteção Ambiental (EPA) foi como uma cusparada de escárnio dirigida a todos quantos se preocupam com a sobrevivência da vida na Terra. Enquanto secretário de Justiça do estado de Oklahoma, cargo que ainda ocupa, Pruitt entrou em guerra judicial com a própria EPA, recusando-se a reduzir as emissões de gases responsáveis pelo incremento do efeito estufa nas centrais a carvão. Pruitt chegou a referir-se à EPA como uma “agência ilícita e excessiva”!

É como se Trump decidisse convidar um pedófilo assumido para dirigir um lar de crianças abandonadas.

Muita gente nos Estados Unidos se indignou contra tão infame convite. Uma dessas pessoas foi o ator Leonardo DiCaprio, que há poucas semanas apresentou um documentário da sua autoria, “Before the flood” (no Brasil, com o título “Seremos História?”) sobre as consequências para o ambiente, e para a vida de todos nós, do aquecimento global. O documentário discute ainda soluções energéticas alternativas. Mal soube do convite a Pruitt, Leonardo DiCaprio pediu para conversar com Trump. O ator não se esforçou em convencer Trump das ligações entre o aquecimento global, o efeito estufa e as indústrias poluentes. Não valeria a pena. Trump, como todos os negacionistas, está perfeitamente a par de tais ligações. Apenas as nega. O que DiCaprio tentou fazer foi convencer Trump de que a economia americana tem tudo a ganhar caso opte por investir em infraestruturas sustentáveis. Esta parece ser, agora, uma estratégia seguida por várias organizações ligadas à proteção do meio ambiente. Ou seja: já não se trata de denunciar a estupidez e a imoralidade da indústria poluente. Trata-se de tentar convencer Trump e os seus colegas empresários de que eles podem ganhar mais dinheiro não poluindo do que arrasando o planeta.

Compreendo a estratégia, mas acho-a bem reveladora do quanto nos vimos aviltando, todos nós, desde a vitória de Trump. E o homem ainda nem sequer se instalou na Casa Branca.

Acho que terei de me conformar a viver num mundo sem girafas. Girafas não dão lucro. Só beleza.

José Eduardo Agualusa

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