Alguém já disse que o Fisco é tão importante como instituição do Estado, que até mesmo se confunde com ele. E a própria história política da humanidade nada mais seria que a história do Fisco. Vide o episódio da revolta dos zelotes na Judeia contra os tributos romanos que, mesmo ao custo da destruição do Segundo Templo no ano 70 d.C., acabou por fomentar a própria pregação cristã, os Evangelhos e a expansão mundial do cristianismo. Ou a regra sobre a consulta prévia do rei a seus súditos sobre quanto deveriam pagar em impostos, já contemplada num dos artigos da Magna Carta inglesa de 1215 e reconfirmada na Declaração dos Direitos da Revolução Gloriosa de 1688. Ou mesmo o caso da condição de representação política para a admissão da taxação da Casa Real no episódio do Tea Party da Revolução Americana de 1776. Ou a consagração definitiva dos direitos do cidadão contra a voracidade fiscal dos governantes expressa no 14º artigo da Declaração dos Direitos do Homem da Revolução Francesa de 1789.
No Brasil, não é o monarca proclamador da Independência, Dom Pedro I, mas sim o mártir dos inconfidentes contra a Derrama, Tiradentes, de quase meio século antes, que se torna o patrono cívico do país. Ou seja, a atenção sobre a ação do Fisco é a essência da própria cidadania política, assim como a responsabilidade fiscal é o próprio limite definidor do que seria um bom governante. Com exceção do populismo da concepção do Estado como ente provedor e tutelador dos cidadãos que, no último século, passou a estimular governos esquerdistas a menosprezar as questões fiscais do Estado.
Vide os últimos acontecimentos políticos que podem definir o próprio sucesso ou fracasso do governo interino do presidente Temer. Pois, na lei do mercado, da sociedade civil e, de resto, do mundo privado e real, se uma empresa empregadora está deficitária, cortam-se custos e demitem-se trabalhadores. Mas, na lei do poder público e, de resto, de um Estado empregador deficitário, irresponsável e delirante, aumentam-se os vencimentos do funcionalismo público. Este é o mal maior e o mais perverso traço de nossa cultura política: irresponsabilidade fiscal, irracionalidade econômica, um pacto generalizado de corporativismo sem limites e sempre às custas do difuso interesse público. A corporação dos políticos, para defender seus interesses, pactua com a magistratura e demais corporações dos funcionários públicos a sua mútua locupletação dos recursos públicos. Sim, o problema do Brasil é cultural: “Comendo eu e meu cavalo, o resto que se dane!”. Não desta concepção de cultura estreita a que foi reduzido o movimento da corporação dos artistas de performing arts financiados pela Lei Rouanet com a sua campanha “Ocupe o MinC”.
O problema do Brasil é de cultura cívica e política, concepção mais geral da cultura, e não de culturas setoriais, o que demanda uma verdadeira reforma geral das mentalidades, do imaginário social construído no espaço público da mídia, sobretudo por nossa negada – jamais abnegada! – elite. E já que a moda é ocupar, do tipo “Ocupe escolas”, “Ocupe fazendas”, “Ocupe presídios”, “Ocupe estradas”, “Ocupe prédios públicos” e até mesmo “Ocupe palácios” (como no caso do Alvorada), só nos resta mesmo coordenar esforços da pacata “patalhada” geral dos pagadores de impostos para o maior e definitivo movimento cívico: “Ocupe Brasília”. Pois é lá que se cultiva a irresponsabilidade geral por nosso furdunço fiscal: já que o orçamento não cabe no PIB, e a solução passageira é sempre aumentar impostos definitivos de um Estado deficitário e perdulário crônico, todos correm espertos para defender a compensação de um privilégio fiscal corporativo. E, em terra onde todos são espertos, não há otários suficientes, a não ser que todos sejam otários insuspeitos. Prevalece a irresponsabilidade política da cultura imoral do corporativismo, produto da omissão cívica de nossas elites.
Cultura generalizada, seja de grupos empresariais dos mais variados portes e setores, seja de quaisquer outros empreendimentos de cunho social, partidário, religioso, cultural, artístico ou mesmo informativo. Que esbravejam publicamente contra o Leviatã da carga tributária durante o dia e, à noite, tramam por seus subsídios compensatórios setoriais. Pois não teremos salvação nacional pela ação de nenhum pacto corporativo setorial, mas apenas pela ação de segmentos mais conscientes e atuantes de cidadãos de cada uma dessas corporações que se organizarem no espaço simbólico da mídia em defesa efetiva do interesse público. Missão para nossas melhores elites que acreditarem que esta cultura poderá mudar pela ação da educação cívica de massa no espaço público e estratégico da mídia. Pois cultura se muda, sim! Se não pela ação dissuasória da Justiça, ou pela ação moral da educação cívica, se muda pela intervenção persuasiva no imaginário social produzido pela mídia. Tenho defendido, inclusive, que o problema é nosso, da omissão política da maioria difusa dos cidadãos de bem, dos diuturnos pagadores de impostos compulsórios, que não mais se iludem com um subsídio setorial qualquer para minorar o desmantelo geral de um Estado regido pelo pacto da malandragem universalizada e pelo vício do corporativismo.
Para além mesmo dos políticos profissionais, usuais mercadores de votos em troca de uma boquinha fiscal para sua clientela, somos todos inocentes no varejo do privado, mas culpados no atacado do desinteresse público. Não apenas artistas das mais várias expressões, viciados nos incentivos fiscais da Lei Rouanet. Como produtores culturais, jornalistas e marqueteiros, fornecedores da EBC ou de algum partido político. Repetimos a má conduta dos próprios políticos que não vivem sem o fundo partidário e o horário eleitoral “gratuito”. Como os intelectuais orgânicos e inorgânicos que não vivem sem bolsas de pesquisa a fundo perdido. Ou os empresários fornecedores de estatais, corruptores ou colaboradores da Justiça, que compram mandatos de políticos e de agentes públicos, reduzindo-os a despachantes de seus interesses. Ou funcionários públicos viciados em penduricalhos de chefia e assessoramento. Ou agricultores familiares e do agrobusiness que dependem dos subsídios dos planos safras. Pescadores fregueses de auxílio-defeso, indígenas de auxílio-permanência. Estudantes de Fies, sindicalistas de imposto sindical, ativistas de movimentos sociais de auxílio-moradia. Líderes religiosos fregueses de isenções tributárias e corporações de profissionais liberais fregueses de regimes de tributação diferenciada. Cadeias produtivas inteiras viciadas com o mais variado cardápio de isenções, incentivos e subsídios, seja porque são exportadores, desenvolvedores de tecnologia, sediados em zonas francas, de desenvolvimento regional, sociedades mantenedoras de educação, hospitais, fundações e institutos assistenciais de discutível interesse público etc. Resultado: de tamanha conta de descontos generalizada, de subsídios, incentivos, desonerações, renúncias fiscais etc., não dá conta o Tesouro, que estoura a banca, jogando a conta de volta para os cidadãos comuns, pagadores de impostos, sem o poder de corporação ou de mídia. De tão geral esta cultura suicida de transformar em regra as exceções, que não há mais possibilidade de saída para nenhum grupo que não seja de todos.
Pois me ocorreu um desafio a nossos economistas: consensuado o diagnóstico de nossa doença cultural cívica e política em estado de metástase, levantem o total da conta dos gastos tributários nacionais e descontem da carga tributária de quase 40% do PIB. Quase duas Derramas e ninguém se revolta! Por quê? Será que não é porque todos nós achamos espertos com nossas boquinhas fiscais corporativas? E de repente não nos damos conta de que, por excesso de espertezas setoriais, não estamos todos condenados à idiotice generalizada? De que todos já estamos pagando o pato há muito tempo – não sob a forma de impostos propriamente ditos – mas sob a forma mais cruel de recessão, corrupção e incompetência governamental? Será que não nos ocorre o óbvio de passar a República a limpo e passemos a descobrir as vantagens do princípio basilar de que todos devem ser realmente iguais diante da lei? Será que, se consultados num plebiscito, todos não abrimos mão de cada uma de nossas boquinhas fiscais, sem exceção, desde que a carga tributária se reduza de fato? Todos não iríamos para mídia de cara limpa e não comprometeríamos nossas corporações com a renúncia da renúncia fiscal? Como a Operação Lava Jato tem sido bem-sucedida fazendo a limpeza da política, inauguraríamos a Operação Lava Pato, promovendo a limpeza fiscal e a transparência tributária. Todos pelo pacto da isonomia fiscal, pagando de fato menos impostos e recuperando o crescimento do país com uma carga tributária de 25% do PIB que já tivemos um dia? Não custa tentar. Afinal, tentar ainda não paga imposto!
Jorge Maranhão
Nenhum comentário:
Postar um comentário