quarta-feira, 1 de junho de 2016

Telefonia e democracia

A canção de ninar inocentemente ameaça: “Boi, boi, boi,/ Boi da cara preta!/ Pega essa criança que tem medo da careta!”.

Careta é a máscara carnavalesca congeladora de expressões faciais. Geralmente, um sorriso ou a carranca cínica que domina o nosso palco político. Nele, assistimos a grandes papéis serem desacreditados por maus atores.

Quando Richard Morse me telefonava, o verso era a senha. Ele dizia uma parte e eu a outra. Quase sempre trocávamos “careta” por alguma palavra mais alusiva.

Telefonias gravadas – essas provas de transparência – arrebatam o sono dos poderosos (que têm partido, não ideais). Fruto do instituto da “delação premiada” – esse exemplo weberiano das consequências inesperadas das ações sociais – enxergamos a política nacional tal como ela se faz. Não é, portanto, por amor à democracia que os fascistas de um lado e de outro ambicionem extinguir esse mecanismo.

De fato, se a democracia diminui o espaço entre o particular e o público, como segurar esses segredos que ajudaram a quebrar o Brasil? A propósito, vai sem dizer que todo radical ama o “nós” onipotente.


As telefonias exibem uma rede de engravatados. Nela, observamos um amoral desfile de acordos desonestos e bilionários. Sabíamos que se roubava, mas não tínhamos ideia de como esse roubo era tão incestuoso. O assalto ao Brasil era ordenado, programado e federal!

Tal descoberta seria impossível sem as redes sociais, combinadas com a imprensa livre e uma imensa demanda de igualdade republicana a qual levou às portas do Judiciário e dali à Polícia Federal, ao Ministério Público e ao juiz como símbolos derradeiros de uma justiça esvaziada de interesses mesquinhos.

A lei vale para todos e atua por meio de fórmulas burocrático-legais – esse modo de dominação teorizado por Weber e dramatizado por Kafka. Pois a lei independe do poder carismático ou patrimonial dos indiciados e dos seus algozes. Com isso, o Brasil assiste a um surpreendente espetáculo de prisão de poderosos que eram, de acordo com uma velha teoria nativa, “imprendíveis”.

O governo da lei aprofundado pela “delação premiada” mostrou a operação do nosso sistema. Ele não é gestor de p... nenhuma. É um eficiente mediador de barganhas pessoais as quais transcendem partidos e projetos de poder, mas não deixam de “arrumar” os seus atores. Não se pode mais esconder que a ética republicana da igualdade, tem como irmã gêmea a tradição do “dou para receber”. Como, eis o dilema, ser leal ao eleitor, ao partido, ao progresso do Brasil e também aos amigos e a si mesmo – arrumando-se?

Se você quiser deixar um político sem sono, cante para ele:

“Moro, moro, moroMoro da capa pretaPegue esse político que mente sem careta!”

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“Mentiram-me!”, exclama uma poesia de Affonso Romano de Sant’Anna de 1980, numa destemida denúncia sobre a hipocrisia do regime militar. Com censura, mentiam sobre o caso do Riocentro – um ato terrorista malogrado, tramado pelo regime contra um grupo de artistas libertários. No poema, A Implosão da Mentira, o poeta explode a mistificação. E reitera como a mentira é uma invariante do cenário político nacional. “Ontem e hoje mentem novamente/ Mentem de corpo e alma, completamente/ E mentem de maneira tão pungente que acho que mentem sinceramente.”

Trinta anos depois, continuamos na mesma. Hoje, mentem-me à direita e à esquerda porque a verdade implora pelo eixo do alto e do baixo: dos limites e das eficiências que, espero, começamos a enfrentar.

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Tal sequestro do Brasil pelos seus políticos e não por sua política é outro aspecto que a Lava Jato tem revelado. Como eleitores, elegemos cuidadores em vez de representantes. Aqueles são, como diz Faoro, “donos do poder”; esses seriam seus gestores. Contamos nos dedos governos de gestores. Abundam telefonias de pais, mãe, tios e compadres.

Esses cuidadores da pátria!

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Os protofascistas dizem abertamente que a pior ditadura é a da lei. E estão certos ao repetir sem saber o historiador inglês E. P. Thompson. Em democracias, o que conta é a igualdade e não o relacionamento familiar e de amizade. Ou, até mesmo, o dinheiro que, demonizado, tudo controla. Mas é a lei que normalmente submete os fracos e segura o bando, até surgir um movimento como a Lava Jato, o qual mostra como a lei é a única regra possível na exigente e para alguns demoníaca democracia.

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