Eu não me espantei quando o “presidente em exercício” voltou atrás. Não vou especular, mas não ficaria assustado se o seu lado poeta invertesse as coisas, criando um baita Ministério da Cultura e um minúsculo ministério da educação.
A cultura lida como “civilização”, adorno, bom gosto, vanguarda, sofisticação e identidade burguesa, individualista e revolucionária, como o centro englobador da dimensão pedagógica; e a educação lida apenas como instrução burocratizadora, que oferece direitos e disciplinas, como o lado “oficial” da vida profissional – o lado que ensinaria chatices como o Hino Nacional, a Constituição, a honestidade cívica, que demanda obedecer aos sinais e o juramento à bandeira, mais matemática, português, história e geográfica – tem sido pouco discutido na vida republicana nacional. Tudo aquilo que um brasileiro comum deveria aprender, para conviver de modo igualitário um cotidiano justo, ainda está para ser debatido no Brasil. Os aristocratas, sem saber, querem mercado com reserva; outros preferem o populismo que louva a antieducação; e alguns querem talento e mercado com um mínimo de igualdade e competição. No ramo da cultura entendida como arte e talento, os poderosos, os riquinhos e os burocratas não têm lugar.
Cauby Peixoto sublimou esplendidamente os terríveis preconceitos contra a sua sexualidade, pelo canto. Ele jamais precisou de um ministério para aquilo que surge de um dom aproveitado com afinco: o seu canto, a sua arte. O fato é que fazemos um contraste equivocado entre educação e cultura. Na cultura, predominaria a visão eurocentrada da “civilização”. Este seria o ministério dos artistas – os demiurgos da cultura investida como literatura, poesia, música, artes plásticas e cênicas. Esse conjunto que estaria do “lado esquerdo” e seria parte da dimensão criativa e carismática do conjunto total de valores, técnicas e sabedorias que todos nós – independentemente dos nossos posicionamentos políticos, assumiríamos como denominadores comuns a quem nasce ou assume a identidade de “brasileiro” com todas as suas vantagens e desvantagens. Tal lado carismático, criativo, artístico, mágico e quase sempre surpreendente, pois não pode ser previsto ou programado com precisão, não seria subordinado nem oposto, mas complemento educacional. Ambos pertencem à sociedade. O Estado é um suplemento.
A “educação” seria o lado careta e constitucionalista do mundo, pois essa é a dimensão do aprender explícito. A dimensão que se faz na “sala de aula” com professores e programas, e não de modo informal, como a que ocorre quando nascemos e se faz em casa, num “aprender” inconsciente com os pais e familiares, com os amigos e vizinhos na varanda, na rua, no bar, na igreja, na praia e nas festas onde não existem programas, provas, formaturas e certificados.
Já a “cultura” se produz e reproduz na “escola da vida”. Essa vertente inconsciente dos elos coletivos. Aqui, há mestres e mentores mais do que professores e instrutores.
Num plano geral, entretanto, educação e cultura constituem a cultura de um coletivo que vai da tribo ao Estado nacional; que vai da família a um povo ou país. Seu denominador comum é uma língua comum; seu segundo determinante é um espaço ou território inquestionável ou soberano, no qual se exercem práticas e valores.
Estou dizendo que o governo Temer está certo? Não! Estou dizendo que ele está errado? Também não. O que estou dizendo é que nos falta um entendimento da “cultura” como um conjunto que engloba as nossas vidas, dando-lhes um sentimento compartilhado.
Como, então, seria cultural esse muito barulho por nada? Por dois motivos. Primeiro, porque é preciso encontrar um motivo para ser contra o governo; segundo, porque o governo, tendo muita acuidade para com a economia política, se esqueceu que, no Brasil, tudo tem um dono. E os donos da “cultura brasileira” são os artistas e intelectuais que se definem como uma classe trabalhadora pobre, destituída e, mesmo em Paris, frequentemente espoliada.
A sagacidade do constitucionalista cegou o poeta, deixando passar a ideia de que o tecido brasileiro é apenas feito de ritos legais quando, na realidade, ele tem muitas dimensões. A simbólica ou a cultural – que é, de fato, o que define o humano – é uma fronteira crítica. Nela, estão grandes artistas a dizer que não se governa sem a direita; mas também não se administra sem a “esquerda” dessa criativa “cultura” igualmente brasileira.
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