quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O que as urnas renegaram

Como sempre, o pronunciamento dos eleitores propicia diversas e opostas interpretações, todas com um fundo de verdade. O PSDB solta fogos por ser o maior vitorioso nas urnas, o presidente Michel Temer respira aliviado por 80% dos prefeitos eleitos serem de sua base de sustentação e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, se projeta para 2018 como o tucano mais competitivo.

No outro extremo sobram avaliações cinzentas: uns dizem que o Brasil deu uma brutal guinada à direita, com uma onda conservadora varrendo o país, de ponta a ponta. Para outros, a eleição teria sido a própria negação da política, tanto pela via do “niilismo” – abstenção, votos nulos e brancos – como pela via do candidato “não político”.
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Há um toque de ligeireza, superficialidade e pedantismo nessas conclusões. O recado das urnas ainda não está devidamente assimilado. Pode estar havendo uma baita confusão sobre o chamado desencanto com a política.

Para entendê-lo, é necessário mergulhar no tempo, ir até as jornadas de 2013, quando os brasileiros expuseram sua insatisfação quanto à secular ineficiência dos serviços públicos e as anacrônicas instituições político-partidárias, inteiramente descoladas do cotidiano das pessoas.

O “sem partido” de 2013, grito das ruas não entendido pela esquerda tradicional, transformou-se no “eles não me representam”, no voto nulo, em branco, na abstenção ou na sua contraface, o voto no “não político”.

Os anos dourados do lulopetismo geraram uma ilusão. Nossos serviços públicos continuavam sendo da época da pedra lascada, o modelo político perpetuava as iniquidades. A crise de representatividade – partidos, sindicatos, movimentos sociais formais - começa a saltar aos olhos com o advento da hiperconectividade, com o fim das bipolaridades, com a transversalidade e tangibilidade das bandeiras.

Em certo sentido, um fenômeno mundial, agravado no Brasil pelo modelo de presidencialismo de coalisão, pautado na repartição do botim da coisa pública, e pela pura e simples cooptação de centrais sindicais, UNE, MST e outros dinossauros.

Mas o “distributivismo” subsidiado pelas commodities escondia tudo. Quando a fonte secou, o lodo veio à tona.

Em 2014, vimos um país dividido ao meio, com o lulopetismo ganhando uma sobrevida que não resistiu à hecatombe que se seguiu. Havia, já na última disputa presidencial, o desejo de mudar, mas o medo falou mais alto.

Sim, a eleição de 2016 é a de mudança de paradigmas. A seu modo, o eleitorado superou a bipolarização que vinha dando o tom da política brasileira desde a última década do século XX, suprimindo, pura e simplesmente, um de seus polos: o PT.

O que fará com o outro polo, vai para a rubrica de médio prazo. Depende de qual será o desempenho do PSDB e dos vitoriosos, se eles corresponderão à agenda demandada pelas urnas, ou se provocarão novas frustrações. Só há uma certeza: a fatura será cobrada em 2018.

Os eleitores não renegaram a política. Renegaram essa política que está aí.

O protesto das urnas – ou de quem nela sequer compareceu – tem o sentido de que não basta apenas uma reforma política no sentido estrito do termo, de adoção de novas regras, como fim das coligações nas proporcionais, cláusula de barreira, voto-distrital, misto ou puro.

As urnas clamaram por uma nova mentalidade, uma nova cultura, uma nova forma de se fazer política. Esse é o complicômetro. As instituições são elas mesmas e os homens que as compõem também. Como mudá-las com as mesmas caras que ditam o jogo?

As categorias esquerda-direita são insuficientes para explicar o complexo pronunciamento das urnas. Verdade, pode-se pinçar aqui e ali alianças e pensamentos indicadores do campo de vários candidatos eleitos. Mas seria reducionismo atribuir aos milhões e milhões de brasileiros uma virada em direção ao conservadorismo.

Na verdade, os eleitores disseram não a tabus da esquerda, ou de sua maior parte. Eles descobriram, às duras penas, que as benesses do Estado, quando promovidas de forma insustentável, recaem sobre suas costas. Põem em risco seus empregos, sua saúde, sua família.

As urnas renegaram a política de atender as corporações em detrimento do conjunto da sociedade, de se gastar mais do que se arrecada, de rupturas de regras democráticas, como o respeito ao patrimônio público e privado.

Também abriram espaço para o Brasil enfrentar temas delicados, como meritocracia, tamanho do Estado, estabilidade no funcionalismo público e direitos iguais na aposentadoria, sem se vergar às patrulhas ideológicas.

E ainda há quem diga que os eleitores são despolitizados...

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